Opinião

Reformas ilegítimas e proteção no estado social (parte 3)

Autor

  • Tarso Genro

    é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

3 de novembro de 2022, 6h07

Continua parte 2.

Para avaliar, por dentro da doutrina do Estado Social, a situação do novo mundo do trabalho, seja autônomo ou subordinado, ou mesmo aquele dependente de formas contratuais novas ("soltos" na selva da concorrência) é preciso destacar quais são os limites normativos possíveis de uma "reforma constitucional".

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Em primeiro lugar é preciso lembrar que qualquer "reforma" deve ser limitada pela "necessidade de preservar as decisões fundamentais do constituinte, prevenindo a destruição da ordem constitucional por este projetada" [1] (…): "as limitações materiais devem restringir-se aos direitos que, de fato, constituam uma reserva constitucional de justiça", já que (…) "a legitimidade de tais cláusulas de restrição material à reforma está associada não apenas à sua origem como também ao seu conteúdo" [2].

Em segundo lugar é claro que, mais além do fascínio (ou delírio) que pode causar uma situação de desagregação política, que dá asas à imaginação jurídica e política, é importante ressaltar o que pretendeu, o constituinte originário, ao fazer uma conciliação de interesses, pois esta conciliação cria um tecido constitucional que responde, nas suas decisões, às demandas dos "poderes fáticos" (Ferrajoli) do "alto" da sociedade e da "base" da sociedade.

O poder soberano, quando inclui algo na constituição democrática, tem a pretensão formal e material de vincular ao texto todo o corpo social ao qual o Estado se reporta, pois a partir desta pretensão é que ele — constituinte — gera respeito e credibilidade, para formar um todo normativo coerente em torno da ordem, expressa a partir dos valores contidos no Preâmbulo.

Os fundamentos políticos das decisões da Assembleia Constituinte estão orientados pelo pacto que está contido, de forma expressa, numa relação de valores inscrita no Preâmbulo da Constituição, que não podem ser contrariados, pois, como salienta Pedro de Vega, o poder constituinte é soberano e livre e "o poder reformador é logicamente um poder inferior" [3].

O Poder Constituinte e o Poder Reformador da Constituição, mormente na composição do Estado Social, devem ser diferenciados sempre tendo em vista a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais, para que estes permaneçam como possibilidade dentro da Constituição decidida pela soberania popular. E para que a ordem constituída permaneça coerente com o princípio da soberania popular. O Poder Constituinte, é, pois, um poder soberano e o Poder de Reforma, que não pode ser petrificador das desigualdades, é um poder constitucional supletivo: um poder inferior.

O Preâmbulo da nossa Constituição Social como essência do pacto político conciliatório, que absorveu inclusive a conciliação com a ditadura, contém aspirações que perseguem a igualdade, pondo limitações e estabelecendo hierarquias. O constituinte, assim, mira a vida social e econômica, que ele reorganiza livremente, a partir do lugar em que ele está: onde se materializa a soberania popular através de formas coerentes, nas suas máximas possibilidades históricas.

O poder reformador não pode fugir desta ficção que é a base material e formal da intervenção do povo real na formação da nova ordem. No poder Constituinte — seja como poder instaurador da Assembleia, seja como seu poder Reformador — não pode estar presente a exceção que exclui, mas uma lógica formal precisa de inclusão, que a todos os cidadãos integra, fictamente, no pacto social e político que o constituinte instituiu.

A inclusão será concreta ou ficta, mas as normas que prosperam devem conter sempre algum nível de inclusão material, seja a partir de uma inclusão concreta, quando uma norma constituída diz — por exemplo — que tais ou quais servidores do estado, em tais ou quais condições, tem direito a tais formas de remuneração, em tais condições; ou seja a partir de uma inclusão abstrata, quando diz que todos são iguais perante a lei e os seus direitos são invioláveis. Ambas as "inclusões" se integram e se combinam nos mandamentos de valor do Preâmbulo.

Lembremos o exemplo abusivo do poder constituinte vindo da exceção, com uma parábola que poderia ser designada como a "exclusão de Landemesser", pela maioria política ilegítima, instaurada pela violência do Estado Nazista. "Existe uma famosa imagem em preto e branco da época do Terceiro Reich: é uma foto tirada em 1936 em Hamburgo, na Alemanha, com cem ou mais operários portuários, todos olhando na direção do sol. Eles fazem uma saudação em uníssono, com o braço direito rigidamente estendido declarando lealdade ao Führer (…), mas, podemos ver um homem no canto superior direito que se diferencia dos outros. Seu rosto tem uma expressão calma, mas inflexível. As reproduções modernas dessa foto costumam acrescentar um círculo vermelho em volta do homem ou uma flecha apontando para ele. Ele está cercado por concidadãos que caíram sob o fascínio dos nazistas. Mantém os braços cruzados no peito, a poucos centímetros das mãos estendidas dos demais. Só esse homem se recusa a fazer a saudação. É o único que se levanta contra a corrente" [4].

Há um impedimento claro na Constituição Política do Estado Social de Direito que tal exclusão, que coloca Landemesser como criminoso, possa prosperar como deve ser constitucional, pois antes — nos atos constituintes da constituição democrática, legitimamente convocada — assentada no Preâmbulo, foi normatizada a abstração democrática e social de caráter universal, que vinculou o poder constituinte a certos valores e os protegeu pela norma. De uma parte, porque o pacto político constitucional inscrito no Preâmbulo, assim o disse e, de outra parte, porque os fundamentos normativos da Constituição, baseados nos princípios de igualdade formal e da inviolabilidade dos direitos, também assim o disseram.

No caso de Landemesser o criminoso é o coletivo concreto ou o aparato político de força que fez a sua exclusão, a partir de um poder constituinte que é puro arbítrio, como o Kelsen maduro reconheceu, penitenciado-se de ter admitido o regime nazista com um sistema de direito.

O professor Roberto Santos, ao analisar a situação da proteção social laboral a partir de um texto de minha autoria (publicado no ano 1996) expressou na Conferência de encerramento do VI Congresso Brasileiro de Direito Social o seguinte: "segundo Tarso Genro" (disse o mestre) "os valores do não trabalho (raça, gênero, exclusão, local, visão sobre a natureza, religião etc.) são os que estão definindo e promovendo a inserção do indivíduo numa nova sociabilidade" por fora do clima cultural e político da fábrica moderna (p.35)". E isso deveria fazer emergir — prossegue o jurista — "um novo Direito do Trabalho, portanto, e uma nova tutela, que deveria emergir, gradativamente, ao lado do atual Direito do Trabalho, cuja crise terminal será de longo curso (…)" [5].

Em síntese: as tutelas do pacto de 88 poderiam ser reformadas, mas não substituídas por um novo sentido negativo (vazio de proteção) que vem se expressando, gradativamente. Deveria ser substituído por normas com a mesma teleologia do Estado Social, atentas para o fato de que a fragmentação da oferta de serviços e da oferta de trabalho, decorrentes das grandes transformações tecnológicas, não pode contrariar o objetivo de redução das desigualdades, que é o sentido que dá coerência ao sistema como um todo.

O constituinte empenhou, a partir do Preâmbulo da Constituição, o desenho de uma perspectiva de futuro para a sociedade, que está arrumada como forma (estética) e como conteúdo (material), na Carta de 88. Por aí, portanto, é que se constrói, tanto a resistência atual à degradação da materialidade dos Direitos Fundamentais, como o futuro coerente da nova ordem renovada do Estado (Democrático e) Social de Direito.


Referências:
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BAYLOS, GRAU Antonio. Trabalho, democracia e direitos. Publicado em 13 de outubro de 2016. Disponível em: https://www.extraclasse.org.br/geral/2016/10/trabalho-democracia-e-direitos/.Acesso em: 22 de ago.de 2022.

COELHO, Rogério Viola, GENRO, Tarso e MENEZES, Mauro. A inconstitucionalidade das emendas constitucionais 113/2021 e 114/2021: fundamentos e consequências. Democracia e Direitos Fundamentais.2022. Disponível em: https://direitosfundamentais.org.br/a-inconstitucionalidade-das-emendas-constitucionais-113-2021-e-114-2021-fundamentos-e-consequencias/.Acesso em: 5.set. de 2022.

GENRO, Tarso et. al. Legitimidade Concreta no Estado Social. In: MATTOS, Viviann Brito (Org.); D'AMBROSO, Marcelo José Ferlin (Org.). Democracia, Direito do Trabalho e Novas Tecnologias. Belo Horizonte: RTM, 2022.

GENRO, Tarso. Cortes nas universidades são atos de exceção – É um direito dos reitores, alunos e servidores resistirem. GZH. Porto Alegre,08 de maio de 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2019/05/tarso-genro-cortes-nas-universidades-sao-atos-de-excecao-cjvec9f9g01ug01mamkh5x79j.html. Acesso em: 5 de set. de 2022.

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JHERING, Rudolf Von; Sobre el Nacimiento del Sentimento Jurídico. Tradução e edição:Fernández-Crehuet, Frederico.Madrid: Trotta, 2008, p.11,p.33 e p.39.

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WILKERSON, Isabel.Casta: As origens de nosso mal-estar.:tradução Denise Bottmann e Carlos Alberto Medeiros. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p.13.

 


[1] MENEZES, Mauro de Azevedo.Constituição e Reforma Trabalhista no Brasil. Interpretação na perspectiva dos Direitos Fundamentais. São Paulo:Editora LTr.2003,p. 197.

[2] Ibid.; p. 197.

[3] VEGA GARCÍA, Pedro de. La reforma constitucional y la problemática del Poder Constituyente, Editorial Tecnos S.A,Madrid, 1995, 1ª ed., p. 255-256. "Ante todo, el establecimiento de cláusulas de intangilidad implica el reconocimiento por el Derecho positivo de la distición entre poder constituyente y poder de reforma. La declaración, através de los limites, de zonas extensas as la accion del poder de revisión, equivale a consagrar su natureza de poder constituído y limitado. Frente al poder constituinte, que es por definición um poder soberano y libre, el poder de reformam aparece, logicamente como un poder inferior, en la medida en que una parte de la obra constituyente queda fuera de su competencia."

[4] WILKERSON, Isabel.Casta: As origens de nosso mal-estar.:tradução Denise Bottmann e Carlos Alberto Medeiros. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p.13.

[5] GENRO, Tarso. DOUTRINA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS MINIMOS. Revista LTR.

LEGISLAÇÃO DO TRABALHO. Vol.82, n 1, janeiro de 2018. "O Futuro do Trabalho e o Emprego" sobre o meu artigo "Crise Terminal do Velho Direito do Trabalho". (Revista do Direito do Trabalho -100- Editora dos Tribunais – 2000 -p. 4 O texto fora publicado no ano de 1996 num exemplar da Revista de Direito do Trabalho).

Autores

  • foi ministro da Justiça, da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, do IAB, autor de livros e textos de Teoria do Direito publicados no Brasil e no exterior.

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