Interesse Público

Transadministrativismo ou como evitar o rollerball: reflexões da guerra na Ucrânia

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

24 de março de 2022, 8h01

A referência é antiga — o ilustre leitor millennial vai precisar recorrer à Wikipedia para se informar sobre esse filme da década de 1970, onde se tinha um Estado Corporativo, com o deslocamento (formal) do poder para as grandes corporações econômicas.

Spacca
A evocação ao filme me veio a partir das notícias decorrentes da guerra da Ucrânia, sobre movimentos de toda ordem de bloqueio econômico à Rússia. Estas iniciativas foram deflagradas por Estados-Nação, mas também por grandes corporações como a Coca-Cola, Starbucks, MacDonald's, MasterCard e Visa. A lógica, evidentemente, é sufocar o país na esfera econômica, e com isso cessar o conflito armado deflagrado pela Rússia.

Os efeitos são relevantes, e potencializados pelo uso massivo pela população civil em geral, dos serviços e produtos destas mesmas empresas. Tem-se no quadro uma manifestação clara de um centro de poder que não é estatal, mas corporativo; e cujos efeitos afetam duramente não só aos diretamente envolvidos na decisão política do conflito, mas toda a população russa.

O quadro de crise, como sempre acontece nestes eventos extremos, evidencia o potencial que uma ação orquestrada de agentes econômicos pode determinar em tempos de quebra de fronteiras de espaço e tempo, e de economia interconectada. Nesta particular quadratura, a resposta destes sujeitos se apresenta (circunstancialmente) alinhada com uma reação mundial de repúdio à invasão russa à Ucrânia. Em verdade, muitas das corporações adotaram o discurso de que suas medidas de bloqueio respondem a um anseio também da coletividade de seus consumidores, de rechaçar o conflito armado e seus efeitos sempre devastadores sobre as populações envolvidas. A questão que quero sugerir ao gentil leitor é — e se um movimento dessa mesma natureza se puser numa situação menos clara; num conflito onde não consiga se divisar com muita clareza vítimas e opressores?

Eixo igualmente importante do filme "Rollerball" estava em que a inclinação típica da natureza humana à competitividade e violência se resolviam em um jogo onde mais importante do que o vencedor em si, era a ideia de que essa figura não se perpetuava — a cada partida, tinha-se um vencedor distinto e impermanente, num repúdio ao individualismo. No player is greater than the game itself, era o mote dessa sobrevalorização do jogo — e não dos que dele participam. A lógica não abria espaço para o pensamento divergente; para as diferenças étnicas ou históricas — o importante era a manutenção de uma ordem homogênea construída pelos detentores do poder.

A pergunta que o filme sugere hoje é; e se num futuro distópico, as corporações, tendo já experimentado o exercício do poder como mecanismo de dominação clara de um Estado-Nação, tomarem gosta pela coisa? Escolhas específicas de determinadas coletividades poderiam ser objeto de repúdio, como manifestação de um particularismo local indesejado (a versão coletiva do individualismo reprovado em "Rollerball"), oportunizando sua reconfiguração pelo Estado Corporativo? Como evitar que esses inegáveis centros de poder econômico se sobreponham às escolhas nacionais, sempre sob a guarda de discursos justificadores como o de proteção à liberdade de ser ou de se expressar? Afinal, se no player is greater than the game itself, em nome da proteção ao jogo sempre seria possível o réprobo às escolhas de vida de distintas coletividades.

O tema do surgimento de outros relevantes núcleos de poder para além da tradicional associação ao espaço estatal foi explorado de forma precursora por Moreira Neto [1], nas suas várias incursões sobre o transadministrativismo. A partir da observação da insuficiência do modelo clássico de autoridade estatal para enfrentar desafios postos pela pós-modernidade, o autor reconhece esses mesmos agentes não estatais como relevantes no jogo do poder, entendido como vontade dotada de capacidade para produzir resultados desejados. O problema está em que, se em relação às estruturas tradicionais de poder político organizado se tem já, do ponto de vista da engenharia constitucional, respostas aos riscos associados ao abuso do poder ou à apropriação indevida do discurso da liberdade, com instituições e mecanismos vocacionadas ao controle; o mesmo não se pode dizer em relação a estes novos atores, forjados e empoderados no campo econômico.

É na assimetria de poder que se identifica entre estes agentes econômicos e os eventuais destinatários de suas deliberações estratégicas que pode residir o risco (sustenta o autor) ao humanismo e à democracia; ambos, verdadeiras conquistas civilizatórias que exigiram longo percurso histórico para serem alcançados. É bem verdade que no contexto da guerra contra a Ucrânia, a assimetria de poder em favor dos agentes econômicos parece figurar como um importante componente de equilíbrio de uma posição igualmente assimétrica detida pela Rússia em relação à Ucrânia. O papel das corporações no verdadeiro sufocamento econômico do país agressor se apresenta como uma retomada de equilíbrio, virtuosa por si só.

A dificuldade está em que esse exercício de poder pelas corporações pode se colocar em situações menos extremas — e para isso, não se tem ainda reflexão mais profunda em relação a quais sejam os mecanismos possíveis de controle. É mais uma versão da velha pergunta: quem controla o controlador?

O transadministrativismo surge como uma alternativa para, a um só tempo, reconhecer a importância desses centros de poder não estatal, mas ao mesmo tempo, controlá-los para que seu exercício se alinhe com um interesse público além do Estado e ainda, com valores transcendentais, que em nosso atual estágio civilizatório, se põe aos entes estatais, mas também àqueles originários do setor privado. É uma evolução de uma lógica segundo a qual residiria principalmente — se não exclusivamente — nas estruturas estatais a ameaça às liberdades.

Inevitável o recurso às palavras do autor [2] ao conceituar o transadministrativismo: "uma rede de atendimento de determinados interesses públicos, que, sem pretensão de superar o modelo tradicional, com o qual todos os países convivem, que é o nacional — hierarquizado e piramidal — articulam ambos, em conjunto, um complexo sistema administrativo global, público e privado, que se dirige a aparelhar cada vez mais uma intensa colaboração, inclusive com a proliferação de entidades híbridas, como, efetivamente, já começam a surgir, beneficiando-se das vantagens de ambos os sistemas". Este Estado rivalizado [3], no novo contexto de relações de interdependência, haverá de admitir o reconhecimento de uma parcela de autoridade localizada nestes entes híbridos — mas esse mesmo exercício de autoridade haverá de ser objeto de parametrização aos já referidos valores transcendentes, sob pena de converter-se em puro autoritarismo.

É ainda de Moreira Neto, a proposta de que se possa ter na auto-regulação regulada, um mecanismo de definição consensuada dos valores básicos que limitam o exercício assimétrico do poder pelos agentes econômicos. Fixados estes valores, situados no núcleo central das ideias-força de humanismo e democracia, abrir-se-ia o espaço para a auto-regulação, a ser desenvolvida pelos já referidos entes híbridos.

Tem-se na proposição do transadministrativismo, modelo muito mais complexo do que a tradicional construção de normatividade no Estado-Nação — mas é evidente a preocupação de oferecer resposta a um problema decorrente das novas relações de interdependência que se verifica em especial no cenário internacional.

A guerra da Ucrânia evidencia que os conflitos, no futuro, se darão em outras bases, com intensa utilização de mecanismos que transcendem as forças militares de cada qual dos envolvidos. Supostamente justificada pela intenção declinada de proteção a um país agredido, ela tem revelado o potencial de fogo dos agentes econômicos, numa economia globalizada e num mundo cada vez mais interconectado. Importante reconhecer nesta trágica experiência, a aptidão para tematizar o necessário desenvolvimento de mecanismos regulatórios destas novas forças que se apresentam no cenário bélico.


[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Direito Administrativo no século XXI. Posfácio Jessé Torres Pereira Junior e Flavio Amaral Garcia. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018.

[2] Ibidem, p. 283.

[3] CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Editora Forum, 2009, p. 48

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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