Ambiente Jurídico

Águas brasileiras: justiça e pacificação social

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

26 de março de 2022, 8h00

Encerrando a semana em que se comemora o Dia Mundial da Água, em 22 de março, rememoro os famosos versos de Luiz Gonzaga — escritos em 3 de março de 1947 —, que em prosa e verso cantava a saga do dia em que morreu de sede o alazão e a asa branca bateu asas do sertão e com ela foi-se embora o companheiro de Rosinha esperando, numa triste solidão, a chuva cair de novo para voltar para o sertão.

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O Dia Mundial da Água foi criado pela ONU, em 1992, para ser comemorado no mesmo mês de março em que Gonzaga compôs "Asa Branca", e em que Tom Jobim musicou "Águas de Março", que fecham o verão e que são promessa de vida.

Nossos poetas brasileiros talvez tenham inspirado a Organização das Nações Unidas a definirem o Dia Mundial da Água no mês de março, mas sobretudo inspiraram nós, brasileiros, na compreensão de que a água ou a falta dela mata, faz perecer plantas e animais, empobrece os solos, provoca migrações humanas, prejuízos, perdas e sofrimento e, mais do que promessa, é vida. Água é promessa de vida na acepção mais ampla do termo: vida biológica, vida social, vida emocional, vida econômica.

A falta de água é a principal causa de migrações no mundo estimando-se que 700 milhões de pessoas terão que se deslocar de seus locais de origem até o ano de 2030.

Os dados da água no Brasil são monumentais, assim como nossas proporções continentais: por dia são utilizados 1.081 m³/s, o que significa o equivalente a 37.835 piscinas olímpicas, destes, 67,2% utilizados pela irrigação. São necessários, em média, 18 mil litros de água para produzir um quilo de carne bovina ou 11 mil litros para se produzir uma calça jeans.

A irrigação de produtos agrícolas, cada vez mais presente, já reflete o problema das mudanças climáticas, em que a escassez de chuvas ou mudança de seu regime, tem colocado milhões de hectares de terra em baixa produtividade.

O rebaixamento dos aquíferos, decorrente do uso excessivo, como também, a má conservação dos solos, pela sua compactação ou pela lixiviação, dentre outros impactos, decorrentes do seu mau uso, têm impedido ou dificultado a recarga hídrica, e por sua vez, a disponibilidade de água em âmbitos subterrâneo e superficial.

Quanto à qualidade da água há forte impacto decorrente de esgotos não tratados produzidos nos centros urbanos. Apenas 25% da população brasileira têm acesso à água tratada associada com coleta e tratamento de esgotos. São mais de 110.490 km de rios contaminados por esgotos e efluentes com DBO (demanda básica por oxigênio) acima de 8 mg/l quando a legislação aponta que acima de 4 mg/l já são considerados rios poluídos.

Segurança hídrica, por sua vez, que garanta a paz e desenvolvimento nacional equilibrado, envolve uma série de questões complexas a serem organizadas no território. A água tem que estar não muito longe, para que os custos com sua adução sejam viáveis. Também não pode estar muito poluída, viabilizando-se financeiramente o seu tratamento. Ainda, a água não pode ultrapassar os limites de resiliência do território, pois enchentes representam perdas de vidas, de produção agrícola e industrial, de infraestruturas como estradas e pontes e, via de consequência, perdas humanas e econômicas severas.

Não menos importante, que a água esteja disponível, o tempo todo, para todos os usos múltiplos. O uso para irrigação pode comprometer usos a jusante para energia. O represamento de água para a produção de energia pode comprometer usos turísticos e recreativos, impactando a economia movida por hotéis, pousadas, restaurantes, comércios, milhares de empregos e arranjos produtivos. Isso, para dar alguns exemplos.

A conjuntura mundial e brasileira aponta uma tendência de acirramento de conflitos pelo uso da água, o que pode levar centenas de situações aos tribunais nos próximos anos. No ano de 2019, a Comissão Pastoral da Terra, ligada à Igreja Católica, editou um relatório apontando 489 conflitos por água no país, noticiando que 69.793 famílias se envolveram nesses conflitos.

É um desafio coletivo importante gerir os estoques de água doce existentes, sem comprometer a biodiversidade e o equilíbrio ambiental, garantindo que os usos sejam harmonizados, o que se faz por meio de uma eficiente gestão da água que, como se pode imaginar, não é tarefa trivial para governos e sociedade.

A legislação brasileira que trata da gestão dos recursos hídricos completa em 2022, 25 anos de existência. A Lei 9.433, de 1997, prevê a gestão descentralizada e participativa, por meio dos comitês de bacias e conselhos de recursos hídricos. Apesar de seus 25 anos, ainda não atingiu maturidade suficiente, que possa atestar a implementação dos instrumentos de gestão por ela criados, como as outorgas de uso da água, a cobrança pelo uso da água, os planos de recursos hídricos, os enquadramentos dos corpos de água em classes e o sistema de informações sobre recursos hídricos.

Os dilemas nacionais referentes ao tema da boa gestão dos recursos hídricos se avolumam e agigantam. São velhos e novos dilemas ainda sem solução.

Os casos de conflitos pelo uso da água somente aumentam, de modo que é preciso que advogados, promotores de justiça, juízes e todos os operadores jurídicos passem a conhecer mais profundamente a matéria. A legislação de recursos hídricos é hermética porque requer conhecimentos técnicos e sistêmicos sobre vazões hídricas, cálculos, depleção de reservatórios, zonas de diluição de efluentes, reflexos sobre espécies e sobre a biodiversidade, dentre tantas outras questões.

Há casos exitosos de pacificação pelo uso da água que precisam ser melhor conhecidos e estudados para que sirvam de exemplo. Cita-se o caso da capital goiana que, depois de vários anos de falta de água para abastecimento público, pelo total esgotamento do manancial que abastece a cidade, implementou instrumentos efetivos, eliminando, com base em muito diálogo e muito planejamento, a falta de água para 44% da população do estado que vive na capital. A situação foi judicializada e somente resolvida quando todos os atores envolvidos, de boa vontade, se disponibilizaram a encontrar soluções práticas e efetivas.

Todos os desafios apontados, que são muitos e complexos, indicam a necessidade de que os atores que integram a justiça brasileira estejam prontos para dirimir os conflitos, pacificando-os, para a realização de uma justiça plena no tema da água. Ressalta-se aqui que como os sistemas processuais estabelecidos no Brasil apresentam suas dificuldades em dirimir conflitos envolvendo interesses difusos, qualquer discussão judicial pelo uso da água, tende a ser bastante difícil, onerosa e demorada.

Isso porque, em nenhuma hipótese, o uso da água afeta apenas um interessado e portanto, decisões que privilegiem um único usuário, que desconsiderem a pauta ambiental e ecológica e até mesmo as implicações intergeracionais, não serão boas decisões, ainda que a princípio um ou outro usuário tenha o direito legítimo ao uso da água.

Desta forma, é recomendável que no âmbito de demandas judiciais, como administrativas, sejam utilizadas, de forma ampla, ferramentas de conciliação, prestigiando o sistema participativo de recursos hídricos como única forma de sopesar os diversos interesses e se deliberar, tendo sempre em alvo, o atingimento do melhor interesse público e ambiental.

No caso de recursos hídricos, sempre, um bom acordo será melhor do que uma ótima lide e a pior decisão será aquela que não envolver todos os atores, que não integrar e conciliar todos os interesses e que não considerar que as águas não têm fronteiras políticas e que o ciclo hídrico envolve todo o planeta.

Temas complexos e multifacetados, como é o caso da água, exigirão dos sistemas jurídicos nacionais uma maturidade ímpar no seu trato. A justiça que deve dar a cada um o que é seu, neste caso, deverá considerar que os litígios se darão sobre um recurso natural que é nosso, de todos os brasileiros e de todos os seres vivos que dele dependem para sobreviver biológica, física, econômica e emocionalmente.

No tripé da sustentabilidade, a água é o quarto elemento, que unifica, coordena e integra a matriz ecológica, social e econômica brasileira. Sem água, em quantidade e qualidade suficiente, nenhum dos elementos da sustentabilidade se estrutura de forma adequada.

Refletir sobre o papel de todos num cenário de aumento de demanda e redução contínua de disponibilidade hídrica é crucial para o futuro do país e da humanidade. Revitalização de bacias hidrográficas, revisão de ocupação e uso do solo, efetividade e implementação da legislação ambiental e de recursos hídricos e garantia de segurança hídrica devem ser a tônica das próximas décadas no Brasil e no mundo e os sistemas jurídicos terão papel fundamental nesse debate.

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro "Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado".

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