Opinião

Agravo de instrumento nas ações sobre direitos de crianças e adolescentes

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26 de março de 2022, 9h21

O atual Código de Processo Civil (CPC), Lei Federal nº 13.105/2015, em seu artigo 1.015, buscando racionalizar o manejo do recurso de agravo de instrumento, apresenta um rol contendo as hipóteses nas quais seria cabível a utilização de tal espécie recursal.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), chamado a interpretar tal dispositivo, firmou, em sede de recurso repetitivo, tema nº 988, a seguinte tese jurídica:

"O rol do artigo 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação."

Entre as normas fundamentais do processo civil brasileiro, consta que tal ramo do direito deverá ser interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição Federal [1], incluindo os mandamentos contidos nos artigos 226 e 227 da Carta Magna, que determinam que as famílias têm especial proteção do Estado, bem como que é dever desse assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, seus direitos, colocando-os a salvo de toda forma de negligência discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O próprio CPC, no parágrafo único, de seu artigo 693, alerta que as ações de família que versarem sobre interesses de crianças ou de adolescentes deverão observar os procedimentos previstos em legislação específica.

Em regra, tal legislação específica é a Lei Federal nº 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dispõe sobre a proteção integral, inclusive na esfera judicial, aos cidadãos com idade inferior a dezoito anos.

Nas ações judiciais que abordem ou impactem, ainda que de forma indireta, reflexa, o direito à convivência familiar de crianças ou adolescentes, além das disposições contidas no ECA, também se faz necessário a observância da orientação contida no §1º, do artigo 1º da Lei Federal nº 12.010/2009, no sentido de que a intervenção estatal, em cumprimento ao disposto no caput do artigo 226 da Constituição Federal, deverá ser prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social das famílias naturais, junto às quais a criança e o adolescente devem permanecer.

Sendo as normas contidas no ECA, em geral, as que norteiam os procedimentos processuais a serem observados nas ações de família envolvendo crianças e adolescentes, inclusive no que toca aos recursos, que devem ter tramitação prioritária nos Tribunais [2] [3], inarredável se mostra a incidência dos princípios processuais protetivos [4] elencados nos diversos incisos, do parágrafo único, do artigo 100 de tal Estatuto, notadamente, os princípios da intervenção precoce [5], urgente [6] e mínima [7].

A urgência da intervenção judicial, assim como a prioridade de tramitação processual, inclusive a recursal, se justificam pelo fato das questões de família retratarem verdadeiros direitos da personalidade dos cidadãos, direitos fundamentais da pessoa humana, como bem ensina o ministro Luiz Fux:

"A tutela de urgência está intimamente liga à tutela dos direitos de família na medida em que esse ramo versa sobre direitos fundamentais, direitos indisponíveis. É exatamente um campo onde a urgência se faz presente a exigir uma pronta atuação do Poder Judiciário." [8].

Desta forma, toda e qualquer decisão judicial que potencialmente possa causar interferências arbitrárias ou ilegais na vida particular ou familiar [9] de crianças ou adolescentes, ameaçar, violar [10] ou prejudicar [11] direitos de tais cidadãos, assim como submetê-los a procedimentos probatórios incorretos, desnecessários, repetitivos, invasivos ou que possam gerar sofrimento, estigmatização ou exposição de suas imagens [12], se caracterizará como se tutela provisória de urgência fosse, face ao perigo de irreversibilidade dos virtuais danos biopsicossociais causados pelos efeitos de tais decisões, assim como pelo risco ao resultado útil dos respectivos processos, sendo tais interlocutórias passíveis de serem confrontadas, controladas, através do imediato manejo do agravo de instrumento, seja com fulcro no artigo 1.015, inciso I, do CPC, seja com arrimo no precedente vinculante firmado pelo STJ, tema/repetitivo nº 988.

Tal assertiva também encontra arrimo no fato de crianças e adolescentes se revestirem da peculiar condição de pessoas em desenvolvimento [13], o que atrai a obrigação legal do Poder Judiciário em aplicar, de forma precoce e prioritária, as medidas e os procedimentos que efetivamente possibilitem a manutenção, o fortalecimento [14] ou a formação dos vínculos familiares e comunitários, notadamente nos contextos que apresentem riscos, ainda que latentes, ao desenvolvimento integral [15] de tal grupo de pessoas [16] vulneráveis.

Por fim, o cabimento do agravo de instrumento face a tais decisões interlocutórias, também se justifica pelo fato de as questões atinentes à convivência parental e à participação na vida familiar, incluindo as discussões a respeito do exercício do poder familiar [17] e as atinentes a guarda dos filhos, estarem compreendidas no direito fundamental de liberdade [18] das crianças e dos adolescentes, direito este do qual ninguém pode ser privado sem que seja observado o devido processo legal [19].

Infância e adolescência são tempos breves e preciosos, que não voltam, não retroagem, períodos que impactarão emocionalmente em todas as fases da vida adulta, sendo a urgência uma necessidade vital, não um privilégio processual.


[1] CPC. Artigo 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.

[2] ECA. Artigo 152. (…). § 1º. É assegurada, sob pena de responsabilidade, prioridade absoluta na tramitação dos processos e procedimentos previstos nesta Lei, assim como na execução dos atos e diligências judiciais a eles referentes.

[3] CPC. Artigo 1.048. Terão prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, os procedimentos judiciais: (…). II – regulados pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) .

[4] STJ. REsp 1653359/MG, rel. ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, julgado em 19/10/2017, DJe 1/2/2018).

[5] ECA. Artigo 100. (…). Parágrafo único. (…). Inciso VI – intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;

[6] Decreto Federal nº 9.603/2018. Artigo 2º. (…). Inciso V – a criança e o adolescente devem receber intervenção precoce, mínima e urgente das autoridades competentes tão logo a situação de perigo seja conhecida;

[7] ECA. Artigo 100. (…). Parágrafo único. (…). Inciso VII – intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente;

[8] FUX, Luiz. A tutela de urgência na jurisdição de família: cautelares, tutela antecipada, Revista Emerj, Rio de Janeiro, v. 4, nº 14, p 51-64, 2001. disponível em https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/73647, acesso: março/2022.

[9] Decreto Federal nº 99.710/1990. Artigo 16 — 1. Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação. 2. A criança tem direito à proteção da lei contra essas interferências ou atentados.

[10] ECA. Artigo 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.

[11] Decreto Federal nº 9.603/2018. Artigo 5º. (…). Inciso I – violência institucional – violência praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência;

[12] Decreto Federal nº 9.603/2018. Artigo 5º. (…). Inciso II – revitimização – discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem;

[13] ECA. Artigo 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

[14] ECA. Artigo 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

[15] ECA. Artigo 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.

[16] Lei Federal nº 13.257/2016. Artigo 13. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios apoiarão a participação das famílias em redes de proteção e cuidado da criança em seus contextos sociofamiliar e comunitário visando, entre outros objetivos, à formação e ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, com prioridade aos contextos que apresentem riscos ao desenvolvimento da criança.

[17] ECA. Artigo 199-C. Os recursos nos procedimentos de adoção e de destituição de poder familiar, em face da relevância das questões, serão processados com prioridade absoluta, devendo ser imediatamente distribuídos, ficando vedado que aguardem, em qualquer situação, oportuna distribuição, e serão colocados em mesa para julgamento sem revisão e com parecer urgente do Ministério Público.

[18] ECA. Artigo 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: (…). Inciso V – participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;

[19] Constituição Federal. Artigo 5º. (…). LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

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