Direto do Carf

Ventos de mudança nos julgamentos sobre ITR? O desempate pró-contribuinte no Carf

Autores

  • Letícia Leite Vieira

    é mestranda em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) cujo objeto de investigação é o imposto territorial rural e a concentração fundiária no Brasil. Legal consultant no JusBrasil e advogada.

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

23 de março de 2022, 9h39

Nesta semana voltamos a tratar de um velho (desconhecido), o imposto territorial rural (ITR). A retomada da temática, que sói não receber devida atenção pelos juristas, mormente aos que se dedicam ao Direito Tributário, ocorre por duas constatações principais.

Spacca
A primeira delas remete ao fato de que, em 2019, menos de 1% das propriedades representava cerca de 45% de toda a área rural.[1] A despeito das normas contidas tanto no Estatuto da Terra, de 1964, quanto na Constituição de 1988, fica evidente que não se conseguiu atribuir à terra "significância e finalidade social e econômica" [2], com o consequente cumprimento do dever de quem a detém "fazê-la frutificar, em benefício próprio, mas também da sociedade.”[3] Sempre de bom alvitre repisar que o artigo 186 de nossa Constituição é claro ao determinar que a função social da propriedade somente resta assegurada quando, simultaneamente, i) realizado o aproveitamento racional e adequado da terra; ii) feita a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente; iii) observadas as disposições que regulam as relações de trabalho e; iv) ultimada uma exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. Estudos sugerem que o ITR, enquanto tributo de vocação extrafiscal que é, pode atuar na mitigação deste cenário, na esteira dos ditames constitucionais. Daí a importância de colocá-lo no centro dos debates.[4]

A segunda razão repousa na sinalização de mudança jurisprudencial, no âmbito da Segunda Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf,[5] acerca de importantes teses que versam sobre o ITR, no biênio 2020-2021. Importante alertar que, embora não gozem os precedentes da CSRF de caráter formalmente vinculante,[6] recebem especial atenção porquanto visam uniformizar a jurisprudência dos temas de cada uma de suas respectivas seções.[7]

De acordo com o artigo 10 da Lei nº 9.393/96, que dispõe sobre o ITR, para sua apuração, dentre outros, há de ser considerada a área total do imóvel menos outros elementos, dentre os quais se incluem a áreas de preservação permanente (APP) e as áreas de reserva legal (ARL), ambas previstas no Código Florestal. É, portanto, do Direito Ambiental que são extraídos os conceitos de referidas extensões territoriais a receber salvaguarda, justamente por terem todos "direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações." — ex vi do artigo 225 da CRFB/88.

A área de preservação permanente é aquela "protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas" — conforme previsto o inciso II do §2º do artigo 3º do Código Florestal —, ao passo que a área de reserva legal é a "localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, (…) com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa." — ex vi do inciso III do §2º do artigo 3º do Código Florestal.

Por receberem proteção especial, conforme possível depreender da conceituação legalmente conferida, encampam verdadeiras limitações ao uso da propriedade. E, não por outra razão, suas respectivas extensões são excluídas de aferição da área tributável pelo ITR — vide al. "a" do inciso II do artigo 10 da Lei nº 9.393/96. Sendo tais premissas incontroversas, a dissonância se faz presente quanto aos meios aptos a comprovar a existência de ditas áreas.

Para fatos geradores ocorridos a partir de 2001, o regramento do artigo 17-O da Lei nº 6.938/81, com a redação dada pela Lei nº 10.165/2000, passou a estabelecer em seu §1º que "a utilização do ADA [Ato Declaratório Ambiental] para efeito da redução do valor a pagar do ITR é obrigatória". Pontuando não ser possível negligenciar requisito expressamente previsto em lei, sustentava-se ser o ADA imprescindível ao reconhecimento da área de preservação permanente.

Em sentido diametralmente oposto, por força da aplicação do artigo 19-E, da Lei nº 10.522, de 2002, acrescido pelo artigo 28, da Lei nº 13.988, de 2020 (desempate pró-contribuinte), decidiu a mesma CSRF ser "desnecessária a apresentação de Ato Declaratório Ambiental (ADA) para o reconhecimento do direito à não incidência do ITR em relação às áreas de preservação permanente".[8]

Com amparo no Parecer PGFN/CRJ nº 1329/2016, que incluiu a temática na lista de dispensa de contestar, oferecer contrarrazões e interpor recursos, por força do não acolhimento da tese fazendária pelo Superior Tribunal de Justiça, sustentado que, em que pese a inexistência de precedente daquele Tribunal, "em sede de recurso repetitivo, o que implicaria força normativa formal nos termos do Regimento Interno deste Conselho (artigo 62, § 1o, II, 'b'), a jurisprudência reiterada e orientadora da 1ª Seção daquele Tribunal tem força normativa material, tanto que culminou com a edição do Parecer PGFN/CRJ 1329/2016 (vide artigo 62, § 1º, II, 'c', do Regimento), impondo-se a sua observância como forma de preservar o sobreprincípio da segurança jurídica e o consequente princípio da proteção da confiança". [9]

Segundo o Parecer PGFN/CRJ nº 1329/2016, "mesmo com a vigência do art. 17-O, caput e §1º, da Lei nº 6.938, de 1981, com a redação dada pela Lei nº 10.165, de 2000, até a entrada em vigor da Lei nº 12.651, de 2012, o STJ continuou a rechaçar a exigência do ADA com base no teor do § 7º do artigo 10 da Lei nº 9.393, de 1996. Consequentemente, caso a ação envolva fato gerador de ITR, ocorrido antes da vigência da Lei no 12.651, de 2012, não há motivo para discutir em juízo a obrigação de o contribuinte apresentar o ADA para o gozo de isenção do ITR, diante da pacificação da jurisprudência".

Outra temática que passou, por força da modificação do critério de desempate, a ser decidida em consonância com o consolidado entendimento do STJ, diz respeito à legitimidade passiva do proprietário de imóvel rural, invadido por famílias de sem-terra, para arcar com o recolhimento do ITR.

Há mais de uma década tem o STJ prolatado decisões no sentido de falecer de legitimidade para figurar no polo passivo da relação tributária o proprietário de imóvel rural que tem o bem invadido por trabalhadores sem-terra. O argumento é que teria sido tolhido de praticamente todos os elementos inerentes ao direito de propriedade: "não há mais posse, possibilidade de uso ou fruição do bem; consequentemente, não havendo a exploração do imóvel, não há, a partir dele, qualquer tipo de geração de renda ou de benefícios para o proprietário".[10] A partir da mudança da sistemática do desempate no âmbito do Carf, sagrou-se vencedora a tese há muito sustentada pelo STJ, no sentido de que "[o] proprietário de imóvel rural que tem sua propriedade invadida por trabalhadores sem-terra não possui legitimidade passiva em face do ITR[11] — construindo-se jurisprudencialmente uma exceção implícita, logo não prevista pelo legislador, na regra matriz do tributo (fenômeno denominado de "derrotabilidade normativa"[12]).

À semelhança do que ocorrido no precedente que versava sobre a prescindibilidade do ADA, relatada a existência de outra orientação, desta vez contida no PARECER SEI nº 3/2019/CRJ/PGACET/PGFN-ME, que "recomenda a não apresentação de contestação, a não interposição de recursos e a desistência dos já interpostos, desde que inexista outro fundamento relevante, nas ações judiciais baseadas no entendimento de que 'é impossível cobrar ITR em face do proprietário, na hipótese de invasão, a exemplo das levadas a efeito por sem-terra e indígenas, por se considerar que, em tais circunstâncias, sem o efetivo exercício de domínio, não obstante haver a subsunção formal do fato à norma, não ocorreria o enquadramento material necessário à constituição do imposto, na medida em que não se deteria o pleno gozo da propriedade'".[13]

Não é excessivo repisar que cabe ao Carf a efetivação da "autotutela da legalidade pela Administração, ou seja, o controle da justa e legal aplicação das normas tributárias aos fatos geradores concretos".[14] O artigo 2º da Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, impõe obediência aos "(…) aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência".

Por certo, os princípios norteadores do processo administrativo detêm não só elevado vetor valorativo como também alastram a força axiológica dos valores fortemente consagrados na CRFB/88. E, ao mencionar estar o processo administrativo fiscal pautado na eficiência, quis o legislador fossem alcançados os melhores resultados da forma menos custosa possível, de modo a atender aos anseios dos jurisdicionados. Como pontuado no voto condutor do precedente ora analisado, com a manutenção de entendimento que colide com a remansosa jurisprudência do STJ, haverá "judicialização de questão já pacificada, com maiores ônus para a própria Fazenda Nacional (custas, despesas processuais e honorários advocatícios)"[15], em franca colisão ao princípio constitucional da eficiência.

O artigo 19-E, da Lei nº 10.522, de 2002, acrescido pelo artigo 28, da Lei nº 13.988, de 2020, que determinou a regra de desempate favorável ao contribuinte, foi, conforme visto, essencial à conformação de precedentes dissonantes. Na tarde de hoje, o STF retomará os julgamentos das ADIs de nºs 6.415, 6.399 e 6.403 que questionam, justamente, a inconstitucionalidade de tal dispositivo. Com a decisão do Guardião da Constituição saberemos se haverá a possibilidade de os precedentes se consolidarem ou se permanecerão isolados reveses na jurisprudência da CSRF.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Em estudo elaborado em 2019 que analisava a distribuição de terras em países da América Latina, a OXFAM concluiu que o Brasil liderava o ranking de desigualdade no campo. O relatório aponta, ainda, que os homens estão a frente de mais de 87% dos estabelecimentos rurais no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 17 de março de 2022.

[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 833.

[3] Idem.

[4] Uma das coautoras desta coluna, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, elegeu como tema de investigação a potencialidade de utilização do ITR para fins do cumprimento dos objetivos constitucionais da propriedade no Brasil, país que tem a concentração fundiária perpassando toda a sua história. Enaltecendo não apenas a função arrecadatória (inerente a todo e qualquer tributo), mas também sua função de regulação e de redistribuição e desconcentração de riquezas, o estudo mira, dentre outras aspirações, detalhar o arquétipo do ITR e os mecanismos para sua fiscalização, de modo a demonstrar o porquê de não atuar a favor do mister constitucional.

[5] Segundo o art. 67 do Anexo II do RICARF, “[c]ompete à CSRF, por suas turmas, julgar recurso especial interposto contra decisão que der à legislação tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra câmara, turma de câmara, turma especial ou a própria CSRF.”

[6] Vale frisar que, caso a CSRF aprove enunciado de súmula de matéria de sua competência, passa a observância do entendimento ali consubstanciado a ser obrigatório – ex vi do art. 72 do Anexo II do RICARF. 

[7] De acordo com art. 3º do Anexo II do RICARF, “[à] 2ª (segunda) Seção cabe processar e julgar recursos de oficio e voluntário de decisão de 1ª (primeira) instância que versem sobre aplicação da legislação relativa a: I – Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF); II – IRRF; III – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR); IV – Contribuições Previdenciárias, inclusive as instituídas a título de substituição e as devidas a terceiros, definidas no art. 3º da Lei nº 11.457, de 16 de março de 2007; e V – penalidades pelo descumprimento de obrigações acessórias pelas pessoas físicas e jurídicas, relativamente aos tributos de que trata este artigo.”

[8] CARF. Acórdão nº 9202-008.906, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, sessão de 30 de julho de 2020 (regra de desempate pró-contribuinte). Confira-se em idêntico sentido: CARF. Acórdão nº 9202-009.814, Cons. Rel. MARCELO MILTON DA SILVA RISSO, sessão de 26 de agosto de 2021 (regra de desempate pró-contribuinte); CARF. Acórdão nº 9202-009.560, Cons. Rel. MAURÍCIO NOGUEIRA RIHETTI, Redator Designado JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, sessão de 26 de maio de 2021 (regra de desempate pró-contribuinte).

[9] Idem.

[10] STJ. REsp nº 1144982/PR, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 15/10/2009. Em idêntico sentido: STJ. AgRg no REsp nº 1346328/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 06/02/2017; REsp nº 963499/PR, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 14/12/2009.

[11] CARF. Acórdão nº 9202-010.313, Cons. Rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, Redator Designado MARCELO MILTON DA SILVA RISO, sessão de 15 de dezembro de 2021 (regra de desempate pró-contribuinte). No mesmo sentido: CARF. Acórdão nº 9202-009.822, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, sessão de 26 de agosto de 2021 (regra de desempate pró-contribuinte).

[12] Esses julgados do STJ foram originalmente apresentados como exemplos do fenômeno da derrotabilidade de regras tributárias, na novíssima obra de nosso colunista Carlos Daniel Neto, que passa a ser referência bibliográfica essencial desse tema. Cf. DANIEL NETO, Carlos Augusto. Tributação e Exceção: A Derrotabilidade das Regras Tributárias. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2022.

[13] Idem.

[14] TORRES, Ricardo Lobo. Processo Administrativo Fiscal: Caminhos para o seu Desenvolvimento. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, nº 46, jul. 1999, p. 78

[15] CARF. Acórdão nº 9202-008.906, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, sessão de 30 de julho de 2020 (regra de desempate pró-contribuinte).

Autores

  • é mestranda em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), cujo objeto de investigação é o imposto territorial rural e a concentração fundiária no Brasil. Legal consultant no JusBrasil e advogada.

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University. Foi residente pós-doutoral na UFMG. Conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf; professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!