Escritos de Mulher

O "cala a boca" já está morto, bem morto no Brasil

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  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

30 de março de 2022, 13h54

"Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?", contestava Chico Buarque cinco décadas atrás. O Brasil vivia os anos de chumbo. Artistas eram exilados e havia censura expressa às manifestações culturais de cunho político. Para se fazerem ouvidos, o próprio Chico, assim como Caetano, Gilberto Gil, João Bosco, Geraldo Vandré e tantos outros driblavam os militares do DOI-Codi com suas letras geniais.

Spacca
A quilômetros de distância, Jimi Hendrix distorcia o hino nacional norte-americano em sua guitarra, reproduzindo sons de metralhadoras e bombas, contra a guerra do Vietnã. Era o festival de Woodstock, que se tornou um símbolo da contracultura e reuniu quase 500 mil pessoas em uma pequena cidade de Nova York. Como silenciar aquelas cordas e o alarido da multidão?

Não faltam exemplos de que cultura e política sempre andaram lado a lado. Por isso assistimos, estupefatos, no último domingo (27/3), à ordem de calar artistas no Lollapalooza, festival de música internacional.

Após dois dias de shows, diversos foram os relatos de manifestações, nos palcos e na plateia, que ora expressavam descontentamento com o presidente Jair Bolsonaro, ora aclamavam seu principal rival nas eleições que se avizinham — o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A artista Pabllo Vittar ergueu no palco uma toalha com o rosto de Lula, e Marina, cantora britânica, protestou contra Bolsonaro e o presidente da Rússia, Vladmir Putin.

Os episódios não foram bem recebidos pelos correligionários do presidente da República e, no dia 26 de março, o Partido Liberal protocolou representação ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Argumentando que tais manifestações configurariam campanha antecipada, o partido — ao qual Bolsonaro está filiado para disputar a reeleição — pediu à Corte Eleitoral que vetasse qualquer tipo de "propaganda", positiva ou negativa, em favor ou desfavor de qualquer candidato à presidência, sob pena de multa e de a polícia impedir a continuidade do festival.

Este, que parecia um pedido nonsense, um devaneio autoritário divorciado da boa técnica jurídica, ao invés de rechaçado de plano, acabou como principal assunto do meio jurídico nos últimos dias.

Surpreendendo a todos, o ministro Raul Araújo, do TSE, monocraticamente, acolheu o pedido do PL e proibiu "a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos musicais que se apresentem no festival". Aplicou multa de R$ 50 mil por ato de descumprimento.

Partiu o ministro da premissa de que: "A manifestação exteriorizada pelos artistas durante a participação no evento, tal qual descrita na inicial, e retratada na documentação anexada, caracteriza propaganda político-eleitoral". Eis o principal equívoco da decisão.

O artigo 36-A da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições) assegura que, desde que não envolvam pedido explícito de voto, não configuram propaganda eleitoral antecipada a menção à pretensa candidatura, a exaltação das qualidades pessoais das pré-candidatas e dos pré-candidatos, ou a divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas. No mesmo sentido é o artigo 3º da Resolução 23.610/2019 do próprio TSE.

Ou seja: dizer-se de oposição, expor seu descontentamento com o presidente da República, ou demonstrar admiração por alguém que poderá ser candidato no próximo pleito são ações albergadas pela liberdade de expressão e pelo direito de manifestação política individual, que não configuram, de forma alguma, campanha antecipada.

Isso, inclusive, foi expressamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADI 5.970, que tratava da vedação aos showmícios: "É também assegurado a todo cidadão manifestar seu apreço ou sua antipatia por qualquer candidato, garantia que, por óbvio, contempla os artistas que escolherem expressar, por meio de seu trabalho, um posicionamento político antes, durante ou depois do período eleitoral".

A decisão do TSE, contudo, não chegou a ser efetivada. Como o PL não apresentou corretamente o CNPJ e o endereço da empresa que produz o Lollapalooza, o oficial de justiça não conseguiu intimá-la.

E como "amanhã há de ser outro dia", mal raiou segunda-feira (28/3), o ministro Edson Fachin afirmou que levaria "imediatamente" o caso ao Plenário do STF e que "a posição do tribunal será a decisão majoritária da Corte, cujo histórico é o da defesa intransigente da liberdade de expressão". O ex-ministro Celso de Mello chamou a decisão de "manifestação distópica" (veja as declarações aqui). Diante da repercussão, o PL desistiu da ação. Na terça-feira (29/3), o ministro Raul Araújo revogou sua própria decisão.

Do ponto de vista jurídico, portanto, a questão está resolvida, sem grandes consequências. O último dia de festival ocorreu normalmente, com escancaradas manifestações políticas, como sói ocorrer em uma democracia.

O fantasma da decisão, contudo, vaga no ar de um País que ainda insiste em flertar com o autoritarismo e com a censura. "Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se estava bem morto", dizia Shakespeare. As chagas dos anos de chumbo estão abertas e o impacto dessa perigosa decisão pode ser invisível aos olhos.

É preciso permanecer vigilante. O debate ocorreu em torno de um festival com estrutura e visibilidade internacionais — cujos produtores teriam condições de rebater judicialmente a decisão, se intimados fossem, e de arcar com os valores de multa arbitrariamente impostos — e que reunia artistas com expressão no cenário mundial. Decerto, não faltariam a músicos como Criollo, Emicida, Marcelo D2, dentre outros, o brio e os meios para resistir a uma determinação ilegal.

Essa não é a realidade da maioria dos artistas e dos produtores culturais brasileiros. Em um país de dimensões continentais, não é difícil supor que, enquanto essas linhas são escritas, alguma banda se apresenta em um coreto central. E se, por hipótese, o vocalista levantar uma bandeira de seu ídolo político, de espectro ideológico oposto ao da autoridade local? O gatilho pode impulsionar os autoritários de plantão e decerto alguém falará em punição, multas impagáveis ou, quiçá, crime de desobediência.

Conquanto pontuais, os ataques à liberdade de expressão — como o orquestrado contra o Lollapalooza — podem gerar o efeito de sopitar o debate público pela intimidação, levando artistas, jornalistas e cidadãos em geral a se resignarem, deixando de manifestar o que pensam por medo de punições. É o chamado "chilling effect", um efeito inibidor.

Há debate semelhante na ADPF 799, que versa sobre liberdade de expressão. Em sua petição inicial, Daniel Sarmento explica que "a livre expressão não se esgota na proibição de censura prévia, projetando-se também para o momento ulterior, para impedir a penalização daquele que exerceu legitimamente o seu direito fundamental".

E isso, segundo o autor, tem uma especial razão de ser: "Caso contrário, além das injustiças que fatalmente seriam perpetradas contra os críticos mais corajosos dos poderosos de plantão, esse modelo teria efeitos sistêmicos nefastos, pois induziria a sociedade ao silêncio, empobrecendo os debates sociais e prejudicando o direito à informação do público. É o que a literatura denomina de 'efeito resfriador' do discurso (chilling effect), que pode comprometer a vitalidade da democracia". Eis o maior perigo da decisão que tentou calar o Lollapalooza.

O STF é peremptório em matéria de liberdade de expressão. Na ADPF 130, deixou claro que "não há liberdade de imprensa pela metade" e que a "plena" liberdade de imprensa é "categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia", "inclusive a procedente do Poder Judiciário". Nas palavras do Ministro Celso de Mello, "a censura governamental, emanada de qualquer um dos três poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público".

Já na ADPF 4.815, a Suprema Corte reforçou taxativamente: "A Constituição do Brasil proíbe qualquer censura. O exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceado pelo Estado ou por particular".

Não poderia ser diferente a posição do Supremo Tribunal Federal. Afinal, a liberdade de expressão está na essência da democracia e é condição necessária ao seu desenvolvimento. Não se pode chamar de regime democrático aquele em que as pessoas sejam impedidas de dizer o que pensam ou de manifestar suas preferências políticas.

Em uma sociedade plural, o fluxo de ideias e de opiniões deve ser sempre pulsante e livre de qualquer interferência autoritária. Foi o que se viu no festival.

A reação da imprensa e das redes sociais, as manifestações de artistas de diferentes vertentes ideológicas, bem como o pronto posicionamento do ministro Edson Fachin mostraram a todos que, sim, ainda vivemos em um Estado Democrático de Direito. Nossa Carta Cidadã traz, nos incisos IV e IX do artigo 5º, a proteção à liberdade de pensamento e expressão "da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".

A mensagem que se extrai desse episódio é a de que nem mesmo os poderes constituídos podem se arvorar na condição de censores da opinião política de cada um. Sempre que o fizerem, haverá resistência. Não vão "abafar nosso coro a cantar na sua frente".

Autores

  • é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC Rio e da FGV Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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