Opinião

Reformas ilegítimas e proteção no estado social (parte 1)

Autor

  • Tarso Genro

    é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

1 de novembro de 2022, 6h07

(ou Rudolf Von Jhering conversa com Karl Larenz e Antonio Baylos sobre os sentidos de ordem)

"…é a sociedade através da história
do Progresso que constitui o direito.

Este não está estabelecido em nenhum céu de conceitos".

(Fernández-Crehuet apresentanda "Sobre el Nacimiento del Sentimento Jurídico") Madrid: Editorial Trotta, S.A., 2008,pp.11.

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O Estado de Direito — como o oposto da ordem hobbesiana — deve ser considerado uma estrutura normativa pensada pela subjetividade humana, que é construída para ser avessa às relações espontâneas da naturalidade. O Estado de Direito é estruturado para viabilizar as pretensões de solidariedade com subjugação, presentes nos fundamentos materiais da dominação social, atenuando as disparidades e mediando as relações de força entre os cidadãos.

O Estado de Direito é destinado, pelos acordos possíveis e pelos consensos construídos na história específica de cada nação, a organizar a socialidade e impor a esta uma determinada ordem. Para isso é regulado o uso da força consentida e limitada que, dentro do Estado Social de Direito, pondera a "astúcia" para compor uma sociabilidade mais humanizada e impor certos limites na dominação pelo mais forte (GENRO, 2022).*

No período atual, não raramente o Poder Judiciário, no exame da efetividade direitos fundamentais, vem se permitindo prolatar decisões que levam ao absurdo os privilégios da desigualdade e reavivam "uma forte tendência a (aceitar) a atuação governamental e legislativa fragmentadora do estoque constitucional de direitos e garantias trabalhistas" [1]. Trata-se de um processo de inovação decadente e, ao mesmo tempo, prematura do Estado Social de Direito, que amplia o uso da força para a dominação e tende a reduzir as suas práticas destinadas à busca de consenso.

Não se trata, no caso do Brasil, apenas de ensejar maus consensos ou ataques fortuitos à democracia liberal, mas de processos que compõem uma ação deliberada de um governo político extremista-conservador dos (ultra ou neo) "liberais", aliados ao extremismo neofascista, que impõem um novo modo de ser para a produção da Justiça.

Este novo "modo de ser" foi facilitado também pela extrema midiatização do jurídico, que ajudou a subverter a prestação de justiça. Trata-se de um movimento, tanto espontâneo como induzido, que são feitos em sequência, como chacina pública de reputações, nos quais é exercida uma hermenêutica incompatível com o sistema de normas da constituição, ofendendo a necessidade da distribuição equitativa da Justiça no Estado Social.

Este contraditório, entre a Justiça (amparada numa ideologia do conforto midiático) e a efetividade dos direitos fundamentais (como conduto de afirmação do Estado Social) deve ser tratado com atenção, pois ele (como produto histórico da modernidade democrática) versa sobre "os conteúdos, as ideias fundadoras, (sobre) a igualdade perante a lei e o direito do acesso à Justiça em condições de igualdade (…), não de suas lateralidades e das suas evasivas formalidades (…), (pois) esse contraditório essencial (no interior do Estado Social) (se) assenta em querer melhorar o que está — a partir do Direito — para dar um futuro à Justiça, sem se conformar com o que está a ser produzido pelo cotidiano" [2] (…).

Vejamos de maneira esquemática como se dá o consenso, em regra, para a formalização deste tipo de ordem jurídica democrático-liberal e social, utilizando a parábola de uma mesa de refeição, como exemplo para a compreensão da ordem concreta. Pensemos em alguém que "põe a mesa", na sua casa, para um jantar entre convidados aleatórios que devem ser acolhidos numa ordem, que está sendo partilhada por indivíduos de diferentes posições sociais e origens e que, para "funcionar" e ser previsível, deve assumir uma determinada conformação regrada e aceita internamente, tanto para se proteger das eventuais externalidades perturbadora, como para “prestigiar” os circunstantes presentes. A mesa — de mogno ou de plástico — os pratos, de porcelana ou chineses; os talheres de prata ou ferro fundido; a toalha de linho, os guardanapos, as refeições –todo o ambiente– acondicionam a mesa para o desfrute dos convidados.

Os lugares das pessoas à mesa, já com os instrumentos de uso postos à disposição dizem muito a respeito do que será o jantar. Se ele tornar-se-á uma simples celebração formal, se vai ser servido com mais (ou menos) hierarquia, se as pessoas que estão na mesa, pelos lugares que ocupam — mesmo em condições formais de igualdade — estarão mais próximas ou mais distantes de influir nas decisões do sujeito que exerceu o "poder" convocante do acontecimento.

Trata-se, em cada caso concreto com as suas especificidades (…) de uma "Constituição interna de espaço retórico que pressupõe, por um lado, estabelecer distinções, até agora (mais ou menos) suprimidas e por outro lado (fazer) algumas das distinções, que tem assentado a evidência ingênua da autonomia do espaço retórico frente a outros espaços vizinhos" (…) [3]. O espaço políticos interno do poder constituinte é formalmente livre, em relação ao espaço externo, no qual funciona a velha ordem a ser superada, mas a sua autonomia é relativa, pois fora da mesa constituinte as fontes materiais de geração do direito continua funcionando.

A parábola da mesa é a parábola da instituição de uma ordem: ela é pretendida, mas nem sempre realizada na vida real como foi prevista. O ideal concebido é — entre outros fatores — também condicionado pelo comportamento e as expectativas dos comensais, o que implica que a "ordem" resultante nunca será exatamente como quis o seu poder "instituidor". Aquele espaço regulado, todavia, vai se organizar dentro de alguns marcos projetados pelo anfitrião, cuja capacidade convocatória foi aceita sem restrições ou, se conflitante, foi um espaço consensuado.

Os sentidos que resultam da ordem acordada são orientados pelas normas emitidas pelo poder que as instituiu, mas estes sentidos também adquirem vida própria, mesmo que permaneçam estáveis por um certo tempo. O processo de configuração dos sentidos da ordem produz uma tensão, nos seus limites, em busca de um objetivo pressuposto que nunca é revelado totalmente na norma convocatória, mas que estará presente no processo Constituinte.

Demarquemos exemplos críticos destes limites: os convidados poderiam, por vontade própria, "trocar de lugares", para poder ocupar um lugar mais propício ao acordo ou à condução de seus interesses  — independentemente da permissão do anfitrião — sem que a ordem desmoronasse? Alguma normatização poderia (ou deveria) prever que — dentro da ordem — alguns comensais poderiam comer menos (reduzir seus desejos) para que outros comessem mais (ou acumular mais força), para manter seus privilégios? Os convidados poderiam sair da mesa, sem tumulto?

Esses parâmetros da ordem são claros ou ocultos — supostos ou induzidos — mas necessariamente traçam limites. Suas linhas de resguardo, de um lado, evitam a dissolução (anômica) do compartilhamento e, de outro, mantém o convívio tenso (previamente organizado) entre os circunstantes. O grau de acolhimento desta ordem, portanto, permite que pelas suas formas de recepção legítima, aqueles que não tenham as suas expectativas atendidas mantenham os compromissos de legitimação que os levaram até lá.

Num texto de minha autoria este tema está ligeiramente tratado, (numa transcrição ora adaptada): "Behemoth", figura bíblica do demônio da morte, é o nome de (uma) banda black-metal dos anos 90 na Polônia. Os seus vídeos sinistros veem o satanismo como autenticidade e liberdade. Já no livro do filósofo-jurista Franz Neumann do mesmo nome — Behemoth — é feita uma análise do Estado Nazista (…) para entendermos um outro lado da racionalidade jurídica moderna: assim como os roqueiros poloneses da banda Behemoth identificam os valores humanísticos no demoníaco (como se este fosse a propagação do amor autêntico e da liberdade), os valores selecionados por Neumann (no livro de nome bíblico) levam a uma outra reflexão: trata os perigos que cercam o Homem, segundo Valery, que seriam a "ordem" e a "desordem". Com esta (a desordem) se perderia a "coerência", dizia ele; com a outra (a ordem) sofreríamos o risco da "petrificação" [4]. O demônio seria o desconhecimento destas possibilidades.

Note-se que a definição do "sentido" (para o "sentimento" jurídico de Jhering) que a ordem jurídica assume na sociedade contemporânea, é sempre concreto, definido pelo "caminho da história e pela comparação" [5] e frequentemente judicializado. É possível constatar que nos Tribunais Constitucionais — com suas decisões entre a coerência e a petrificação — portanto, fluam tanto decisões que fazem a harmonização destes sentidos, coerentes com o Estado Social de Direito, bem como decisões que levam a sua desarticulação, pela resistência dos Tribunais a ajustar-se — petrificação — ao conteúdo primário do Estado Social, que é um Estado cujo "dever ser" é extrair da forma a concretude dos direitos fundamentais. Aqui está o imprevisto que vaga entra a coerência e a petrificação.

Os prolatores de tais decisões trazem para a "ordem concreta" a leitura que fazem da ordem normativa abstrata posta pelo Constituinte na Lei Constitucional, sempre em uma das suas possibilidades, embora o conceito de Estado Social, contido no Preâmbulo da sua Constituição obrigue, em cada momento da interpretação constitucional uma hermenêutica que "dê vazão" às possibilidades de igualdade e de solidariedade contidas no Preâmbulo. É nele que o Direito e a Política constituinte estão harmonizados e concentrados como "história e comparação", pois se a ordem, enquanto sistema de Justiça, não der vazão a este sentido preambular ela se esvai como ordem.

Tomemos o debate sobre o direito de greve como exemplo para melhor compreender o sentido das limitações a este direito, no caso concreto de uma greve nos "serviços essenciais". O exemplo vem da decisão do Tribunal Constitucional Espanhol (TCE), que indicou uma alternativa de interpretação da lei coerente com o sentido do Estado Social, ao examinar uma greve deflagrada neste tipo de serviço: desviou da petrificação e optou pela coerência do Estado Social.

O TCE modulou a essencialidade desta forma: "não há razão neste momento (de limitar) o direito de greve, (pois) a técnica de conciliação entre ambos os direitos, dos empresários e dos associados, no caso de greve nos meios de comunicação, desdobrando o momento temporal do exercício do direito" (vem da) "determinação concreta do conteúdo de serviços mínimos". É a mudança de posição dos circunstantes na mesa da democracia, que aqui está exposta, que permite chegar ao sentido da ordem, no registro maestro de Antonio Baylos [6].

Imaginar a possibilidade de mudança de posição nas relações de poder, que interferem no sentido das normas produzidas na "mesa" constituinte ajuda, de um lado, a compreensão do conteúdo normativo do Direito no Estado Social e, de outro, permite a compreensão de como se move o Sistema de Justiça horando seus pressupostos de legitimidade que moldaram o todo normativo para dar sentido às leis infraconstitucionais, de acordo com o Preâmbulo da Constituição.

Independentemente de qual seja o sentido, porém, o processo hermenêutico está lá para conciliar as fontes materiais com as fontes formais da sua produção, já que o direito moderno — fundado nas abstrações filosóficas iluministas — organiza um sistema normativo que quer possibilitar o máximo de coerência para chegar ao conteúdo material previsto naquelas abstrações. As normas, na lei positiva, contêm um "dever ser formal”, “se é que ainda se pode manter a ideia de norma jurídica (já que) alguns preferem falar em regras e princípios, (pois) a hermenêutica é uma tentativa de se manter a estrutura normativa ampliando as suas fontes de produção de sentido" [7].

Lembro aqui uma lição precisa de José Geraldo de Sousa Junior: a busca de uma alternativa para o direito posto, tanto pode ser encontrada na norma como pode ser fundada nos "dados derivados (das) práticas sociais criadoras de direitos e (assim) estabelecer novas categorias jurídicas para as relações solidárias de uma sociedade em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão, e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade" [8] que, no Estado Social, pode ser realizado dentro do quadro normativo inspirado no Preâmbulo da Constituição Social.

O Direito Alternativo, que buscava aproximar a norma dos princípios e buscava também rejeitá-las, se injustas, na resolução do caso concreto, sempre foi uma hermenêutica rebelde para buscar um mínimo de efetividade (coerência sem petrificação) dos direitos fundamentais nos quadros do regime ditatorial.

O Direito Alternativo fincou-se na teoria do direito crítico, na época da ditadura militar, assim como hoje a dogmática do concreto está para a Constituição do Estado Social, legítima e vigente, assediada pela exceção. O "direito alternativo" hoje pode ser, portanto, a produção da seguinte conexão de sentidos: preâmbulo, normas que apontam os direitos fundamentais mais princípios vinculativos da busca igualdade e da liberdade para a fruição destes direitos.

Continua parte 2.

 


[1]*A introdução ao tema que ora proponho já tinha sido elaborada para um outro texto, também de minha autoria, publicado em GENRO, Tarso et. al. Legitimidade Concreta no Estado Social. In: MATTOS, Viviann Brito (Org.); D'AMBROSO, Marcelo José Ferlin (Org.). Democracia, Direito do Trabalho e Novas Tecnologias. Belo Horizonte: RTM, 2022. Aquela introdução sofreu, aqui, pequenas alterações formais.

MENEZES, Mauro de Azevedo. (Texto solicitado ao autor) e Justiça do Trabalho sob Ameaça de Morte. Roteiro para uma Reação Socialmente Afirmativa. In: Resistência II. Defesa e crítica da Justiça do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p.118.

[2] PINTO, Eduardo Vera-Cruz. "O futuro da Justiça". Lisboa: Ed. Nova Veja, 2015,p.8.

[3] SANTOS, Boaventurade Sousa.O discurso e o poder.Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p.8.

[4] GENRO, Tarso. Cortes nas universidades são atos de exceção – É um direito dos reitores, alunos e servidores resistirem. GZH. Porto Alegre, 8 de maio de 2019. Disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2019/05/tarso-genro-cortes-nas-universidades-sao-atos-de-excecao-cjvec9f9g01ug01mamkh5x79j.html. Acesso em: 5 de set. de 2022.

[5] JHERING, Rudolf Von; Sobre el Nacimiento del Sentimento Jurídico. tradução e edição: Fernández-Crehuet, Frederico. Madrid: Trotta, 2008, p.33.

[6] BAYLOS GRAU, Antonio, "Servicios esenciales, servicios mínimos y derecho de huelga". 1ª Ed. Albacete: Editorial Bomarzo, 2018, p. 94.

[7] ROCHA, Leonel Severo. "Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico." Universidade de Coimbra. Editora: COIMBRA. p. 1042.

[8] JUNIOR, José Geraldo de Sousa. O Direito que emerge do espaço público. Instituto HumanistasUnisino,2015. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/547896-o-direito-que-emerge-do-espaco-publico-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior. Acesso em: 24 de set. de 2022. (José Geraldo é o maior expoente da crítica do direito a partir do direito alternativo, ao qual toda uma geração filiou-se guiada pelo professor Roberto Lyra Filho, que indicou o professor José Geraldo e a mim, bem como outros jovens juristas, o dever de desenvolvê-lo. Sem dúvida, hoje, José Geraldo é o nosso expoente).

Autores

  • foi ministro da Justiça, da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, do IAB, autor de livros e textos de Teoria do Direito publicados no Brasil e no exterior.

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