Direito Eleitoral

Gravações ambientais clandestinas versus cadeia de custódia da prova

Autor

  • Guilherme Barcelos

    é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) mestre em Direito Público pela Unisinos-RS pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.) graduado em Direito pela Urcamp-RS membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF e professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) advogado e sócio-fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília).

21 de março de 2022, 8h00

Resumo
O tema que envolve a (i)licitude das gravações ambientais clandestinas no seio dos processos judiciais eleitorais é um dos mais tormentosos que envolvem a Justiça Eleitoral. Desde há muito a controvérsia impera. E só vem sendo agravada. O próprio TSE modificou, em recentes julgamentos, aquilo que ele próprio vinha decidindo acerca do tema — desde 2012, no mínimo. Da ilicitude para a licitude passou-se.

Em um "turning point", especialmente a partir das adequadas investidas do ministro

Spacca
Alexandre de Moraes, rememorando-se, também, as corajosas ressalvas, até então minoritárias, sempre bem lançadas pelos ministro Sérgio Banhos e Tarcísio Vieira de Carvalho, o TSE passou a considerar as gravações ambientais clandestinas novamente como provas ilícitas, sobretudo a partir da inovação legislativa introduzida pelo "pacote anticrime". Falo aqui do artigo 8-A da Lei das Interceptações, que consagra as gravações ambientais clandestinas como elemento probatório apenas para fins de defesa ou negativa, salvo quando precedida de decisão judicial autorizativa da prática. Os casos precedentes, que reputavam como lícita a prática e, com isso, "abriram a porteira" para a confecção de "ilícitos de ensaio" no universo eleitoral, não haviam se debruçado acerca da questão à luz do artigo 8-A (ele sequer existia). Acertou, pois, o TSE [1].

Inobstante isso, há repercussão geral pendente de julgamento perante o STF. E já há voto proferido. Na espécie, votou o relator do recurso extraordinário, ministro Dias Toffoli, para reputar como ilícitas as gravações ambientais clandestinas no bojo da jurisdição eleitoral, salvo se for realizada em local público ou com fins de defesa ou negativa. Pediu vista o ministro Gilmar Mendes. E o julgamento se encontra suspenso. A vermos, portanto, os próximos capítulos.

A esse respeito, costuma-se discutir acerca da licitude das gravações ambientais clandestinas sob a ótica da privacidade, na perspectiva da reserva do diálogo, ou mesmo da existência de flagrante preparado. Há, no entanto, outras questões que, não raro, são ignoradas. A cadeia de custódia da prova é uma delas.

Desse modo, o texto de hoje visa trazer luz a uma questão pouco tratada a respeito das gravações ambientais clandestinas no contencioso eleitoral, isto é, a preservação da cadeia de custódia da prova. Pensamos, a esse respeito, que a matéria também deva ser enfrentada sob essa ótica, de modo que a existência de uma repercussão geral, assim como o debruçar do TSE acerca da temática, representam boas oportunidades para o debate. A cadeia de custódia da prova, como garantia de preservação do iter entre a produção e a apresentação do elemento no processo, desponta como algo necessário de ser debatido. É a nossa proposta aqui.

Por que são ilícitas as gravações ambientais clandestinas?
Sustentamos desde 2014 a ilicitude das gravações ambientais clandestinas, tudo com base nas seguintes constatações: há afronta ao direito fundamental à privacidade; há afronta ao direito fundamental de o indivíduo não produzir provas contra si mesmo; e há existência de flagrante preparado. O tema, por sua vez, se encontra desenvolvido em nosso "Processo Judicial Eleitoral e Provas Ilícitas", publicação que se encontra em 3ª edição a cargo da Editora Juruá. Não iremos aprofundar, portanto.

Já quanto à repercussão geral pendente de solução perante o STF, vale registrar que atuamos, junto ao nosso sócio, Anderson Alarcon, e mediante instrumento de mandato outorgado pelo vereador e colega advogado Gilson Conzatti, como amicus curiae representando a União dos Vereadores do Brasil (UVB). Por ocasião da sustentação oral, reforçamos a ilicitude com lastro nos mesmos argumentos acima referidos, o que foi acolhido, ainda que parcialmente, pelo ministro relator. A esse respeito, ver aqui.

Considerada, no mais, a inovação legislativa materializada pelo artigo 8-A da Lei das Interceptações, passamos a sustentar, de igual maneira, que a prática violaria o aludido dispositivo legal, uma vez que ele requer, para tanto, a observância do preceito da reserva de jurisdição. O processo judicial eleitoral tem feição sancionatória. Logo, o dispositivo legal em comento deveria ser aplicado aos casos eleitorais, mesmo aqueles em curso, considerada a retroatividade da norma mais benéfica. Citamos, de mais a mais, texto escrito pelo professor Lenio Streck com os advogados Marcelo de Lemos e Igor Vasconcellos (ver aqui).

Até aí tudo bem.

Ocorre que a questão pode e deve ir além. E, para além das alegadas violação à privacidade (reserva do diálogo), ao direito de não produzir provas contra si e ao artigo 8-A da Lei das Interceptações, bem como da tese de existência de uma espécie de institucionalização do flagrante preparado, urge a análise da controvérsia sob a ótica da cadeia de custódia da prova, cuja quebra, é bom que se diga, é causa de invalidade da mesma prova.

Indaga-se: no manejo de acusações calcadas nestas gravações no seio dos processos judiciais eleitorais há preservação da cadeia de custódia da prova? Ou, de outra maneira, a cadeia de custódia da prova tem sido preservada quando da produção e apresentação em juízo destes elementos probatórios demasiado controversos? Se não, o que deveria ser observado? E mais: quais seriam os efeitos da quebra?

Passemos, sem mais, ao enfrentamento do tema.

Um debate que tarda
Segundo Geraldo Prado, "a exigência da preservação da cadeia de custódia das provas configura elemento fundamental de adequação do processo penal ao estado de direito" [2]. Haverá quebra na cadeia de custódia da prova, portanto, quando não se puder demonstrar satisfatoriamente a "história da prova", o caminho percorrido entre a sua apreensão ou produção e a sua apresentação em um processo judicial, ou quando houver algum "elo perdido" nesse caminho. Para o autor, ocorrendo a quebra da cadeia de custódia, "não há de se verificar se houve ou não má-fé do agente público ou particular encarregado dela, devendo-se impor de plano o in dubio pro reo" [3].

Nas provas que servem como verdadeira evidência, tais como o DNA ou as interceptações telefônicas (ou gravações ambientais, digo!), a inquietação sobre a quebra da cadeia de custódia é ainda maior, afinal, muitas vezes os juízes constroem a maior parte de seus pronunciamentos em cima delas, como se elas bastassem por si próprias [4]. A rigor, além de escavar lacunas nos elementos probatórios e torná-los porosos e carentes de dados capazes de orientar em outra direção a conclusão judicial acerca dos fatos penalmente relevantes, a quebra da cadeia de custodia indica a perversão dos fins da cautelar: no lugar da "aquisição" e "preservação" de elementos informativos, a medida tende a instrumentalizar ações abusivas de supressão de alguns destes elementos, esgrimindo os remanescentes com apoio no efeito alucinatório das evidências [5].

Como afirmam Aury Lopes Jr. e Alexandre da Rosa, a manutenção da cadeia de custódia "garante a 'mesmidade', evitando que alguém seja julgado não com base no 'mesmo', mas no 'selecionado' pela acusação" [6]. A defesa tem o direito de ter conhecimento e acesso as fontes de prova e não ao material "que permita" a acusação (ou autoridade policial). Não se pode mais admitir o desequilíbrio inquisitório, com a seleção e uso arbitrário de elementos probatórios pela acusação ou agentes estatais [7]. Questão final é: qual a consequência da quebra da cadeia de custódia (break on the chain of custody)? Sem dúvida deve ser a proibição de valoração probatória com a consequente exclusão física dela e de toda a derivada. É a "pena de inutilizzabilità" consagrada pelo direito italiano [8].

Há, a partir daí, questões a serem respondidas, quais sejam: como a gravação ambiental clandestina é produzida? Com que equipamento? O equipamento também foi custodiado? Ele é confiável? Foi submetido à análise? E o áudio ou áudio-vídeo, como foi extraído do aparelho original? Ele foi extraído? Para onde? Como? Com que equipamento intermediador? Houve cortes? O conteúdo está completo? Mais: o que foi feito com a "prova" no curso da produção até a apresentação em juízo? Todas essas etapas são elos da cadeia de custódia da prova. E, nada raramente, não desconsideradas.

Bom, a verdade é que nada disso é esclarecido, sempre ou quase sempre. A gravação ambiental clandestina, como sói ocorrer no processo judicial eleitoral, é simplesmente "jogada" no bojo das contendas sem que esteja sequer minimamente documentado o "trajeto" entre a sua produção e a sua apresentação. Tudo é nebuloso. O ônus pela comprovação da preservação é de quem acusa, de quem apresenta a prova em juízo, no mais. E é aí que, depois de muita reflexão e leitura, compreendemos, seguramente, que, ausente a documentação fidedigna desse iter, não há como acolher este tipo de "prova" em processo judicial eleitoral, considerado o inescapável desrespeito à cadeia de custódia.

A cadeia de custódia é esta "sucessão de eventos concatenados, em que cada um proporciona a viabilidade ao desenvolvimento do seguinte, de forma a proteger a integridade do material" [9]. E é dever do Estado ou do particular acusador (na seara cível-eleitoral é comum) — e, também, direito do acusado, identificar, de maneira coerente e concreta, cada elo, a partir do momento no qual o vestígio foi encontrado. Logo, "a defesa, por sua vez, tem o direito de conhecer a totalidade dos citados elementos informativos para rastrear a legalidade da atividade persecutória, pois de outra maneira não haveria como identificar provas ilícitas" [10].

Cite-se, nesse ínterim, considerada a natureza da "prova" em voga, a doutrina de Michele Taruffo, segundo a qual "o problema de verificar a confiabilidade das provas informáticas resolve-se, então, exigindo-se a prova de diversas condições, ao menos quando a autenticidade ou confiabilidade dessas for contestada: o equipamento do computador deve ser padrão, o processo precisa ser executado de maneira correta e apropriada e o programa deve ser implementado adequadamente. Em síntese: deve-se provar que todo o maquinário que produziu o documento funcionou correta e apropriadamente" [11].

O cerne do problema é que, não sendo respondidas as perguntas arroladas acima, assim como outras que possam surgir no âmago do caso concreto, haverá, sem margem para tergiversações, manifesta quebra da cadeia de custódia da prova, seja porque não se sabe como foram captadas as imagens (qual o equipamento utilizado, quais as suas especificações, qual o estado de funcionamento do equipamento e onde se encontra o equipamento), como as imagens foram acondicionadas no referido equipamento, seja porque não se sabe onde se encontra o conteúdo original, seja porque não se sabe como as imagens captadas foram extraídas do equipamento e acondicionadas e transportadas em pen-drive (as imagens foram extraídas na íntegra?), seja porque não sabe o paradeiro e o destino do equipamento responsável pela captação das imagens, seja porque não se sabe quantas cópias foram feitas, seja porque não sabe qual o equipamento utilizado pelas pessoas envolvidas na produção, captação, transporte e custódia da prova para a visualização das imagens e para o transpasse do conteúdo a outro destino.

E isso se agiganta tratando-se de um processo imerso em disputas eleitorais, com paixões acaloradas, picuinhas partidárias, enfim, com pessoas comprometidas por sentimentos de disputa que, se legítimos o são, afinal, buscar ganhar uma eleição é demasiado legítimo, não raro ultrapassam o sinal (esta matéria será desenvolvida na quarta edição de nosso "Processo Judicial Eleitoral e Provas Ilícitas", que se encontra no prelo) — o mesmo ocorre ou deve ocorrer com "prints" extraídos do Whatsapp, aliás (conversa para outra hora…).

Em síntese, se o caminho entre a produção e a apresentação da prova em juízo contém névoas, a prova não presta. E, se a cadeia de custódia da prova é composta dos elos inerentes ao percurso, a verdade é que, tratando-se de gravações ambientais clandestinas, o que vemos é uma sucessão de elos perdidos.


[1] Os casos do TSE, por sua vez, são os seguintes: REspe n° 0600530-94.2020.6.26.0171, rel. min. Alexandre de Moraes, Agravo de Instrumento nº 29364, acórdão, relator(a) min. Alexandre de Moraes, Publicação: DJE – Diário da Justiça Eletrônica, Tomo 206, Data 9/11/2021 e RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 40483, acórdão, relator(a) min. Mauro Campbell Marques, Publicação: DJE – Diário da justiça eletrônica, Tomo 221, Data 30/11/2021).

[2] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. — 1ª ed. — São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos — 1ª ed. — São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[6] LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. A importância da cadeia de custódia para preservar a prova penal. Revista Consultor Jurídico. Conjur. Limite Penal. 16 de janeiro de 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal. Acesso em: 4/3/2022.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] DIAS FILHO, Claudemir Rodrigues. Cadeia de custódia: do local de crime ao trânsito em julgado; do vestígio à evidência. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; NUCCI, Guilherme de Souza (orgs). Doutrinas Essenciais – Processo Penal. v. 3. São Paulo: RT, 2012. p. 404; tb. MENEZES, Isabela Aparecida; BORRI, Luiz Antônio; SOARES, Rafael Junior. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 277-300, jan.-abr. 2018.

[10] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. — 1ª ed. — São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[11] Taruffo, Michelle. A prova. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

Autores

  • é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF), mestre em Direito Público pela Unisinos-RS, pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.), graduado em Direito pela Urcamp/RS, membro fundador da Abradep, membro da comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF, professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), advogado e sócio fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília-DF).

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