O bom combate

O Ministério Público precisa melhorar sua investigação, diz promotor alvo nº 1 do PCC

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20 de março de 2022, 8h51

"João Doria transfere Marcola com ajuda de Sergio Moro", diziam as manchetes de 14 de fevereiro de 2019. Os agora presidenciáveis bateram bastante tambor na época como mentores e executores da transferência do líder e de outros 21 integrantes do PCC, a mais midiática organização criminosa do país, do presídio estadual de Presidente Venceslau (610 km a oeste da capital paulista) para as penitenciárias federais de Porto Velho (RO) e Mossoró (RN).

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Mas os presídios federais, inaugurados em 2008 e 2009, respectivamente — os outros três sob administração da União são o de Catanduvas (PR), inaugurado em 2006; o de Campo Grande, 2006; e o do Distrito Federal (2018) —, só receberam os novos detentos por conta da ordem do juiz da 5ª Vara de Execuções Criminais, Paulo Sorci, a pedido do promotor Lincoln Gakiya, do Ministério Público estadual de Presidente Prudente (SP).

"É uma inverdade [plano e ação do governador e do então ministro da Justiça e da Segurança do governo Bolosonaro para transferência de líderes do PCC]", diz Gakiya. "Elaborei, planejei e fiz o pedido (clique aqui para ler) ainda durante o governo de [Márcio] França, em 2018. E quem deferiu a ordem foi um juiz estadual. Não o governo federal. O juiz federal que recebe esse preso nem pode analisar o mérito do pedido. Só analisa se o pedido está formalmente em ordem. Não houve nenhuma participação seja do governo federal, seja do ex-ministro Moro, do presidente Bolsonaro ou de qualquer outra pessoa. Foi feito por mim, por conta e risco. Ao governo federal bastava apenas cumprir."

"Em relação ao governador Doria [que também acabara de assumir o mandato], se pegar o processo, sob sigilo, não há nenhuma linha do governo estadual orientando se era ou não para fazer tal remoção. Não cabia a eles. Mas, se não fiquei com o bônus, conhecido do grande público como responsável pelas remoções, fiquei com um pesado ônus, para o resto da vida na mira da organização. Nenhum promotor assinou o pedido comigo", narra.

Gakiya contou à ConJur, de sua sala com janelas blindadas no Ministério Público estadual em Presidente Prudente (558 km a oeste de São Paulo), que isso tornou sua vida ainda mais restrita. "Não posso viajar, ir a bares ou restaurantes. Na maioria das vezes, acabamos ficando em casa", disse o promotor de 55 anos, casado, pai de dois filhos, que sempre leva a tiracolo cerca dez policiais — oito soldados do batalhão especial, armados com rifles de assalto, e mais dois ou três à paisana.

Há quase 17 anos investigando os passos do Primeiro Comando da Capital, "fundado" há quase três décadas como uma irmandade carcerária para proteger os presos do brutal sistema penitenciário de São Paulo, o grupo, segundo Gakiya, evoluiu hoje para uma espécie de máfia multinacional, com ramificações no Paraguai, na Bolívia e na Colômbia, com cerca de 40 mil adeptos e um fluxo de receita que gera cerca de meio bilhão de dólares por ano.

O grupo teria expandido seus domínios em todo o Brasil na última década, superando em grande parte seu principal rival, o Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, em um violento conflito nacional por disputa de território.

ConJur — Uma dúvida para o senhor, um dos maiores estudiosos do PCC: normalizou-se dizer que tal facção criminosa se organiza como se tivesse CNPJ, organograma… Em um país em que nem o governo é orgânico, faz sentido que esse grupo tenha tamanha organização?
Lincoln Gakiya — Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno. Está se sofisticando. Mas o estado de São Paulo pagou caro pelo estágio de negação do PCC. Nos anos 1990, era comum ouvir secretários de segurança, de administração penitenciária, governador negarem a existência dessa facção. Era uma coisa muito de dentro do sistema prisional, de conhecimento dos gestores internos. Não havia repercussão, até porque não se refletia nas ruas. Tínhamos rebeliões. Mas estávamos ainda na época dos cadeiões. As condições prisionais no estado eram muito piores do que são hoje.

Costumo separar o PCC em três fases: dos anos 1990, a de criação. Tem aquela história do time de futebol no Carandiru, que acho lenda urbana. Mas havia essa insatisfação dos presos com a gestão do sistema prisional. Só que algumas lideranças internas de cada região acabaram, em algum momento, juntos no mesmo estabelecimento prisional, o de Taubaté, para cumprir punição. Ainda não tínhamos o RDD [regime disciplinar diferenciado] de Presidente Bernardes [no extremo oeste do estado, entre Presidente Prudente e Presidente Venceslau].

Essa suposta gênese teria se dado na Casa de Custódia lá no Vale do Paraíba. Então houve uma situação ideal para que esse encontro de criminosos florescesse e se criasse um grupo organizado, nos moldes das facções mais antigas, como a do Comando Vermelho [criado em 1979, no presídio da Ilha Grande (RJ)].

ConJur — No caso de São Paulo, época do fatídico massacre do Carandiru [1992]…
Gakiya  Era um horror. Mal gerido. Sistema de inteligência zero. Ainda havia muitas rebeliões em São Paulo. A maioria, obviamente, para reivindicar alimentação, problema de processo, maus tratos… E os anos 1990 também estão marcados pela violência entre os membros fundadores, com planos mirabolantes, tipo explodir a bolsa de valores e o fórum da Barra Funda [zona oeste de SP]. Nos anos 2000, quando o Marcola [Marcos Willians Herbas Camachoconsegue tomar o poder para si, bota os comparsas mais próximos nessa suposta diretoria. Alguns ele "rebatizou". Tratam Marcola como padrinho [godfather]. E ele começa a distribuir uma espécie de "serviço social" do PCC para arregimentar mais integrantes.

Em seguida foi montada uma espécie de "diretoria", batizada de "sintonia final geral", uma conselho deliberativo do qual Marcola era o presidente. Mas as decisões eram colegiadas. A denúncia de 2013 [clique aqui para ler] foi quase toda fundada em escutas telefônicas [autorizadas pela Justiça]. O trabalho ainda estava começando. Tinha voto vencido e a maioria ganhava. Marcola era o grande líder, mas estava cercado dessa "sintonia final".

ConJur — Havia e há tanta facilidade para a cúpula comandar esse "exército" de dentro da prisão?
Gakiya — Isso tudo começou a partir de uma estratégia equivocada do Estado. Depois de reuni-los num mesmo presídio, no de Taubaté, nos anos 1990, repetiram isso em 2006. Todos as lideranças foram para a mesma unidade de [Presidente] Venceslau, uma cadeia extremamente segura, distante dos grandes centros, reformada para isso. Passou a ter um grupo de intervenção rápida. Em tese, seria mais fácil de monitorá-los. Mas acabou facilitando o intercâmbio.

ConJur — A maioria dos pretensos "grandes escândalos" no Brasil, apelidados de operações, teve seus processos anulados. Em geral por nulidades e falta de materialidade. O que o senhor acha da qualidade da investigação no país?
Gakiya — Não vou tecer comentário específico sobre anulação de provas de outras grandes operações, muitas delas realmente midiáticas. Acho que a gente precisa voltar os olhos para corrigir o que foi feito de maneira inadequada e melhorar. Se o Ministério Público quer ter o direito de investigar, precisa fazer com qualidade. Eu, com 30 anos de carreira, já cometi inúmeros erros — não dolosos — de percepção, de investigação.

O Ministério Público não é o dono da verdade. Temos um índice de resolução de casos que não é considerado adequado para o país. Principalmente no que tange a homicídio de pessoas mais pobres, ele é praticamente ínfimo. Mesmo em outras áreas, com mais resoluções de casos, o índice ainda é muito ruim. Melhorar a fiscalização do sistema financeiro, agora com essa questão de criptomoedas, criptoativos. Temos uma Receita Federal, o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], com profissionais extremamente qualificados, que muitas vezes não têm uma ligação com o MP, as polícias.

ConJur —  O MP de São Paulo classificou o PCC como uma organização em estágio "pré-mafioso". O que faltaria para o grupo se tornar uma máfia de fato?
Gakiya —
Na verdade fui eu que utilizei o critério para classificar o PCC como organização em caráter pré-mafioso, na linha, digamos assim, acadêmica. A máfia é um tipo de organização criminosa que tem uma série de requisitos. O principal deles é a organização do tipo empresarial. Atuação transnacional, uso de métodos violentos para que as condutas sejam seguidas. Você encontra quase tudo no PCC. O único item que eu, ao contrário de outros colegas e até de alguns especialistas mencionavam, é a questão da lavagem de dinheiro. Um requisito essencial para uma organização criminosa ser considerada mafiosa é a lavagem estruturada. O PCC ainda não tinha. Está começando a ter. Quem tem lavagem de dinheiro estruturada neste momento são os "sócios". Aqueles "acionistas majoritários", as principais lideranças. Mas o PCC como organização criminosa até alguns anos atrás era extremamente arcaico nessa questão. Enterrava dinheiro. Coisa surreal. Não é como as pessoas pensam: "Olha, eles estão aplicando em bitcoins". Há um pouco de fantasia nisso.

ConJur —  Boa parte da população carcerária do país [estima-se 1/3] está presa preventivamente. Ser encarcerado por anos sem julgamento definitivo é fator de revolta. Pode-se dizer que o Estado é provedor do crime organizado?
Gakiya — Não vou dizer que o Estado seja provedor do crime organizado, mas há uma desorganização dos entes estatais. Faz 30 anos que leio e falo sobre trabalho integrado, coordenado, de forças de estados e da União. Falta coordenação. Hoje, pegando o caso do PCC, não tem mais fronteira. Se quiserem parar o sistema prisional, param. É que no momento não há vontade para isso.

Nas regiões mais pobres, o PCC distribui presentes de Dia das Mães, brinquedos no Dia das Crianças. Claro que também falta o Estado. Se lá houvesse opções de lazer, de emprego… É um círculo vicioso. E com isso se aproximam da comunidade e ganham certa proteção também.

Nas cadeias, o detento que entra pela primeira vez vai ser cooptado. Alguém vai se aproximar dele e lhe dirá: "Fica tranquilo, ninguém vai abusar sexualmente de você, nem da sua esposa". E assim a pessoa se sente protegida, está com a maioria. Ninguém quer ficar com a minoria. As cadeias, sim, acabam sendo a porta de entrada.

ConJur — Foi só a partir de 2006, no episódio que ficou conhecido como "salve geral" [série de ataques a partir de 12 de maio daquele ano que resultou em cerca de 300 mortes], que a organização começou ser levada mais a sério pelas autoridades políticas?
Gakiya — E a partir dali levamos quase sete anos para mapear o grupo. Montamos um organograma que é usado praticamente no Brasil inteiro. Tem as divisões das funções do PCC de maneira bastante clara e isso está bem descrito na denúncia de 2013. Então, o que a gente fez e faz até hoje é substituir as peças. São 175 réus, numa denúncia toda individualizada. A individualização da conduta de cada um deles. Não era mais uma quadrilha ou bando, apesar de ter sido tipificado assim. A lei de organização criminosa fora sancionada meses depois.

Antes disso, cada vez que a gente entrava com uma denúncia contra um integrante de Presidente Prudente ou de São Paulo, tinha de provar que o PCC existia. A partir do momento em que essa denúncia foi recebida pelos tribunais, não precisa mais provar que o PCC existe.

ConJur — Nossa política de combate às drogas não é enxugar gelo? O Estado brasileiro não prende muito e prende mal?
Gakiya —
Particularmente, não acho que se prende demais por aqui. O que o Brasil tem feito é trocar o pneu com o carro andando. Vamos diminuir a questão do usuário e do pequeno traficante? Temos capacidade para dar tratamento adequado ao drogadito? É uma questão complexa.

As grandes organizações criminosas hoje vivem do tráfico de entorpecentes. Mas a experiência também tem mostrado que nos países onde houve liberação de algum tipo de droga, as consideradas recreativas, em um primeiro momento se imaginou que houvesse uma diminuição dos índices de tráfico ilícito. Só que tem a questão do preço.

Na Holanda, no Uruguai, no próprio Estados Unidos, o sistema tem ficado um caos. Até tem aumentado os índices de homicídios. Poucos podem comprar drogas na farmácia com RG, com CPF, com uma quantidade controlada. O traficante consegue colocar num preço menor. É um desafio mundial.

Mas também é algo que você não resolve com ações policiais. Além de aplicar a lei de execução penal, deveria se separar presos por periculosidade, por unidades prisionais, para evitar o contato de pequenos traficantes ou de pequenos furtadores dos homicidas e dos grandes traficantes, minorias nos presídios brasileiros.

Mas, com uma cadeia que tem 30, 40 caras numa cela, você vai conseguir fazer essa separação? Nisso o Estado é culpado. Mas, por outro lado, no caso específico de São Paulo, tenho observado que aquela curva de aumento de presos em regime fechado não tem aumentado. Tem até diminuindo um pouco.

Outro problema é o de recolocação de ex-detentos no mercado de trabalho. Quem é que dá vaga para um preso? Isso está na cultura do brasileiro. Todo mundo vira as costas. Então, a questão precisa ser tratada de maneira estrutural.

ConJur — Voltando a falar da qualidade das investigações, das perícias. Exemplos como o uso de câmera por parte de policiais vieram para ficar? O senhor teria alguma outra sugestão de boas maneiras no trato das investigações?
Gakiya —
É uma realidade que talvez num primeiro momento cause um pouco de estranheza para o policial. Sou contra apenas o uso de câmeras nas operações especiais. Quem deve usá-la é o policial que faz patrulhamento. Você não deve tratar um sequestro, uma ameaça de bomba, com um cara usando câmera. Pode até prejudicar. Nisso eu sou contra. Mas a câmera realmente no dia a dia tem a capacidade de evitar algum tipo de abuso. Serve também como garantia ao policial.

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