Opinião

A constitucionalidade do voto de qualidade no Carf

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

24 de março de 2022, 11h05

Estão na pauta do Supremo Tribunal Federal três ações diretas de inconstitucionalidade, que são as de nº 6.399, 6.403 e 6.415, nas quais se discute a validade formal e material do artigo 28 da Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, que inseriu o artigo 19-E na Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, ao instituir novo critério para o desempate de julgamentos ocorridos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a saber:

"Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E:
'Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.'"  

Spacca
A solução desta matéria tem capital importância para o Fisco, diante do volume de processos que aguardam retomada dos julgamentos presenciais, em valores que já superam R$ 1 trilhão. E, para o contribuinte, quanto às dúvidas sobre as matérias abrangidas pela regra, a segurança jurídica do critério de desempate e a repercussão sobre as repercussões em relações a casos anteriores.

O curioso é que agora temos dois sistemas de julgamento em funcionamento no Carf. O voto de qualidade segue aplicável a todos os demais processos administrativos, excetuados aqueles de determinação e exigência do crédito tributário, hipótese única para o desempate ser sempre favorável ao contribuinte. Para separar estas matérias, porém, sobra insegurança jurídica quanto à demarcação destas matérias. Inadmissível, sob qualquer pretexto, essa situação de quebra de isonomia entre contribuintes.

O voto de qualidade é uma decorrência da sua condição de órgão de julgamento fundado na paridade. Conforme o Decreto nº 70.235/72, no seu artigo 25, II, o Carf é um "órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial".

E desde a vigência do Decreto nº 24.036, de 26 de março de 1934, que criou os Conselhos de Contribuintes, existe o regime do "voto de qualidade" atribuído ao presidente para decidir nos casos de empates. São, portanto, quase 90 anos a aplicar o mesmo modelo decisório, ao amparo das constituições de 1934, 1946, 1967 e 1988. E que não é mais do que técnica de decisão quando não se obtém maioria, diante de empates decorrentes da paridade, como se verifica no próprio Supremo Tribunal Federal (artigo 13, IX, do Regimento Interno do STF), ou mesmo no chamado "voto médio", nos casos de dispersão de votos dos tribunais.

O referido artigo 28 apareceu na tramitação do Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 2/2020, referente à MP nº 899, de 16 de outubro de 2019, com o objetivo de regulamentar a transação tributária, acrescida de requisitos e condições para a sua concretização e finalização do litígio, na forma do artigo 171 do Código Tributário Nacional. Não tratava de processo administrativo. As emendas parlamentares aglutinadas tampouco alcançavam o crédito tributário. Diziam respeito a bônus de eficiência e à aplicação do artigo 112 do CTN, quanto às multas, apenas.

Até o momento, o julgamento estava no Plenário Virtual e já conta com dois votos pronunciados pelo relator, o ministro Marco Aurélio de Mello e pelo ministro Roberto Barroso. Marco Aurélio concluiu pela inconstitucionalidade formal da norma questionada, em virtude da ausência de pertinência temática com a Medida Provisória nº 899/2019, por ferir os princípios democrático e do devido processo legislativo. Barroso, em que pese ter reconhecido "a plausibilidade da tese envolvida" com relação à ausência de pertinência temática, divergiu do relator para concluir pela constitucionalidade da norma impugnada, com a propositura de tese que autoriza à Fazenda Pública o direito de ação na hipótese de extinção do crédito tributário por força do art. 19-E da Lei nº 10.522/2002.

A inconstitucionalidade formal do artigo 28 da Lei nº 13.988/20 é incontornável. Pelo exame da tramitação da MP nº 899/19, até culminar na edição da Lei nº 13.988/20, verifica-se que a primeira vez que o texto do atual artigo 28 aparece, para deliberação do Congresso, é na Emenda Aglutinativa nº 1, apresentada pelo deputado Hildo Rocha, após o prazo de seis dias que menciona o artigo 4º, caput, da Resolução do Congresso Nacional nº 1, de 2002, ou seja, após o parecer da Comissão Mista, na forma do artigo 62, §9º, da Constituição Federal, sem guardar qualquer pertinência temática com os dispositivos do texto original da MP nº 899/19.

Assim, somente no Plenário pela Câmara dos Deputados, Hildo Rocha apresentou a Emenda Aglutinativa nº 1, que não "aglutina" texto algum, pois consolidava os textos das Emendas nº 9 e 162 com o Projeto de Lei de Conversão nº 2, de 2020.

Entretanto, as referidas emendas não tratavam do voto de qualidade com afetação ao valor integral do tributo devido. A Emenda nº 9 cuidava do Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira. E a Emenda nº 162, por sua vez, aplicava-se no caso do voto de qualidade, mas com outro sentido. Previa que, quando o processo administrativo resolver-se favoravelmente à Fazenda Nacional, em virtude do voto de qualidade, a multa qualificada e demais multas de ofício deveriam ser substituídas pela multa de mora do artigo 61 da Lei nº 9.430/96. Logo, com flagrante desrespeito ao Regimento Interno, foram assim "aglutinadas" em Plenário, após a emissão do referido parecer da Comissão Mista, a compor a Emenda Aglutinativa nº 1, cujo artigo 2º originou o artigo 28 da Lei nº 13.988/20, com reversão do voto de qualidade integralmente em favor do contribuinte.

O texto da Emenda Aglutinativa nº 1 foi aprovado em votação simbólica pela Câmara dos Deputados, na Sessão de 18/03/20, sendo os dispositivos incorporados à redação final do Projeto de Lei Conversão nº 2, de 2020, naquela Casa. Levada ao Senado, a pertinência temática foi objeto de questionamento por parte dos senadores. Os requerimentos relativos ao artigo 2º, contudo, não foram aprovados, por maioria (Requerimentos nºs 142 e 145/2020), após longa e acalorada discussão entre os senadores.

Nos termos do voto proferido pelo ministro Marco Aurélio, não se coaduna com o Estado democrático de Direito, alicerçado sob o respeito ao devido processo legislativo, a inserção de disciplina normativa distinta do objeto do texto original (discrepância temática), notadamente quando feita em estágio avançado do processo legislativo, por mitigar o debate e apreciação do tema e, assim, violar o princípio democrático.

Não basta votação ratificadora para sanar a nulidade. Fora da previsão regimental, não é possível a apresentação de emendas parlamentares. E isso não se deve a fatores de ordem meramente formal, mas ao estrito cumprimento do arigo. 62, § 9º, da CF, que exige a emissão de parecer, pela Comissão Mista de Deputados e Senadores antes de apreciação do texto da medida provisória, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das casas do Congresso, com a finalidade de cumprir o princípio democrático e viabilizar o amplo debate sobre a questão submetida ao legislativo.

Portanto, a exigência do artigo 62, § 9º, da CF não constitui mera formalidade do processo de tramitação das medidas provisórias, mas, sim, uma verdadeira garantia de que, na conversão da medida provisória, a Comissão Mista assumirá o papel de controle, para evitar que a análise da medida provisória se sujeite ao chamado "império do relator", como bem destacado no julgamento da ADI nº 4029, pelo relator ministro Luiz Fux.

Não foi outra a conclusão do Ministro Marco Aurélio de Mello, a saber:

"É dizer: em estágio avançado da tramitação, ocorreu modificação relevante e sem conexão temática com o texto da proposição original, relacionado à transação, no que extinto o voto de qualidade em processos de determinação e exigência de crédito tributário. Embora eventual inobservância do prazo para apresentação de emendas, constante da Resolução nº 1/2002 do Congresso, se situe no domínio das normas internas, por inexistir parâmetro a esse respeito na Lei Maior, ficou prejudicado o debate democrático, próprio do rito de conversão em lei." (g.n.)

Portanto, um caso típico de "contrabando legislativo" ou "jabuti", reiteradamente condenado pela jurisprudência da Corte desde o julgamento da ADI nº 5127 (relatora ministra Rosa Weber, relator p/ acórdão ministro Edson Fachin) e reafirmada no julgamento da ADI nº 5012 (relatora ministra Rosa Weber).

Não se está diante aqui de simples violação a norma regimental, mas de ruptura do processo legislativo, mediante afronta direta a dispositivo constitucional que garante a devida análise das medidas provisórias por parte da Comissão Mista, em atenção aos reduzidos prazos que regem a sua tramitação, próprios da lógica de urgência. Trata-se de burla ao comando do artigo 62, § 9º, da Constituição, a justificar a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 13.988/20.

O ministro Barroso, no voto proferido, considerou haver "dúvida razoável acerca da pertinência temática entre a MP nº 899/2019 e a emenda parlamentar que deu origem ao dispositivo impugnado", mas deixou de acolher a inconstitucionalidade formal, por considerar que a "caracterização do que sejam acréscimos impertinentes ainda se encontra em construção". Por certo, o conceito de pertinência temática comporta amplitude semântica e deve ser densificado caso a caso. Não obstante, o próprio Barroso ofereceu, com amparo na jurisprudência do STF, uma definição rigorosa de pertinência temática, ao tratá-la como a "exigência de relação de pertinência material ou de afinidade lógica com o objeto veiculado na proposição legislativa".

O artigo 28 da Lei nº 13.988/20, que transfere os efeitos do voto de qualidade do representante do Fisco para uma decisão sempre a favor do contribuinte, constitui regra concernente ao processo decisório em julgamentos paritários no âmbito administrativo, destinado a fixar um critério de solução dos julgamentos em caso de empate. Trata-se, pois, de norma processual com efeitos materiais.

Todos os dispositivos da MP nº 899/19 tinham como propósito a regulamentação das formas de transação tributária (individual ou por adesão), com as espécies de créditos aos quais a medida seria aplicável (judicializados ou não), concessão de descontos em relação aos créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação, compromissos a serem assumidos pelo devedor, limitação à quitação em até oitenta e quatro meses, vedações à realização da transação, hipóteses de rescisão da transação, sua publicidade e transparência, dentre outros.

A MP nº 899/19 vedava o emprego da transação em relação ao montante principal do crédito tributário inscrito em dívida ativa, somente aplicável às multas e juros. De outra banda, o artigo 28 da Lei nº 13.988/20 vai além e se refere ao julgamento administrativo do valor total do montante principal do tributo em discussão (julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário). E a Medida Provisória nº 899/19 nunca tratou do processo administrativo, até porque proíbe a transação nas matérias objeto desta esfera jurisdicional. A falta de pertinência temática é de todo evidente.

A novidade do artigo 28 da Lei nº 13.988/20 está em modificar aquele quase centenário critério de decisão do colegiado paritário do Carf, ao converter o empate para uma decisão exclusivamente em favor do contribuinte, com extinção do crédito tributário, logo, não apenas restrito às multas tributárias, ao amparo do artigo 112 do Código Tributário Nacional, mas com alcance inclusive sobre o montante do principal.  

Deveras, dado que a presidência das Câmaras e das Turmas são cargos ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, isto não necessariamente implica ser o seu voto favorável ao Fisco, tanto assim que se estima que mais de 25% dos votos de qualidade em 2019, e cerca de 40% até fevereiro de 2020, foram favoráveis aos contribuintes.

Diante disso, modifica, sem autoridade de lei complementar, o teor do artigo 112 do CTN, que manda interpretar de maneira mais benéfica a norma tributária unicamente nos casos de sanções ou ilícitos. O artigo 28 da Lei nº 13.988/20, porém, vai além e transfere ao contribuinte a extinção de todo o crédito tributário.

Surge, assim, uma presunção de ilegalidade do lançamento, em superação ao princípio de presunção de legitimidade do ato administrativo, nos casos de empates, para conferir ao contribuinte o direito à extinção do crédito tributário de forma automática. O curioso é que se isto se dê justamente nas situações de maior controvérsia hermenêutica, quando se verifica empate entre os julgadores paritários.

O correto, nestas situações controvertidas, seria que o artigo 28 da Lei 13.988/2020 trouxesse novos parâmetros de aprimoramento, não uma solução de exclusividade de decisão favorável, contra o próprio sentido do artigo 112 do CTN.

Ora, justamente por esta razão o artigo 28 da Lei nº 13.988/20 padece de inconstitucionalidade material, haja vista que a regra de desempate por ele promovida resulta em quebra da isonomia entre Fisco e contribuinte, não atende ao devido processo legal, além de violar a ordem constitucional, por supressão do interesse público, exibido no direito do cidadão à correta arrecadação tributária.

Diante disso, o artigo 28 da Lei nº 13.988/20 não se afirma sequer como um critério de solução de impasse no julgamento, mas de disposição normativa que anula o próprio julgamento administrativo paritário.

Esta disfunção normativa do artigo 28 da Lei nº 13.988/20 foi bem compreendida pelo ministro Barroso, que concluiu pela imperatividade da garantia de acesso ao Judiciário pela Fazenda, a saber: "reconhecer a possibilidade de a Fazenda Nacional ir a juízo, nessa situação, é imprescindível para resguardar o equilíbrio das relações entre o ente público e o sujeito passivo. Isso porque, se antes o voto de qualidade gerava uma distorção em favor do Fisco, a sua extinção — com resultado necessariamente favorável ao contribuinte em caso de empate — , sem a ressalva aqui realizada, inverteria a balança para o outro lado. E o que se deve buscar, em última análise, é a plena isonomia entre as partes, e não a prevalência apriorística de uma sobre a outra." (g.n.)

A proposta de Barroso, portanto, reforça a inconstitucionalidade formal que macula a norma em análise. Tivesse sido realizado o adequado debate parlamentar sobre a medida provisória ou as emendas parlamentares, ter-se-ia investigado quais os ajustes necessários na legislação, para que fosse compatível com os princípios e regras do ordenamento jurídico.

O artigo 156, IX, do CTN determina que extingue o crédito tributário "a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória". Assim, sempre que a decisão seja favorável ao contribuinte, ter-se-á o efeito de extinção do crédito, e, por conseguinte, a afastabilidade da Fazenda Pública do acesso ao Poder Judiciário.

O crédito tributário que venha ser cancelado por força do artigo 28 da Lei nº 13.988/20, não poderá ser revisto, pela Fazenda Nacional, perante o Judiciário, em razão do artigo 156, IX, do CTN. Priva-se a Fazenda Nacional de um direito que ao contribuinte, todavia, era assegurado. Priva-se a Fazenda Nacional de ingressar com medida judicial para qual, evidentemente, possui interesse de agir. A violação à isonomia é evidente.

Ora, por força do artigo 156, IX, do CTN, os julgamentos contrários à Fazenda Pública restam impossibilitados de serem apreciados pelo Poder Judiciário. Assim, admitida a permanência desta regra do voto de qualidade unicamente em favor do contribuinte, em relação a processos nos quais sejam debatidas questões constitucionais, ou mesmo nos casos mais complexos e controvertidos, restariam afastados do conhecimento por parte do Poder Judiciário. E justo nos casos das mais relevantes dúvidas hermenêuticas, reveladas pelo "empate".

A única razão que impulsiona os contribuintes a preferirem soluções terminativas no Carf e evitarem o Poder Judiciário são as exigências de garantias e os elevados custos com sucumbência. Porém, temos um encontro marcado com a urgente reforma dos processos administrativo e judicial para resolver estas dificuldades que tanto malefícios trazem para as contas públicas e para a proteção dos contribuintes.

Numa síntese, o critério de desempate pode e deve receber do poder legislativo melhores contornos redacionais, mas que este seja precedido de amplo debate pela sociedade, pelo Fisco e pelos parlamentares, todos cientes das suas consequências e com critérios objetivos que permitam antecipar para os julgadores os parâmetros que orientam esta decisão. Na forma em que se encontra o artigo 28 da Lei nº 13.988/20, avultam as razões formais e materiais suficientes para sua declaração de inconstitucionalidade. Por ser uma quebra da isonomia, o que não se pode admitir é que o Carf se mantenha com dois tipos de critérios de decisão, ratione materiae, em casos de empates pela composição paritária. Tampouco que se tolha do Poder Judiciário a possibilidade de conhecer e arbitrar os conflitos com as mais importantes controvérsias jurídico-tributárias do país, inclusive aquelas que contemplem questões de inconstitucionalidade.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro, livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!