Opinião

Deveres judiciais instrutórios e de motivação na nova Lei de Improbidade

Autor

  • Thadeu Augimeri de Goes Lima

    é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

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23 de março de 2022, 6h40

A Lei 14.230/2021, como ficou até enfadonho repetir, alterou profundamente a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), nos seus aspectos materiais e processuais.

Interessa-nos neste breve texto abordar as novas e/ou reformadas disposições que preconizam deveres judiciais instrutórios e de motivação, vale dizer, de deveres do juiz relacionados à formação — através da atividade instrutória — e à explicitação e justificação racional — por ocasião da sentença — do seu convencimento. Estão eles previstos notadamente no artigo 12, §§ 1º a 4º, no artigo 16, § 12, no artigo 17, §§ 10-C, 10-D, 10-F e 16, no artigo 17-C, caput, e no artigo 21, §§ 1º e 2º, todos da LIA.

O artigo 12, § 1º, da LIA estabelece que a sanção de perda da função pública, nas hipóteses dos incisos I e II do seu caput — isto é, de atos ímprobos que tenham importado enriquecimento ilícito ou causado prejuízo ao erário —, atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o Poder Público na época do cometimento do ilícito, podendo o julgador, na hipótese do inciso I do caput — ou seja, de ato ímprobo que tenha ensejado enriquecimento ilícito —, e em caráter excepcional, estendê-la aos demais vínculos do agente estatal, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração.

Ao seu turno, o artigo 12, § 2º, autoriza o magistrado a elevar o quantum da multa civil até o dobro, se considerar que, em razão da situação econômica do réu, o valor calculado na forma dos incisos I, II e III do caput se mostrar ineficaz para a reprovação e a prevenção do ato de improbidade.

Em acréscimo, o artigo 12, § 3º, preceitua que, na responsabilização da pessoa jurídica, deverão ser considerados os efeitos econômicos e sociais das sanções, de modo a viabilizar a manutenção de suas atividades.

Finalmente, o artigo 12, § 4º, permite que, em caráter excepcional e por motivos relevantes devidamente justificados, a sanção de proibição de contratação com o Poder Público extrapole o ente público lesado pelo ato de improbidade, observados também os impactos econômicos e sociais das sanções, de forma a preservar a função social da empresa, na esteira do disposto no supracitado § 3º.

Já o artigo 16, § 12, da LIA dispõe que o julgador, ao apreciar o pedido de indisponibilidade de bens do demandado, observará os efeitos práticos da decisão, sendo-lhe vedado adotar medida capaz de acarretar prejuízo à prestação de serviços públicos.

Todos os enunciados normativos acima contemplam deveres judiciais de motivação, eis que o juiz deverá fundamentar concretamente a incidência da perda sobre outros vínculos mantidos pelo agente estatal com a Administração Pública, tomando em conta as circunstâncias fáticas peculiares e a especial repercussão deletéria do ato de improbidade administrativa; deverá fundamentar concretamente a vislumbrada ineficácia da quantificação ordinária da sanção pecuniária para os escopos reprovatório e preventivo do apenamento, a necessidade de aumentá-la e a justificativa para o montante de aumento; deverá fundamentar concretamente a escolha e a intensidade das sanções impostas ao ente coletivo partícipe e/ou beneficiário do ato ímprobo, ponderando-as em face da diretriz de preservação da atividade empresarial, em prol de todos que dela dependem, interna — v.g., trabalhadores e acionistas — e externamente — v.g., credores, parceiros negociais, consumidores, comunidade etc —; deverá fundamentar concretamente o alargamento da proibição de contratar a outros entes públicos diversos do prejudicado pelo ilícito, atentando à mesma preocupação de manter a atividade empresarial, em prol de todos que dela dependem; e deverá fundamentar concretamente a necessidade e a extensão da constrição patrimonial decretada em desfavor do réu e sopesar as suas consequências empíricas.

Calha destacar ainda que esses deveres encontram sua ratio na perspectiva consequencialista que restou inquestionavelmente encampada pelo Direito Público pátrio após a modificação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942) operada pela Lei 13.655/2018. Aliás, notam-se mesmo traços de evidente afinidade entre os teores dos artigos 12, §§ 1º a 4º, e 16, § 12, da LIA e os teores dos artigos 20 a 22 da Lindb, inseridos pela aludida Lei 13.655/2018.

Passando ao artigo 17 da LIA, seu § 10-C determina que o magistrado, após a réplica do Ministério Público à contestação, profira decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe proibido modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor. O § 10-D complementa que, para cada ato ímprobo, haverá necessariamente que ser indicado apenas um tipo dentre os insculpidos nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA, enquanto o § 10-F, inciso I, comina a nulidade da decisão de mérito (sentença ou acórdão), total ou parcial, da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa que aplicar ao demandado tipo diverso daquele definido na petição inicial.

Os dispositivos em apreço estabelecem um dever de motivação vinculada ao juiz e restringem a aplicação do postulado iura novit curia nas ações de improbidade administrativa [1].

Reiterando o que afirmamos em outra ocasião, a configuração normativa do iura novit curia não fica refém de uma diretriz imutável e inflexível, sendo, ao revés, bastante cambiante no tempo e no espaço, e prova disso é o seu desenvolvimento histórico-legislativo no Direito Processual Civil brasileiro. Por conseguinte, nada impede que seja moldada diferentemente da sistemática padrão do CPC ou até sobremaneira reduzida, tudo conforme as conveniências jurídico-políticas reinantes em dado contexto, daí resultando que os §§10-C, 10-D e 10-F, inciso I, do artigo 17 da LIA, conquanto no aspecto político-legislativo sejam altamente criticáveis, no aspecto estritamente jurídico-dogmático não aparentam padecer de inconstitucionalidade ou antijuridicidade [2].

O artigo 17, § 10-F, inciso II, da LIA também comina a nulidade da sentença proferida na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa que julgar procedente a demanda sem a produção das provas tempestivamente especificadas pelo réu.

O preceito em tela estabelece um dever judicial instrutório que, entretanto, não merece ser visto como absoluto, havendo que receber interpretação que privilegie os elementos ou aspectos sistemático e teleológico e que o correlacione com o artigo 5º, inciso LVI, da CF/1988 e com o artigo 370 do CPC.

Com efeito, o artigo 17, § 10-F, inciso II, da LIA não retira do juiz o poder-dever de examinar a admissibilidade, a pertinência e a relevância da prova, de modo que lhe continua permitido indeferir a produção de elementos de convicção inadmissíveis — por exemplo, por terem sido obtidos de forma ilícita —, impertinentes — isto é, que não guardem relação sequer indireta com o thema probandum — ou evidentemente irrelevantesv.g., porque concretamente desprovidos de utilidade para conferir supedâneo às teses defensivas levantadas ou meramente protelatórios.

Assim, a melhor leitura da disposição normativa é a de que a nulidade da sentença de procedência ocorrerá tão somente se esta for prolatada sem a produção das provas tempestivamente especificadas pelo réu e deferidas pelo julgador.

Cumpre lembrar que, por força do artigo 17, § 21, da LIA, passou expressamente a caber agravo de instrumento de todas as decisões interlocutórias proferidas em primeiro grau na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa. Logo, havendo o indeferimento de prova requerida pelo demandado, a decisão denegatória deverá ser impugnada, no prazo legal, por aquela via recursal, sob pena de preclusão da insurgência, não se aplicando na espécie o artigo 1.009, § 1º, do CPC.

De outro lado, constatando o juiz que se trata de prova admissível, porém estando em dúvida quanto à pertinência e/ou a relevância dela, incidirá o dever instrutório de que ora se cuida e lhe incumbirá determinar a produção daquela (in dubio pro probatione).

Por fim, o artigo 17, § 16, da LIA autoriza que o magistrado, a qualquer momento, se identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas passíveis de serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição de sanções pela prática de ato de improbidade administrativa, em decisão motivada, converta a ação de responsabilização proposta em ação civil pública.

Neste caso, o juiz deverá explicitar e justificar racionalmente por que a conduta imputada não caracteriza ato ímprobo ou, ainda que caracterize, por que não está sujeita a sancionamento como tal — por exemplo, em vista da prescrição intercorrente da pretensão sancionatória —, bem como a presença, em tese, de ilicitude ou desconformidade administrativa que comporte correção e a adequação da ação civil pública para proporcionar dita correção. De novo, trata-se de um específico dever judicial de motivação.

Rumando ao artigo 17-C, caput, da LIA, ele preconiza que a sentença proferida em ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, além de observar o estatuído no artigo 489 do CPC, deve satisfazer as seguintes exigências: indicar, de modo preciso, os fundamentos que demonstram os elementos a que se referem os artigos 9º, 10 e 11 da LIA, os quais não podem ser presumidos (inc. I); considerar as consequências práticas da decisão, sempre que decidir com base em valores jurídicos abstratos (inc. II); considerar os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as imposições das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados e das circunstâncias práticas que houverem determinado, limitado ou condicionado a ação do agente (inc. III); considerar, para a aplicação das sanções, de forma isolada ou cumulativa, os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, a natureza, a gravidade e o impacto da infração cometida, a extensão do dano causado, o proveito patrimonial obtido pelo réu, as circunstâncias agravantes ou atenuantes, a atuação do demandado em minorar os prejuízos e as consequências advindas de sua conduta omissiva ou comissiva e os antecedentes do agente (inc. IV); considerar, na aplicação das sanções, a dosimetria das sanções relativas ao mesmo fato já aplicadas ao réu (inciso V); considerar, na fixação das penalidades relativamente a partícipe ou beneficiário do ato ímprobo, quando for o caso, a sua atuação específica, inadmitindo-se a responsabilização por ações ou omissões para as quais não tiver concorrido ou das quais não tiver obtido vantagens patrimoniais indevidas (inciso VI); e indicar, na apuração da ofensa a princípios, critérios objetivos que justifiquem a imposição de sanção (inciso VII).

Eis mais deveres judiciais de motivação, embasados sobretudo na perspectiva consequencialista juspublicista albergada pela Lindb após o advento da Lei 13.655/2018. Dignas de nota, outrossim, as grandes similitudes entre os teores dos incisos do artigo 17-C, caput, da LIA e os teores dos adrede mencionados artigos 20 a 22 da Lindb.

O descumprimento dos deveres judiciais de motivação até aqui apontados caracteriza inequívoca omissão do julgador quanto a tema sobre o qual haveria que se pronunciar, enquanto o cumprimento insuficiente deles pode inquinar o decisum final de obscuridade, atraindo o cabimento dos embargos de declaração, com fulcro no artigo 1.022, caput, incisos I, initio, e II, do CPC.

Por derradeiro, o § 1º do artigo 21 da LIA ordena que o juiz considere os atos do órgão de controle interno ou externo, quando tiverem servido de fundamento para a conduta do agente público, ao passo que o § 2º impõe que o magistrado, na formação do seu convencimento, considere as provas produzidas perante os órgãos de controle e as correspondentes decisões, sem prejuízo da análise acerca do dolo na conduta do réu. Os dispositivos em questão atribuem simultaneamente deveres judiciais de instrução e de motivação.

Dever instrutório do julgador porque, tendo ciência de que os fatos que compõem o thema decidendum da ação de improbidade administrativa proposta hajam sido submetidos à apreciação dos órgãos de controle interno ou externo do Poder Público — por exemplo, Corregedorias, Controladoria-Geral da União, Tribunais de Contas, Poder Legislativo etc —, caberá a ele, de ofício ou a pedido de qualquer das partes, nos moldes do artigo 370, caput, do CPC, requisitar aos citados órgãos o envio dos atos, das provas e das decisões relacionados com o caso, para serem juntados nos autos do processo.

E dever de motivação do juiz porque, uma vez que os atos, as provas e as decisões oriundos dos órgãos de controle interno ou externo sejam levados aos autos do processo, ele haverá necessariamente que se valer de tais elementos para formar sua convicção e se referir a eles no seu decisum final, em conjunto e em cotejo com os demais elementos probatórios e as contribuições argumentativas produzidos no curso do trâmite procedimental.

Vale alertar que, se o magistrado indeferir requerimento de algum dos litigantes concernente à requisição dos atos, das provas e das decisões oriundos dos órgãos de controle interno ou externo, sua decisão desafiará o agravo de instrumento, na forma do artigo 17, § 21, da LIA, não se aplicando o artigo 1.009, § 1º, do CPC.

Por outro lado, se nenhuma das partes postular a requisição desses elementos e o próprio julgador não a fizer ex officio, parece-nos que a falta deles, e a consequente nulidade da sentença por inobservância dos deveres judiciais de instrução e de motivação acima expostos, poderá ser suscitada em preliminar de apelação ou nas respectivas contrarrazões.

Já se os atos, as provas e as decisões oriundos dos órgãos de controle interno ou externo tiverem sido devidamente incorporados nos autos e o juiz não os considerar, ou os considerar superficial ou insuficientemente, haverá, respectivamente, omissão ou obscuridade na sentença, passível de retificação pela via dos embargos declaratórios, ex vi do artigo 1.022, caput, incisos I, initio, e II, do CPC.


[1] V. LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. A restrição ao iura novit curia na Lei de Improbidade Administrativa. 3 fev. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-03/thadeu-lima-restricao-iura-novit-curia-lia.

[2] LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. A restrição ao iura novit curia na Lei de Improbidade Administrativa, cit..

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  • é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

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