Opinião

Reformas ilegítimas e proteção no estado social (parte 2)

Autor

  • Tarso Genro

    é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

2 de novembro de 2022, 6h06

Continua parte 1

Retomo, em síntese, o texto já publicado: "a dogmática do concreto é, em termos filosóficos, uma 'reconciliação' com a realidade iluminista e jus positivista, naquele sentido que lhe emprestou o Hegel maduro. Nas circunstâncias históricas atuais, porém, em que os setores mais modernos do capitalismo vinculados ao sistema de poder mundial, são obrigados a retroceder ao pré-iluminismo, aquela reconciliação visa voltar ao iluminismo, não fugir dele. Seu conteúdo originário deve ser conscientemente acolhido, por ser uma repulsa radical à devastação do seu momento de humanismo político mais elevado, representado pela experiência da socialdemocracia" [1], que agora o sistema do capital global relativizou e perverteu.

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Sua ideia vem de que: "a cadeia de razões e justificativas" nos marcos de um discurso jurídico concreto, hoje, necessita sustentar-se numa dogmática particular: a dogmática do concreto. A síntese das determinações deste concreto supõe uma dogmática que busque sua fundamentação nos direitos fundamentais. Ela é que cria um "discurso jurídico concreto" (para uma retórica humanista) que é justificável a partir da legitimidade formal e material estimulada na Constituição (…) cujo conteúdo normativo foi produzido por maiorias fundadas na soberania popular, que está expressa, no seu sentido material e formal, no Preâmbulo de Carta" [2]: "trata-se, portanto, de um discurso orientado na dogmática em que o intérprete leva em consideração o que está escrito na Constituição e combine os seus princípios, revelados no Preâmbulo, com o sentido lógico da norma, orientado pela teleologia do poder constituinte" [3]. "A partir daí esta dogmática (com o intérprete) integra o jurídico literalmente posto com o sentido político que o construiu: a dogmática do concreto busca recuperar a iluminação humanista que redundou no contrato socialdemocrata, contra o retrocesso pré-iluminista, instaurado para reciclar, tanto o 'modo de vida' ensejado por aquele contrato, como para feudalizar e privatizar as emoções no mercado" [4].

Aplicação da justiça através das regras capazes de sustentar "decisões Jurídicas concretas — diz Norbert Horn — é a real questão filosófica da ciência jurídica" [5]. A aceitação desta decisão por um grupo majoritário da sociedade, mesmo no caso de uma lei injusta — mas ainda não declarada como inválida — estabelece a presunção de que mesmo ela estando "distanciada de princípios gerais de justiça" [6], ela está sustentada na presunção de que o legislador no Estado de Direito pretendeu criar leis que promovem justiça. "O sentimento jurídico que legitima as leis no meio social destinatário, todavia, começa a se dissolver quando os governantes se revelam como 'criminosos' e abusam, como detentores do poder, do seu poder estatal" [7]. É o caso do nosso país, dentro da exceção abrigada pelos doutrinadores e juristas da extrema direita bolsonarista.

A "práxis" da sociedade industrial-mercantil tem a sua centralidade na produção de mercadorias que são testadas na emoções e necessidades do consumo, e que gera uma reflexão especifica no mundo do trabalho da época, em cada etapa nova da vida laboral. Nela o espaço social concreto do trabalho social é hoje ocupado por novas e passageiras sensações para reinventar a vida, cujo sentido da felicidade para quem esteve ou está no mundo industrial clássico em mudança — vem sofrendo uma mutação radical, pois as emoções que fazem o intercambio das diversas formas de subjetividade social mudaram radicalmente.

No plano jurídico e político de cada nação mais (ou menos) industrializada, o novo mundo do sistema do capital que clamou pelas "reformas" (especialmente a trabalhista) lançou as bases de uma nova utopia, centrada numa outra teleologia, coerente com estas mudanças. É a utopia da regra "natural" do mercado, que ajusta a comunidade global aos seus desígnios, que se combina com novas formas de produção da consciência comum, ligadas aos novos tipos de tratamento que estão sendo dados ao seu trabalho supostamente livre e não subordinado.

Nesta nova "reforma" (seria mais certo dizer "contra-reforma") os direitos fundamentais dos trabalhadores são tratados como obstáculos para a iniciativa privada e o custo da proteção estatal, para assistir as condições reais de dependência, subordinação e hipossuficiência do trabalhador assalariado (ou "autonomizado") do século 20, é considerado um impedimento para o desenvolvimento, tal qual o liberalismo radical lhe conceitua. A consciência dos trabalhadores que emergem desta situação é outra, mais formalmente livre, mais orientada para o mercado e mais admiradora da iniciativa "livre".

Kal Larenz — eminente jurista do século passado — depois das suas relações de simpatia com o nazismo, quando aceitava transformar a força dos fatos em direito no reinado de Hitler (das quais se livrou apontando-as como "experiências de juventude"), formulou teorias só aparentemente coerentes sobre os nexos da ética com o direito, com um ponto de partida aparentemente universal [8]. Jhering, todavia, já sentencia com brilho iluminista: "nosso sentimento jurídico (…) deve-se por acima dos fatos, porque (assim) generaliza o concreto e o conduz a hipóteses que, nesse sentido, não estão contidas nas instituições jurídicas" [9].

Para Larenz, certamente, o "por-se acima dos fatos", seria aceitar concepções jurídicas que lhe permitiram conviver em paz com o nazismo, diferentemente, por exemplo, da situação de "por-se acima dos fatos" para defender as formas normativas do direito na democracia social, num Estado Democrático de Direito.

Na primeira hipótese é impossível adotar um sistema de valores que se ponha “acima dos fatos”, pois quem preliminarmente aceita que o "Fhürer" pode constituir e comandar o direito já está moralmente acomodado aos fatos. Na segunda hipótese, (no Estado de Direito legítimo) ao buscar o sentido da Constituição somos obrigados a nos apoiar em valores que estão contidos na Constituição, nas orientações expressas do seu Preâmbulo, logo "acima dos fatos", portanto, para compor "decisões jurídicas concretas" apoiadas na Constituição legítima.

A aceitação política das reformas constitucionais que vem desmontando o Estado Social da carta de 1988, tem sofrido uma resistência tímida por parte do Sistema de Justiça. Esta situação de retração só foi possível pela formação de uma maioria política, dentro e fora das instituições orientada ideologicamente pela visão de que a modernização do Estado e do sistema produtivo pode desertar da preservação dos Direitos Fundamentais. Esta posição, frequentemente aceita pelo Sistema de Justiça, permitiu que um poder reformador, arvorado à condição de poder constituinte, definisse — nas próprias malhas do Estado Social de Direito — a neutralização das regras que asseguram os direitos fundamentais.

Na Europa, a resistência ao deságio do sistema de proteção do trabalho pela via da prestação jurisdicional (como atentou o artigo de Antônio Baylos), ocorre dentro do contexto concreto das reformas, operando diretamente sobre os fatos, "à altura dos fatos", ou seja, fazendo a reinterpretação das normas constitucionais para sustentar a "coerência" da ordem constitucional, a partir dos fatos interpretados para evitar a "petrificação" desta ordem.

Esta resistência só adquire maior ou menor potência, pela força político-moral que o processo constituinte acresceu ao pacto político, para bloquear o que seria a "exceção" que seria produzida pela revolução violenta, para a superação da ordem ditatorial. Para isso são necessárias simples negociações e acordos com obscuridades, para que a sociedade como um todo se acomode a uma nova situação possível, segundo os interesses em confronto, adaptáveis ao controle que as forças políticas da ditadura exerceram na transição negociada.

Baylos relata um exemplo significativo na pós-transição espanhola com a figura do "empresário complexo", cuja situação concreta na ordem jurídica impele "o jurista (a) reconstruir (a intepretação) sobre a técnica da responsabilidade. Há uma série de cadeias de subcontratação, mas resulta que a terceirização, no final, beneficia um empresário, o 'empresário complexo', que se ergue com a presença de personalidades jurídicas diferenciadas, em função da unidade organizativa e diretiva do processo em seu conjunto; (num) espaço cultural contra-hegemônico (é preciso) encontrar técnicas, teorias, doutrinas que devem ser incorporadas ao patrimônio cultural do juiz. Então a lei diz isso, mas o sistema jurídico recompõe essa norma jurídica elementar. Ou seja, no momento judicial interpretativo, o que se faz é controlar, impedir alguns efeitos, como aconteceu com (o tratamento) da greve e da terceirização" [10], erguendo a situação fática a um outro patamar interpretativo.

O poder reformador do sistema de proteção no Estado Social, que vem sendo utilizado no Brasil, (como na "PEC dos Precatórios") "promove brutal desigualdade na aplicação da lei, (pois) além de bloquear direitos existentes, inova (para exemplificar fora do sistema de proteção laboral) o processo destinado à tutela de direitos futuros dos sujeitos que continuamente têm créditos contra a União, que são habitualmente resistidos por longos anos. As emendas (do poder reformador) bloquearam o acesso dos destinatários ao devido processo legal, assegurado a todos os cidadãos pelo inciso LIV, do art.º 5º da Constituição da República, para a defesa dos seus bens, onde se incluem os seus direitos subjetivos, impondo-lhes um processo despido de efetividade: um verdadeiro processo de exceção, e (de outra parte) privilegiando credores titulares de frações da dívida pública (que foram) deixados fora do teto de gastos" [11].

Continua parte 3.

 


[1] GENRO, Tarso; COELHO, Rogério Viola. (coordenadores). Degradação e resgate do direito do trabalho: contributos para uma doutrina constitucional de defesa dos direitos. São Paulo: LTr, 2018, P. 22.

[2] Idem.;

[3] Ibid.;

[4] Ibid.;

[5] HORN, Norbert; tradução da 2ª edição alemã, Elisete Antoniuk. Introdução à ciência do direito e à filosofia jurídica. Porto Alegre, S. A. Fabris, 2005,p. 30. "(..) A Justiça constantemente aparece em conexão com o Direito, como uma questão fundamental da vida comum das pessoas. A relação entre Direito e Justiça faz parte dos constantes problemas para cada um que se ocupe do Direito ou seja atingido por regras ou decisões jurídicas. Perguntar por justiça, seu reconhecimento e fundamentação, e pela possível aplicação da justiça em regras e decisões jurídicas concretas é a real questão filosófica da ciência jurídica.(…)."

[6] idem,p.31"Todo legislador estatal afirma querer criar leis justas. Mas as decisões de valor fundamentadas em lei podem estar distanciadas de princípios gerais de justiça, especialmente nos casos de Estados não legitimados democraticamente, de forma que deve caracterizar a lei como injusta (e nesse sentido como absurda). Em caso extremo tais leis não tem efeito jurídico, mesmo que possam ser aplicadas faticamente, com a ajuda do poder estatal"

[7] Ibidem, p. 31. "Mas frequentemente ocorre em justiça estatal fora das leis, portanto não dissimulada por uma lei, mas houve violação de qualquer ordem jurídica, em que criminosos abusam, como detentores do poder, de seu poder estatal."

[8] LARENZ, Karl. DERECHO JUSTO FUNDAMENTOS DA ETICA JURIDICA; traducción y presentación de Luís Diez-Picazo Madrid: Editorial Civita. S.A, 1985,p.39.

[9] JHERING, Rudolf Von; Sobre el Nacimiento del Sentimento Jurídico. tradução e edição: Fernández-Crehuet, Frederico.Madrid: Trotta, 2008,p.39.

[10] BAYLOS, Antonio. Trabalho, democracia e direitos. Publicado em 13 de outubro de 2016. Disponível em:  https://www.extraclasse.org.br/geral/2016/10/trabalho-democracia-e-direitos/.Acesso em: 22 de ago. de 2022.

[11] COELHO, Rogério Viola, GENRO, Tarso e MENEZES, Mauro. A inconstitucionalidade das emendas constitucionais 113/2021 e 114/2021: fundamentos e consequências. Democracia e Direitos Fundamentais, 2022. Disponível em:  https://direitosfundamentais.org.br/a-inconstitucionalidade-das-emendas-constitucionais-113-2021-e-114-2021-fundamentos-e-consequencias/. Acesso em: 5 de set. de 2022.

Autores

  • foi ministro da Justiça, da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, do IAB, autor de livros e textos de Teoria do Direito publicados no Brasil e no exterior.

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