Opinião

A Lei 14.133 e as expectativas de segurança jurídica para os fornecedores

Autor

  • Theresa Nóbrega

    é advogada mestre e doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco pós-doutoranda pela Externado de Bogotá professora de Direito Administrativo e Coordenadora do LLM (Master of Laws) em Regulação e Infraestrutura da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) coordenadora do Grupo de Estudos em Direito Administrativo (Geda) associada fundadora da Abradade conselheira do Instituto dos Advogados do Estado de Pernambuco (IAP) membro da Comissão de Direito da Infraestrutura da OAB-PE e residente do Instituto de Infraestrutura e Energia (Ifrae).

21 de março de 2022, 19h12

Para os fornecedores habituais da Administração Pública contratar com o Estado sempre foi uma demanda comercial atraente, mas cercada de riscos, principalmente nas relações contratuais, que exigem a entrega do objeto vinculada ao cronograma de entrega longo, com o fracionamento dos insumos, prestação continuada de serviços e várias etapas relativas à execução de obra pública.

O contrato, muitas vezes estendido, por múltiplas prorrogações podia ser prorrogado por até 60 meses, sob a égide da Lei 8.666/1993, apresenta recorrentes, desafios ao processo de repactuação, em função da oscilação do custo de produção abarcado pelas empresas privadas.

Não é incomum aos fornecedores da Administração Pública apresentarem dificuldades na elaboração de proposta capaz de manter as condições econômicas mais favoráveis para o Estado, diante dos riscos empresariais, que impactam no custo de produção, considerando externalidades relacionadas ao preço do petróleo, oscilações cambiais, escassez de matéria prima, variáveis ambientais que aumentam o custo da energia, negociações trabalhistas, dentre outras variáveis.

O fornecimento continuado para o Estado, por vezes, tem motivado a inquietude de fornecedores, acostumados às dificuldades burocráticas de repactuar diante da quebra do equilíbrio econômico financeiro do contrato, ou mesmo da mora da Administração Pública na realização do pagamento de entregas devidamente concluídas.

Com o advento da Lei 14.133/2021, que revoga a Lei 8.666/1993, a Lei 10.520/2002 e a Lei 12.462/2011, há muitas expectativas no que diz respeito a redução das demandas judiciais, relativas aos pontos de conflito, relativos à repactuação para viabilizar o fornecimento do objeto diante das variáveis de custo imprevisíveis ao tempo em que os contratos foram firmados, bem como o requerimento em juízo de valores retidos indevidamente pelo Estado.

A vigência definitiva da Lei 14.133/2021 só se apresentará com o fim da vacatio legis em 1 de abril de 2023, mas a boa nova para os fornecedores já pode ser anunciada, já que as administrações públicas da União, Estados-membros, Municípios e o Distrito Federal estão se preparando para conduzir a transição de suas práticas e melhorar a governança pública.

Alguns instrumentos já experimentados em empresas estatais e contratos de concessão de serviço público, incluindo parcerias públicos privadas referem protocolos que podem favorecer a segurança jurídica dos contratos administrativos do futuro.

Nessa perspectiva, a Lei 14.133/2021 propõe a implantação de instrumentos que favorecem a governança pública e podem reduzir a litigiosidade no curso da execução dos contratos a partir dos seguintes influxos:
– A estimulação quanto a edição de matriz de risco, tendo em vista definir como as partes vão dividir os ônus decorrentes das mudanças que impactam no custo da produção;
– A introdução de ferramentas de resolução extrajudicial de conflitos como a mediação, o dispute boards  Comitê de Resolução de Disputas, a arbitragem, que podem diminuir a judicialização nas discussões relativas ao reequilíbrio financeiro do contrato;
– A implementação de tecnologia para o acompanhamento de obras de engenharia por meio do BIM  building information modeling, que se constitui como modelagem de informação aplicada a execução de projetos de construção civil por meio de software, que sistematiza a execução das etapas da obra pelas empresas do setor de construção, garantindo o acesso da Administração Pública, em tempo real, a uma plataforma de dados capaz de propiciar mais segurança aos agentes públicos no acompanhamento da obra, fomentando praticas dialógicas relativas a readequação do projeto, quando for necessário.
– A imposição de política de integridade a empresas privadas, tendo em vista o aperfeiçoamento do controle interno das empresas, cuja implantação e aperfeiçoamento da qualidade implicam em redução ou extinção de pena, se processo administrativo elucidar hipótese de corrupção prevista na Lei 12.846/2013 e nas leis anticorrupção de Estados-membros e Municípios;
– A indicação do dever imposto à Administração Pública quanto a observação de ordem cronológica para pagamento de fornecedores, com base em cada fonte de recursos público, o que vincula os ordenadores de despesa na realização dos empenhos, de acordo com a categoria do objeto contratado (fornecimento de bens, locações, prestação de serviços e realização de obras), ficando o agente público responsável, obrigado a motivar o ato administrativo em caso excepcional, na qual a ordem de pagamento não seja realizada com base nesse preceito. É possível promover a responsabilidade administrativa do agente público em função pela violação da ordem de pagamento estabelecida na Lei 14.133/2021, inclusive quando a exceção alegada para sua inobservância não se apresentar com no hall determinado pelo §1º do artigo 144 da legislação com a motivação qualificada nos moldes impostos pela Lei 13.655/2018.

A matriz de risco é uma cláusula contratual, que, provavelmente, vai aparecer como referência dos contratos de obras públicas, listando situações que impactam no custo do contrato, como falhas no projeto, greve de trabalhadores, aumento do custo de insumos, dentre outros tantos fatores que podem onerar o contrato, determinando qual das partes arcará com o ônus, considerando a parte responsável pelo prejuízo ou aquela mais capacitada para neutraliza-lo.

Mesmo que o contrato não possua cláusula, definindo sua matriz de riscos, a Lei 14.133/2021 determina obrigatoriamente que o pacto deve fixar o prazo de resposta da Administração Pública, referente ao pedido de repactuação de preços ou restabelecimento do equilíbrio-econômico financeiro. Nesse ponto, temos uma importante referência no combate ao prejuízo causado pelo silêncio da Administração Pública.

A resolução extrajudicial de conflitos é estimulada pela Lei 14.133 que prevê a inclusão de clausula contratual referindo processo periódico de mediação e definindo no artigo 151 uma lista de direitos patrimoniais disponíveis, que inclui conflitos de interesses sobre equilíbrio econômico-financeiro do contrato, inadimplemento de obrigações de quaisquer das partes e o cálculo do valor de indenizações.

O hall de direitos patrimoniais disponíveis não é taxativo, e os frequentes impasses que são comuns em relações contratuais cada vez mais longas, já que a Lei 14.133/2021 sugere que os fornecimentos regulares podem gerar a prorrogação de contratos quinquenais por até dez anos.

No caso das obras de engenharia, um dos ganhos passíveis de reduzir as incertezas no acompanhamento das obras de engenharia, minimizando falhas e conferindo mais segurança à Administração Pública é o uso da plataforma BIM — building information modeling —, que se constitui como um sistema de informação que detalha todos os processos relativos a execução de obras e serviços de engenharia, com ferramentas que permitem o compartilhamento de informações entre as partes.

Na prática, o BIM maximiza o fluxo de informações recebidos pelos controladores da Administração Pública, e, nesse contexto, o Comitê de Resolução de Conflitos podem ser acionado apenas em situações duvidosas, onde as partes necessitem da opinião técnica de uma comissão de experts, através de comitês independentes, que podem sanear divergências em tempo real, mantendo a boa marcha da execução da obra e evitando os sobrecustos causados por longas paralisações de obras públicas.

É possível que a fatia de conflitos levados às câmaras de arbitragem seja inclusive reduzida, pois a experiência internacional realçada por dados da Dispute Board Foundation informa que 85% a 98% das demandas submetidos à Comitês de Resolução de Conflitos são equalizadas de forma satisfatória para as partes.

A Lei 14.133/2021 fomenta a resolução extrajudicial de conflitos referindo que "nas contratações regidas por essa lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias", mas o fato é que as grandes contratações públicas financiadas por bancos de desenvolvimento econômico e social estrangeiros já vem exigindo que a arbitragem seja alçada de forma substitutiva a judicialização de disputas, quando outros meios dialógicos não tenham sido suficientes para sanear situação litigiosa.

Diante de um mar de calmaria ou de uma tempestade de conflitos, nas relações onde o Estado contrata, o fato é que um dos pontos de tensão inegável do contrato administrativo é a espera das empresas privadas pelo pagamento de obrigações devidamente quitadas, pois a Administração Pública, frequentemente, retarda indevidamente o pagamento do fornecedor, quando suas obrigações já foram cumpridas.

De acordo com os parâmetros estabelecidos pela Lei Complementar 101/2000  Lei de Responsabilidade Fiscal, o planejamento orçamentário imposto à Administração Pública descredencia a retenção de créditos orçamentários, oriundos de negligência do ordenador de despesas, já que tais créditos foram vinculados antes que a Administração Pública licitasse, contudo o calote tem se constituído como risco estrutural no Brasil, que lidera um ranking na América Latina, de acordo com a Agência Rating S&P, abarcado 75% das dívidas em relação a contratos de fornecedores do Estado.

Apesar, de observarmos que o cenário de crise fiscal, agravado pelo tempo da pandemia da Covid-19, pode potencializar o risco dos agentes de mercado que contratam com o Estado, é importante destacar que o artigo 155 da Lei 14.133/2021 prevê que a inexecução do contrato pode ser atribuída ao fornecedor e ao contratante, o que indica a cominação das sanções previstas no artigo 156 da Nova Lei de Licitações e Contratos para ambas as partes, equilibrando a balança das responsabilidades, que historicamente sempre esteve atribuída exclusivamente ao fornecedor.

É possível supor que, a ampliação da estabilidade das relações contratuais necessita, para além de uma ruptura legislativa, de um ambiente político e econômico, compatível com as diretrizes de governança pública previstas na legislação, mas é possível registrar que a Lei 14.133/2021 minimiza gargalos de prerrogativas casuísticas do Estado definindo no artigo 138 §1º, que o contratante se obriga a ressarcir prejuízos regularmente comprovados em caso de extinção do contrato, que decorra da culpa da Administração Pública, e que o atraso no pagamento de obrigações quitadas pelo fornecedor não poderá ser suportado, em limite superior a dois meses, reduzindo o prazo de 90 dias imposto pela Lei 8.666/1993 para o exercício do direito de suspender a execução do contrato.

É com base nessas diretrizes da Lei 14.133/2021, que a Administração Pública deve se preparar para mudanças estratégicas na gestão de seus contratos, e os fornecedores podem prospectar expectativas de um ambiente com mais segurança jurídica para contratar com o Estado.

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  • é advogada, mestre e doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, pós-doutoranda pela Externado de Bogotá, professora de Direito Administrativo e Coordenadora do LLM (Master of Laws) em Regulação e Infraestrutura da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), coordenadora do Grupo de Estudos em Direito Administrativo (Geda), associada fundadora da Abradade, conselheira do Instituto dos Advogados do Estado de Pernambuco (IAP), membro da Comissão de Direito da Infraestrutura da OAB-PE e residente do Instituto de Infraestrutura e Energia (Ifrae).

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