Defesa da concorrência

Atuação do Cade e tendências antitruste ao redor do mundo

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21 de março de 2022, 8h00

Em 2018, a OCDE lançou um projeto para construir um banco de dados estatísticos relacionado às autoridades de defesa da concorrência, incluindo dados sobre os recursos (humanos e financeiros) das autoridades, combate a cartéis, condutas unilaterais, análise de atos de concentração e informações sobre iniciativas de advocacia da concorrência. A terceira edição do relatório "OECD Competition Trends" (OCDE, 2022)[1], lançada no mês passado, abrange um período de seis anos (2015-2020) e conta com 73 jurisdições que representam 91% do PIB e 73% da população mundiais. Entretanto, os dados apresentados no "OECD Competition Trends" são agregados em certos grupos de jurisdições. Nesse sentido, os dados agregados incluem uma análise (i) para todas as jurisdições participantes, (ii) jurisdições da OCDE e não pertencentes à OCDE e (iii) por região geográfica (Américas, Ásia-Pacífico, Europa e outros).

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Apesar dos dados desagregados não estarem disponíveis para todos os países de forma organizada e de fácil acesso, é possível compararmos os dados públicos disponíveis no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) com os recortes agregados apresentados no referido relatório. Dessa forma, é plausível ter uma percepção inicial do desempenho da atuação do Cade vis-à-vis às demais autoridades ao redor do mundo. Entretanto, é importante salientar que tais comparações devem ser feitas com cautela, visto que é sempre uma tarefa difícil fazer comparações de indicadores isolados em contextos, legislações e estágios de desenvolvimento de cada país, que podem ser bem distintos. Com essa preocupação em mente, este artigo busca fornecer uma visão geral das tendências concorrenciais ao redor do mundo tendo como foco a atuação da autoridade de defesa da concorrência brasileira, o Cade.

Segundo o estudo da OCDE (2022), a idade média das autoridades de defesa da concorrência se aproxima dos 33 anos. Por sua vez, o Cade foi criado em 1962. Entretanto, é bom lembrar que foi a partir de 1994, com a lei 8.884, que se instituiu o controle de atos de concentração e foram criados instrumentos efetivos de investigação contra condutas anticompetitivas (Cade, 2013)[2]. Em relação aos recursos humanos, em 2020, as autoridades antitruste empregaram uma média de 129 funcionários na atividade fim, apresentando um crescimento anual de 1,4% entre 2015 e 2020. O Cade apresentou um crescimento cerca de quatro vezes maior (6,1% ao ano), alcançando 205 servidores na atividade fim em 2020.

Interessante ressaltar que com os dados do "OECD Competition Trends" é possível examinar as três funções do Cade – preventiva, repressiva e educativa[3] – em comparação aos seus pares ao redor do mundo. Começarei pela última função em que o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do Cade tem tido papel relevante na elaboração de estudos, com o objetivo de disseminação da cultura da concorrência, inclusive em pareceres sobre advocacia da concorrência (ou, simplesmente, advocacy)[4]. Segundo a OCDE (2022), a advocacy pode assumir várias formas, como estudos de mercado, apresentações, eventos, conferências nacionais ou internacionais. Além do "número de estudos de mercado", o banco de dados da OCDE contém outras duas variáveis de advocacy que medem o "número de opiniões formais de advocacy emitidas para governos, reguladores e legisladores" e o "número de eventos organizados de advocacy". Essas últimas duas variáveis não foram analisadas no relatório da OCDE pela dificuldade de comparabilidade entre as jurisdições. Em relação aos estudos de mercado[5], quase todas as autoridades antitruste realizaram, pelo menos, um estudo de mercado no período de 2015 a 2020. Houve, em média, 2,8 estudos de mercado por jurisdição em 2020. Por sua vez, no mesmo ano, o DEE/Cade produziu 9 estudos de mercado[6] – uma produção cerca de três vezes maior que a média global. Muito embora não seja possível fazer comparações internacionais, em relação ao número de opiniões formais foram produzidas 24 notas técnicas pelo DEE/Cade, além da realização de dez eventos[7]. Como já discutido em outros trabalhos (Barros, 2021; Resende, 2021), o Cade foi bem atuante durante a pandemia de Covid-19.

De acordo com a OCDE (2022), em torno de 90% das jurisdições incluídas no estudo têm um regime de controle de concentração em vigor, embora com algumas diferenças de operacionalização. A grande maioria dos regimes adotam um sistema obrigatório prévio de notificação, cobram uma taxa para notificação da operação, utilizam o faturamento como critério de notificação e oferecem um procedimento simplificado para casos que apresentam baixa concentração de mercado. Ao todo, foram 8.548 decisões de fusões & aquisições em 2020, representando um aumento de 3,0% em relação a 2015, mas um decréscimo de 7,3% em relação a 2019. Desse total, o Brasil representou 5,3% das operações[8], analisando 452 atos de concentração em 2020, com um aumento de 8,1% em relação a 2015, e apresentando um aumento de 3,2% em relação a 2019. Interessante observar que, enquanto na média mundial houve um decréscimo nas análises de fusões no período da pandemia de Covid-19 (até 2020)[9], no Brasil o número de decisões sobre atos de concentração aumentou[10]. Outro ponto interessante são os números de aprovações com remédios antitruste e reprovações de fusões & aquisições. Em 2020, enquanto 2,2% das decisões mundiais tiveram problemas concorrenciais que as autoridades antitruste mitigaram por meio de remédios, apenas 0,2% das operações foram reprovadas. Essas proporções foram semelhantes às observadas entre 2015 e 2019. No Brasil, a média anual de reprovações no período 2015-2020 foi exatamente a mesma da tendência mundial, 0,2%[11]. Por sua vez, em relação às aprovações com remédios antitruste, esse percentual foi menor na jurisdição brasileira, alcançando 1,5% das operações no período 2015-2020.

Em relação às condutas anticompetitivas, o número médio de decisões de cartel por autoridade foi de 8,7 ao ano para países membros da OCDE e de 7,5 para países não-membros, durante o período de 2015 a 2020. No Cade, ocorreram 53 decisões sobre cartéis ao ano, em média, no mesmo período. Entretanto, como observa Silveira (2021) algumas decisões referem-se a desmembramentos de processos administrativos principais em benefício da eficiência processual que são denominados “PA filhote”. Se excluirmos esses PAs de modo a evitar duplicidade e contarmos apenas os cartéis condenados, têm-se 8 condenações por ano entre 2015-2020. Os pedidos de leniência diminuíram em 15,5% ao ano no período 2015-2020, sendo que no Brasil ocorreu um decréscimo de 12,3% ao ano no mesmo período. A média mundial de casos de cartel concluídos por meio de acordo foi de 46% durante o período de 2015 a 2020. No Brasil, esse mesma média é similar, ficando em 48%.

Por sua vez, segundo o relatório da OCDE (2022), os casos de condutas unilaterais estão altamente concentrados em algumas jurisdições, sendo que as 5 principais jurisdições representaram 53% de todas as decisões, e as 10 principais jurisdições representaram 69% (ou 1.062 decisões em valores absolutos) de todas as decisões durante o período de 2015 a 2020. Durante esse período, o Cade esteve entre as principais jurisdições com 35 decisões ao ano[12]. Ademais, a OCDE (2022) observa que encerrar investigações de condutas unilaterais por meio de acordos é relativamente comum, representando cerca de 22% de todas as decisões. Seu uso é mais frequente nos países da OCDE do que em jurisdições não pertencentes à OCDE (respectivamente 41% e 11% entre 2015 e 2020). No Cade, esse percentual foi de 12% no mesmo período[13].

Por fim, o relatório da OCDE (2022) mostra que o total de multas apresentaram um crescimento anual médio de 31% durante o período 2015-2018. No entanto, as multas totais diminuíram 17% em 2019 e 39% em 2020. As multas de cartel representaram a maioria das multas totais (geralmente entre 80% e 95% em cada um dos anos no período 2015-2020). Em relação ao Cade, o padrão foi semelhante à média mundial, i.e., crescimento no valor das multas aplicadas entre 2015 e 2018 e quedas nos anos subsequentes. Entretanto, as multas totais aplicadas pelo Cade diminuíram em um percentual maior (cerca de 70%) entre 2019 e 2020[14].

Para concluir, o que todos esses números querem dizer e onde o Cade se encontra entre seus pares internacionais? A meu ver, esses números refletem a posição de destaque internacional que o Cade vem assumindo nos últimos 10 anos. As três esferas de atuação do Cade preventiva, repressiva e educativa têm mostrado um desempenho robusto. Em atos de concentração, temos uma legislação em linha com as melhores autoridades do mundo e que foi capaz de lidar com um número de casos crescente mesmo em um cenário de pandemia. Nas condutas anticompetitivas, o Cade mantém sua posição de destaque no combate a cartéis e vem se consolidando nas investigações de condutas unilaterais. A estrutura do Departamento de Estudos Econômicos (DEE) foi robustecida nos últimos anos, permitindo que pudesse não apenas prestar apoio qualificado na instrução dos casos, à Superintendência-Geral e ao Tribunal do Cade, mas também desempenhar um papel relevante de advocacy, promovendo a cultura da concorrência. Muito ainda tem que ser feito nos próximos anos para continuar a transformação do ambiente concorrencial que o Brasil necessita. Entretanto, manter essa rota com o aperfeiçoamento das experiências já exitosas é o melhor caminho.  

Referências bibliográficas

BARROS, B. A. C. (2021) Advocacia da concorrência na pandemia da Covid-19: a atuação do departamento de estudos econômicos do CADE em propostas de congelamento de preços. 2021. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília.

CADE (2013) Defesa da concorrência no Brasil: 50 anos. Coordenação de Vinícius Marques de Carvalho e Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo. – Brasília: Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade.

CADE (2022) Anuário Cade 2021. Brasília: Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade. Disponível em: https://indd.adobe.com/view/adfd8e43-0a8b-4b2d-be7c-75bf058a4239.

OCDE (2018) Guide on Market Studies for Competition Authorities. Disponível em:  https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/WD(2018)26/en/pdf.

OCDE (2020) Using Market Studies to Tackle Emerging Competition Issues. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/using-market-studies-to-tackle-emerging-competition-issues-2020.pdf  

OECD (2022) OECD Competition Trends 2022. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/oecd-competition-trends-2022.pdf.   

RESENDE, Guilherme Mendes (2021) A promoção da defesa da concorrência pelo Cade. Revista Consultor Jurídico. Coluna Defesa da Concorrência. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-25/promocao-defesa-concorrencia-cade

RESENDE, G. R.; Motta, L. V.; Pinto, T. L. S. (2020a) Mensuração dos benefícios esperados da atuação do Cade em 2018. Documento de Trabalho nº 1/2020, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Brasília.

RESENDE, G. R.; Pinto, T. L. S. (2020b) Mensuração dos benefícios esperados da atuação do Cade em 2019. Documento de Trabalho nº 7/2020, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Brasília.

RESENDE, G. R.; Pinto, T. L. S.; Santos, N. C. (2021) Mensuração dos benefícios esperados da atuação do Cade em 2020. Documento de Trabalho nº 5/2021, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Brasília.

SILVEIRA, P. B. (2021) Direito da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense.

 


[1] Também, é possível acessar a página do projeto na internet: https://www.oecd.org/competition/oecd-competition-trends.htm.

[2] Por sua vez, com a Lei 12.529 de 2011 foi introduzido o controle prévio de atos de concentração entre outras inovações.

[3] Essa última função, que engloba a advocacia da concorrência, é compartilhada com a Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (Seae), do Ministério da Economia.

[4] Já escrevi um artigo na Conjur sobre o papel da promoção da defesa da concorrência no Cade. Ver Resende (2021).

[5] As autoridades antitruste podem usar estudos de mercado para identificar proativamente se há preocupações concorrenciais em um mercado ou setor específico (OCDE, 2020) ou para aprimorar seu conhecimento de um setor específico, o que pode ser útil em futuras investigações antitruste, bem como como casos de atos de concentração ou esforços de advocacia (OCDE, 2018)

[7] Aqui não se incluiu os esforços de advocacy da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (Seae), do Ministério da Economia. Nesse sentido, o desempenho do Brasil deve ser ainda melhor nessa área de advocacy.

[8] Comparativamente, a população brasileira representava menos de 3% da população mundial em 2020.

[9] Em 2021, o cenário mundial parece ter se modificado, visto que ocorreu um grande crescimento das fusões e aquisições ao redor do mundo. Ver: https://www.reuters.com/markets/us/global-ma-volumes-hit-record-high-2021-breach-5-trillion-first-time-2021-12-31/ .

[10] Esse número de operações analisadas alcançou 611 em 2021 (Cade, 2022).

[11] Vale ressaltar que, durante 2015-2020, 11 atos de concentração perderam o objeto em fase de análise no Tribunal do Cade. Como Silveira (2021) salienta, pode-se considerar que esses casos se aproximam de reprovações “de fato”. Se incluirmos esses atos de concentração no cálculo teríamos que 0,7% das operações foram reprovadas (esse percentual também é semelhante à média internacional).

[12] Foram incluídos em condutas unilaterais, os casos de conduta comercial uniforme, inclusive tabelamento e unimilitância. Além disso, “PAs filhotes” estão incluídos nesses números.

[13] Esse percentual utiliza no denominador o total de investigações concluídas.

[14] Para um detalhamento sobre os benefícios da atuação do Cade e as multas aplicadas no período, ver os documentos de trabalho de Resende et al. (2020a), Resende et al. (2020b) e Resende et al. (2021).

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