Observatório Constitucional

A busca da verdade na jurisdição constitucional

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

26 de março de 2022, 8h00

Assim começa essa história. "O que é verdade?", perguntou Pilatos. Em seguida, o governador da Judeia partiu. Não lhe interessava ouvir a resposta [1].

Mas, de fato, o que é a verdade? Na Grécia, os caminhos desembocam no "prado da Verdade" ou revelam os "contornos de uma planície chamada Alétheia" [2].

Foi nessa mesma Grécia — a arcaica — que três personagens, o adivinho, o aedo e o rei justiceiro, tinham em comum o privilégio de serem dispensadores da Verdade, "pelo simples fato de terem qualidades que os distinguem" [3]. Pouco importava a qual processo eles submeteram os fatos de modo a alcançar o que poderia vir a ser a verdade. Revelavam-na em razão de qualidades intrínsecas das quais eram dotados.

No Estado Constitucional contemporâneo — do qual o Brasil é adepto desde 1988 —, contudo, o procedimento pelo qual a verdade é alcançada, importa. Peter Häberle chegou a indagar: "O Estado, por sua vez, não necessitou de séculos para chegar ao Estado constitucional, no qual declarações materiais e processuais sobre o tema da verdade são possíveis e certas 'condições de verdade' são satisfeitas?". Sim, é a resposta. Logo, "na medida em que a comunidade dos povos se 'constitucionaliza', ela também pode se integrar gradualmente aos problemas da verdade e apresentar pretensões de verdade" [4].

Há justiça sem verdade? Estaria o Poder Judiciário, desonerado de, em suas decisões, perseverar pela posição verdadeira [5]?

O Supremo Tribunal Federal, apreciando a ADPF nº 153 (relator ministro Eros Grau, DJe 6/8/2010), tratando da recepção, ou não, pela Constituição de 1988 da Lei nº 6.683/79, a Lei de Anistia, assegurou o acesso a documentos históricos como forma de exercício do "direito fundamental à verdade". Está reconhecido. Mas, para além de um direito fundamental à verdade titularizado pelos particulares, há um dever fundamental com a verdade, pelo Poder Judiciário.

O Código de Processo Civil prevê no inciso I do seu artigo 77 como sendo um dos deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, "expor os fatos em juízo conforme a verdade". Chega, inclusive, a considerar litigante de má-fé aquele que "alterar a verdade dos fatos" (artigo 80, II). Ao dispor sobre a petição inicial, o artigo 319, VI, do CPC reclama que ela indique "as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados".

Qual seria, portanto, o telos do devido processo legal? A Constituição responde por meio desses quatro incisos do artigo 5º: "LIII — ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV — ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; e LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". Quatro incisos. O quadrado mágico do due process of law.

São comandos que encontram no Código de Processo Civil a sua densificação, dada, entre outros dispositivos, pelo artigo 369, que assim dispõe: "As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz".

O descobrimento da verdade — na mesma acepção de Martin Heidegger [6] — é o telos do Poder Judiciário brasileiro. Por isso, o artigo 378 do CPC diz: "Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade".

Como a necessidade de estar sempre aberto para a verdade é perene, o inciso II do artigo 504 do CPC diz não fazer coisa julgada "a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença". É como diz Moraes Moreira na música 'Verdade": "Verdade ninguém pode ser o seu dono". Sequer o trânsito em julgado é capaz de impedir o seu desvelamento (usando, uma vez mais, expressão de Martin Heidegger).

Se a verdade constitui o pináculo do processo penal e do processo civil, então o que dizer acerca do processo constitucional? Especificamente, quanto às ações ínsitas ao controle concentrado de constitucionalidade, quais sejam, a ação direta de inconstitucionalidade (por ação e omissão), a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de prefeito fundamental. Estaria o Supremo Tribunal Federal, ao realizar a Constituição por meios dessas ações, desonerado do seu dever de conduzir os casos pela higidez dos fatos e das provas a partir de quais é possível, após grave escrutínio hermenêutico, alcançar uma resposta que, para além de ser a correta (como previra Ronald Dworkin) [7], seja a verdadeira?

Desenvolvendo ideias a esse respeito, Luiz Guilherme Marinoni assevera que "o direito processual constitucional ainda não percebeu que a Corte simplesmente não pode decidir sobre fatos constitucionais na falta de critérios aptos a permitirem a racionalização de seus raciocínios probatórios, decisório e justificativo" [8].

Para Marinoni, "invocar fatos sem a devida demonstração e base em critérios racionais é o mesmo que aludir a 'alegorias', ou melhor, a justificativas insinceras e retóricas a uma interpretação que, bem vistas as coisas, nada tem a ver com a concretização da Constituição com base nos fatos, constituindo simples decisão normativa com suporte numa artificial maquiagem em que dele se vale de forma inapropriada" [9].

Se uma corte constitucional se coloca na posição de dizer a verdade a partir da emoção, da retórica, da opinião, da força e mesmo da política, impondo suas decisões por meio de estocadas do poder, então toda a autoridade da qual ela deveria se revestir, e os caminhos os quais deveria percorrer — fatos, provas, discurso racional e justificação idônea —, já se perderam. Para Jacob Bazarian, "quando não se respeitam as leis ou princípios lógicos, o pensamento perde sua precisão, sua coerência e consequência, e torna-se incoerente e contraditório" [10]. Tempestades virão, podem acreditar.

Se de nada vale a instrução do feito, suas provas, perícias e oitivas de autoridades no assunto; se a emoção conduz o discurso, deixando de lado a razão; se reitera-se que não há fatos sindicáveis a ela; se a retórica substitui a demonstração objetiva; se não há integridade no percurso jurisprudencial; então, de fato, os elementos constitutivos da ação decisória do Supremo Tribunal Federal não se distinguem tanto de uma casa política. O Senado Romano, por exemplo, também era investido da autoridade de magistratura suprema [11]. Voltar materialmente até lá seria um grande retrocesso.

Encerremos os tabus que já morreram. O STF aprecia fatos e provas, sim, mesmo em sede de jurisdição concentrada. Há, no rito legalmente previsto, previsão de instrução do feito. Provas são coletadas, peritos podem lançar pareceres e autoridades devem ser ouvidas [12]. O ciclo converte a interpretação em aplicação; o texto fica para traz e nasce a norma constitucional; e a Constituição, que até então era apenas escrita, transforma-se em Constituição viva. Viva. É nessa aurora que a jurisdição constitucional acontece.

Tudo submetido a um rito legal. A ação direta de inconstitucionalidade — incluindo a por omissão — e a ação declaratória de constitucionalidade são regidas pela Lei nº 9.868/99, que, em seu artigo 9º, §1º, diz: "Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública [13], ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria" [14].

No STF, uma emenda regimental, a de número 26, publicada em 22 de outubro de 2008, trouxe para o regimento algo novo. O caput do artigo 96 diz: "Em cada julgamento a transcrição do áudio registrará o relatório, a discussão, os votos fundamentados, bem como as perguntas feitas aos advogados e suas respostas, e será juntada aos autos com o acórdão, depois de revista e rubricada". O § 1º, por sua vez, anota: "Após a sessão de julgamento, a Secretaria das Sessões procederá à transcrição da discussão, dos votos orais, bem como das perguntas feitas aos advogados e suas respostas".

Os comandos acima são consequentes ao parágrafo único do artigo 124 do mesmo RISTF: "Os advogados ocuparão a tribuna para formularem requerimento, produzirem sustentação oral, ou responderem às perguntas que lhes forem feitas pelos ministros".

É difícil imaginar, até mesmo considerando a necessidade de preservação da sua autoridade, questionamentos formulados por ministros do STF a patronos acerca do direito em si. Logo, outra possibilidade não nos resta que não seja entender esse bloco de comandos regimentais como sendo franquias outorgadas ao Supremo para, perante os patronos e patronas, questioná-los sobre fatos e provas.

Michel Foucault sustenta que as práticas judiciárias constituem "uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas" [15]. É preciso vindicar o incremento da qualidade do processo constitucional por meio do refinamento da instrução e a consequente aderência dessa instrução à decisão e à sua justificativa, reconhecendo-se a presença de fatos e provas e entendendo que a Suprema Corte tem um dever indeclinável com a verdade nas decisões que profere.

Façamos o contrário do que fez Pilatos. Na jurisdição constitucional abstrata, perseveremos pela verdade sem lhe dar as costas. O começo é o fim. O fim é o começo.

 


[1] Agradeço a leitura antecipada dos colegas Rodrigo Barbosa e Ana Gabriela Pereira Matos, colegas de escritório, com quem dividi impressões a respeito do texto.

[2] A Metafísica de Aristóteles assim consignou: "Dizer do que é que não é, ou do que não é e é, é falso, enquanto dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro".

[3] Detienne, Marcel. Mestres da verdade na Grécia arcaica: como abertura De volta à boca da verdade. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, p. VIII.

[4] Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 55.

[5] "Houve na Grécia, portanto, uma espécie de grande revolução que, através de uma série de lutas e contestações políticas, resultou na elaboração de uma determinada forma de descoberta judiciária, jurídica, da verdade. Esta constitui a matriz, o modelo a partir do qual uma série de outros saberes — filosóficos, retóricos e empíricos — puderam se desenvolver e caracterizar o pensamento grego". Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003, p. 55.

[6] Sobre o descobrimento da verdade, Martin Heidegger anota: "Para se ver que, de fato, na mesma sentença também se fala da verdade, basta apenas recordar, antes, a palavra grega para o que nós chamamos de verdade: αλήθεια, a se traduzir adequadamente por descobrimento. Com isso, porém, não se ganha muito enquanto não nos transferirmos para toda a força significativa, e se nos tornar claro, então, que não se trata de esclarecer um significado qualquer de uma palavra qualquer. Sem dúvida, nós compreendemos provisoriamente o significado da palavra grega para verdade: desencoberto, não velado, não encoberto (…)." Heidegger, Martin. Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade.” Heidegger, Martin. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. Revisão da tradução: Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007 (Coleção Pensamento Humano), p. 110.

[7] Toda a construção está erguida nas obras: Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Direito e Justiça). Também em Uma questão de princípios. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção Direito e Justiça). Por fim, em O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Direito e Justiça).

[8] Marinoni, Luiz Guilherme. Os fatos no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 11.

[9] Marinoni, Luiz Guilherme. Os fatos no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 12.

[10] Bazarian, Jacob. O problema da verdade. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1985, p. 117.

[11] A esse respeito escreveu Hannah Arendt: "Mas, se a diferenciação institucional americana entre o poder e autoridade possui traços nitidamente romanos, por outro lado seu conceito de autoridade é completamente diverso. Em Roma, a função da autoridade era política e consistia em dar conselhos, ao passo que na república americana a função de autoridade é jurídica e consiste na interpretação. O Supremo Tribunal deriva sua autoridade da Constituição como documento escrito, enquanto o Senado romano, os patres ou pais da república romana detinham autoridade porque representavam, ou melhor, reencarnavam os ancestrais, cuja única base de pretensão à autoridade no corpo político era exatamente o fato de o terem fundado, de sempre os 'pais fundadores'". Arendt, Hannah. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 258.

[12] A Lei nº 9.868/99 diz que, ao apreciar a ação, "o relator pedirá informações aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado" (artigo 6º). Depois, serão ouvidos o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República (artigo 8º).

[13] Nesse ponto, recomenda-se a leitura do artigo "Instrução probatória e funções da audiência pública na jurisdição do STF", de Paula Pessoa Pereira e Luiz Henrique Krassuski Fortes, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-05/observatorio-constitucional-instrucao-probatoria-funcoes-audiencia-publica-jurisdicao-stf

[14] A Lei nº 9.868/99, tratando da ação declaratória de constitucionalidade, dispõe: "Art. 20. § 1º Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria". A Lei nº 9.882/99, que regula a arguição de descumprimento de preceito fundamental, assevera, em seu artigo 6º, § 1º, que, "se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria".

[15] Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003, p. 11.

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