Questão de Gênero

Dispensabilidade da investigação em crime de ação privada de autoria conhecida

Autores

  • Patricia Burin

    é delegada de polícia no estado de Santa Catarina mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

  • Fernanda Moretzsohn

    é delegada de polícia no estado do Paraná pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.

  • Gabriela Tisott Fruet

    é delegada de polícia do estado de Santa Catarina graduada pela Universidade de Caxias do Sul e pós-graduada em Segurança Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

25 de março de 2022, 8h00

Em nosso sistema, são previstos três tipos de crimes no que se refere ao início da persecução penal. A regra é que o crime seja promovido por meio de ação penal pública incondicionada. Isso significa que, ao saber da prática da infração penal, a autoridade policial deve atuar independentemente de qualquer provocação (isto é, de ofício) e sem esperar nenhum ato de autorização da pessoa ofendida ou de seus familiares. Nestes casos, também o Ministério Público atua independentemente da vontade da pessoa vitimada. Vale salientar que o Poder Judiciário, desde que provocado (princípio da inércia), sempre atuará (princípio da inafastabilidade da jurisdição).

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Por questões de política criminal, o ordenamento jurídico considera que alguns crimes devem receber tratamento diferente do exposto acima. Surgem assim os crimes movidos mediante ação penal pública condicionada e os crimes movidos mediante ação penal privada.

No caso dos crimes ditos "de ação penal pública condicionada”, a atuação do sistema de persecução penal ainda se dá oficiosamente, ou seja, por atuação de órgãos estatais (polícias e Ministério Público). Porém o início da persecução penal depende de uma condição, que pode ser a representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça. Sem o atendimento dessa condição de procedibilidade, ainda que exista algum interesse público na punição, não é possível que a Polícia Judiciária execute atos de investigação nem que o Ministério Público denuncie a pessoa que infringiu a norma.

Em se tratando de crimes "de ação penal privada" (como injúria, difamação, calúnia e dano), considera-se que a punição do infrator da norma interessa tão somente à vítima do crime, razão pela qual até pode ser feita uma investigação oficiosa (pela Polícia Judiciária), mas a ação penal jamais poderá ser inaugurada pelo Ministério Público. É a própria vítima ou os seus sucessores quem, por intermédio de advogado munido de poderes especiais, ingressará com a queixa-crime para que haja o processamento do suposto infrator à lei penal. O prazo para o ingresso de queixa-crime é relativamente curto: seis meses e decadencial, conforme previsto no artigo 44 do Código de Processo Penal.

Spacca
Neste artigo pretendemos discutir a respeito da (in)dispensabilidade de procedimento investigatório nesses casos em que só se processa o crime mediante queixa. Desde já alertamos o leitor que não desconhecemos posições doutrinárias que defendem a indispensabilidade do inquérito policial, posicionamento este também defendido por uma das coautoras. No entanto, defendemos que, nos casos de crimes de ação penal privada cuja autoria, materialidade e circunstâncias sejam conhecidas, nada justifica a atuação da Polícia Judiciária. A persecução penal deve ser iniciada diretamente em juízo.

Nos termos do artigo 103 do Código Penal, o ofendido — leia-se a vítima do crime — possui o prazo de seis meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, para exercer o direito de queixa, o que significa, em suma, que o prazo de seis meses tem início imediato quando o crime é praticado por pessoas conhecidas da vítima, tais como parentes, vizinhos, inimigos, entre outros. Não raras vezes os crimes de ação penal privada, a exemplo dos já citados acima, decorrem de conflitos do âmbito pessoal e familiar da vida das pessoas, tais como desentendimentos por herança, por limites de propriedade, por dissolução de sociedades, etc, e não de eventos sociais como um acidente de trânsito, em que a probabilidade de conhecimento da identidade do autor é reduzida.

A investigação criminal, nos termos do artigo 2º, §1º, da Lei nº 12.830/2013, tem o objetivo de apurar as circunstâncias, a materialidade e a autoria das infrações penais. Em se tratando de crime em que a autoria é conhecida, a instauração de procedimento de Polícia Judiciária é quase sempre inútil, ferindo de morte o princípio constitucional da eficiência (artigo 37, caput, da Constituição Federal).

Ora, se a investigação se presta a angariar elementos relacionados às circunstâncias, à autoria e à materialidade das infrações penais, não há propósito em instaurar procedimento em crimes "de ação penal privada", em que quem detém os indícios e provas da ocorrência da infração penal é a própria vítima. Suponha-se a situação de uma injúria ocorrida em um grupo de aplicativo de conversa. Basta a vítima exportar a conversa e demonstrar com o auxílio de testemunhas que a voz das mensagens ou o número é utilizado por determinada pessoa — no caso, o autor do crime. Nada justifica que se instaure um procedimento policial para tal caso.

As delegacias, em sua maioria, sofrem com o acúmulo de trabalho e a falta de efetivo policial. Os recursos devem ser bem aproveitados, não desperdiçados em procedimentos desnecessários, trabalhosos e ineficazes, sejam eles termos circunstanciados ou inquéritos policiais (como nos casos dos crimes contra a honra em que há a aplicabilidade da Lei Maria da Penha). Em se tratando de crime "de ação penal privada", havendo elementos que demonstrem a materialidade e a autoria reunidas e em poder da própria vítima, deve a autoridade policial indeferir, fundamentadamente, o requerimento de instauração de procedimento investigatório.

A vítima, estando municiada dos elementos de materialidade e de autoria do crime de ação penal privada, poderá propor o ingresso de queixa-crime junto ao Poder Judiciário de forma praticamente imediata, e não sofrer com a demora — justificada — de um procedimento policial, que no caso em concreto sequer terá finalidade, e será ato meramente burocrático.

Salienta-se que a vítima de um crime de ação penal privada, caso não necessite do trabalho das forças estatais investigativas, sequer precisa efetuar um registro policial acerca do crime, podendo tão somente efetuar o relato do ocorrido e juntar as os indícios e provas diretamente na queixa-crime. A propositura imediata de queixa-crime junto ao Poder Judiciário beneficia a celeridade do processamento, além da eficácia das instituições públicas, em especial, das polícias civis, cuja a atribuição de investigação é residual e é responsável pela apuração e formalização dos procedimentos policiais da maioria das infrações penais.

Sabe-se que em diversos casos a polícia judiciária confecciona o procedimento policial de crimes de ação penal privada sem necessidade, já que a vítima é quem fornece a completude dos elementos indicativos da materialidade e da autoria, tais como mensagens, testemunhas, e etc, e, em outros tantos casos, não há a mínima intenção da vítima em arcar com os custos da ação penal privada — em regra, haverá a contratação de um advogado para o ingresso de queixa-crime, tornando o trabalho policial meramente burocrático, desestimulador ao policial, ineficaz, além de existir um gasto público sem qualquer finalidade (pagamento dos policiais responsáveis, do papel, da energia elétrica, de eventuais diligências para intimação etc).

A informação por parte do cidadão quanto ao modo de processamento do crime ocorrido, com a especificação da forma pela qual determinada pessoa poderá (ou não) ser processada, torna o trabalho da Polícia Civil dos estados mais eficiente, dinâmico, prazeroso e efetivamente focado em casos que realmente demandam trabalho de investigação, afastando assim os órgãos policiais da ineficácia decorrente da burocratização do trabalho policial.

Ressalte-se que a ideia explicitada ao longo do desenvolvimento do presente artigo parece ter sido exposta na própria lei, já que a parte final do artigo 44 do Código de Processo Penal nos traz as informações necessárias que devem constar na queixa-crime, e em seguida, especifica a ressalva de o caso em concreto depender de diligências.

Pode-se ainda questionar qual o procedimento a ser adotado nos casos em que a vítima procura a delegacia para noticiar um crime que se move mediante ação penal privada tendo o intuito de fazer o pedido de medidas protetivas de urgência. Aliás, esse é o móvel da grande maioria dos registros policiais em delegacias especializadas em atendimento à mulher, qual seja, a obtenção de medidas protetivas, que muitos acreditam, por desconhecimento da lei, que somente pode ser iniciada em sede policial.

Porém, basta a leitura do art. 19 da Lei 11.340/06 para se verificar que não é a autoridade policial quem faz esse pedido, mas sim, a própria vítima ou o Ministério Público. Dessa forma, nada impede que o pedido de medidas protetivas seja feito pela própria vítima em documento apartado à queixa-crime. Ou ainda, tratando-se a medida protetiva de urgência de cautelar satisfativa e não preparatória, nada impede que seja feito o pedido por intermédio da autoridade policial, sem que haja necessidade da instauração de inquérito policial.

Diante de todo o exposto, entendemos que, nesses casos em que só se processa o crime mediante queixa e que já há elementos suficientes demonstrando autoria, materialidade e circunstâncias do fato delituoso, o procedimento investigatório é dispensável, devendo a autoridade policial indeferir, fundamentadamente, o requerimento de sua instauração, por ser medida que atende aos preceitos de eficiência e eficácia que devem pautar a atuação do poder público.

Deixando claro que as autoras não defendem a não atuação da autoridade policial nesses casos, mas tão somente a não instauração de inquérito policial para apurar tais crimes, os demais procedimentos previstos na Lei 11.340/06, em especial em seus artigos 10 a 12. Repita-se, a autoridade policial não deixará de atuar, mas atuará de forma a respeitar a eficiência do serviço público.

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