Opinião

Criptomoedas e sistema financeiro: regulação e seus efeitos

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21 de março de 2022, 6h08

Em um passado bastante recente, dizia-se que, no universo de aplicação de valores em criptomoedas, poderiam ser encontradas duas classes distintas de mercados. Seriam estes aqueles que simplesmente armazenavam moedas (holders), ou aqueles que faziam aplicações contando com as variações especulativas em curto período, mesmo em um mesmo dia (traders, scalpers ou day-traders). Curiosamente, a lógica dos mercados de criptomoedas, a princípio contra o sistema de classe de ativos tradicional, acabou por avançar em inúmeras alternativas que hoje buscam a convergência com a indústria financeira estabelecida.

E, isso, se justifica, em grande parte, pelo desinteresse ou incapacidade do próprio sistema oficial em pretender ajustar freios e bridões aos movimentos dos criptoativos. Observe-se que, mesmo com o avançar de algumas propostas de leis, é de se ver que não se tem legislação específica a respeito do tema. Em termos oficiais, unicamente encontram-se manifestações pontuais da CVM, Bacen, entre outros, e aqui vale a ressalva do entendimento fiscal, por meio da Instrução Normativa 1.888, de 03 de maio de 2019, que institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB). Mas nada, repita-se, nada, a estipular ideal segurança jurídica.

Note-se, inicialmente, a manifestação da CVM no Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN, que trata da possibilidade de investimento, pelos fundos de investimento regulados pela Instrução CVM nº 555/2014, nas criptomoedas, esclarecendo as dificuldades para sua utilização. Depois, foi publicado o Ofício Circular nº 11/2018/CVM/SIN, complementando seu entendimento sobre investimento em criptomoedas por meio de fundos de investimento. Assim, passou-se a entender que a Instrução CVM 555/2014, responsável por regular os fundos de investimentos em geral, permite que sejam realizados investimentos indiretos em criptoativos. E, mais, autoriza os fundos de investimento a adquirem cotas de veículos de investimento e a contratarem derivativos no exterior, os quais poderiam estar sujeitos a riscos decorrentes de investimento em criptomoedas. Como se sabe, instrumentos derivativos tradicionais são fundamentais para a administração de riscos. Mesmo assim, a incerteza mostra-se grande, quer pelo tipo de investidor, pelo investimento indireto, ou por tudo fazer referência ao art. 2º, V, da Instrução Normativa CVM nº 555/2014, que dispõe que as criptomoedas não podem ser qualificadas como ativos financeiros.

Essa instrução é extremamente importante por ser um divisor de águas, ainda que não tenha resolvido a incerteza jurídica. No entanto, é preciso avançar. O Projeto de Lei nº 2303/15, de autoria do deputado federal Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), e também do substitutivo do relator, deputado federal Expedito Netto (PSD-RO), procura, ainda que de modo imperfeito, mudar esse entendimento conceitual. Com texto aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), bem diferente do original de 2015, ficaram no caminho conceitos esdrúxulos, como equiparar criptomoedas a milhagens e outras tolices. Finalmente, o PL 3825/19, recentemente aprovado pela CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do Senado, trata de regular a prestação de serviços de ativos virtuais e também inclui tais agentes econômicos no âmbito das leis 7.492, de 16/06/1986 (Lei do Colarinho Branco) e 9.613, de 03/03/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro). Mas o importante do projeto é a tentativa de definir o que são ativos virtuais (a moeda eletrônica, nos termos da Lei 12.865, de 09/10/2013) e a competência (que deve ser o Bacen) em estabelecer quais ativos serão regulados e como serão disciplinados, inclusive em matéria de funcionamento, transferência de controle, fusão, cisão e incorporação. Ainda assim, esquiva-se à necessidade de uma regulação, enquanto que, em termos estrangeiros, já se tem investimentos que, por estas bandas, seriam vistos com estranheza e como ilegalidade.

O Banco Central do Brasil, por sua vez, no Comunicado nº 25.306 de 2014, trouxe esclarecimentos a respeito dos riscos de aquisição e realização de transações com as chamadas "moedas virtuais" ou "moedas criptografadas". Por igual, seu aparente distanciamento do mundo cripto é notório, tanto o é que, na seção "perguntas e respostas" constante em seu sítio eletrônico, verifica-se que a autarquia dispôs sobre as "moedas virtuais", e, em especial, sobre sua não regulação, ao afirmar que elas não são emitidas, garantidas ou reguladas pelo Banco Central do Brasil. Possuem forma, denominação e valor próprios.[1]

As corretoras de criptomoedas (exchanges), por igual, não se mostram controladas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica,[2] havendo, unicamente, menção mais explícita por parte da Receita Federal, como mencionado, na citada Instrução Normativa nº 1.888 de 2019. Na verdade, do ponto de vista estritamente fiscal, a prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita se resolve com esse arcabouço jurídico, deixando de ser crime deter ou negociar criptoativos, desde que exista origem e que tal atividade seja declarada. Mesmo assim, sendo tudo de modo esparso, sem qualquer sistematização própria, o tratamento dado ainda é, no  mínimo, bastante criticável.

No ano de 2021, principalmente a partir do último halving do bitcoin, o mundo reascendeu o interesse pelas criptomoedas. Fundos de investimento, cestas de moedas, modalidades várias de empréstimos estão na alça de mira de muitos agentes financeiros, mesmo tradicionais. A dúvida, desde o ponto de vista jurídico, é até que momento a penumbra do limbo legal irá se manter. Aparentemente, isso não se mostra interessante, pois permite abusos de parte a parte. Tem-se, assim, de um lado, o receio dos avessos ao mercado de se estabelecer uma carta de corso em versão cripto e, de outro, de como lidar com um mercado necessariamente desregulado. Mas, sem dúvida, algo será traçado proximamente.

De qualquer forma, salta aos olhos que o mundo está a criar aplicações variadas às criptomoedas, enquanto o Brasil parece limitado em função de uma certa falta de regulação ou permissão. Em um mundo sem fronteiras, como é o cripto, isso não deixa de ser uma contradição em termos, que só leva a um esvaziamento do que se poderia ter por investimento verificado por aqui. Fala-se, é verdade, que dados os volumes de dinheiros envolvidos, a regulação virá. Mas qual?

O fundamental, no entanto, é que qualquer forma, ou modalidade, de regulação venha a se dar de forma racional e, em especial, ouvindo especialistas, pois, aqui, as regulações hão de ter características muito particulares. Regras gerais não se aplicam, e devem, sim, ser matizadas à realidade cripto. O risco sempre presente, e talvez sintomático neste mercado em ebulição, é que outras ramas jurídicas, como o Direito Penal, deixem de se mostrar como figuras acessórias para assumir um papel de primeira grandeza no aspecto regulatório. Caso isso venha a acontecer, não é de se estranhar que, ou a regulação tende a se mostrar errática ou, ainda, que mesmo que venha a gerar algum fruto, as injustiças provavelmente se mostrarão muito mais presentes do que quaisquer demonstrações de controle do mercado.


[1] Disponível na internet: bcb.gov.br/acessoinformacao/perguntasfrequentes-respostas/faq_moedasvirtuais. Acesso em 26.01.2022.

[2] Nota Técnica nº 89/2019/CGAA2/SGA1/SG/CADE, destacou a completa ausência de regulação do setor, seja por meio do CADE, do Banco Central ou da CVM: "Item 169. Ainda que criptomoedas venham a ser classificadas como ativos financeiros e seja permitida sua aquisição como investimento no país, esta SG não pode assumir, atualmente, que corretoras de criptomoedas, não reguladas, são concorrentes diretas de bancos, sendo estes sujeitos a forte regulação, em produtos de investimentos". "Item 352. Na opinião desta SG, diante de todo o exposto, o quadro atual de ausência total de regulação sobre atividades relacionadas a criptomoedas coloca as corretoras em uma situação paradoxal: se por um lado propicia liberdade de escolhas e atuação empresarial; por outro dificulta o estabelecimento de um relacionamento comercial com o SFN, ao qual essa atividade está relacionada".

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