Opinião

O caso Bjarki H. Diego vs. Islândia, de 2022: lições de devido processo para o Brasil

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

17 de março de 2022, 9h14

Introdução
A grande crise de liquidez do sistema financeiro mundial que ocorreu em 2007 nos Estados Unidos, devido à disseminação de títulos hipotecários de alto risco (subprime mortgage), levou à insolvência vários bancos naquele país.

A hecatombe no setor acabou chegando à Islândia no ano seguinte. A pequena nação insular no Atlântico Norte foi varrida por um terremoto financeiro que pôs na lona os três maiores bancos comerciais do país (Glitnir, Landsbanki e Kaupþing). A moeda local, a coroa islandesa, desvalorizou-se em 80% em relação ao euro. Os prejuízos para a Islândia e seus cidadãos foram imensos.

No plano judicial, o Estado islandês reagiu à crise com a criação de um órgão especializado do Ministério Público. A Lei 135/2008 instituiu a Procuradoria Especial, com atribuição para investigar e processar crimes financeiros, delitos tributários e crimes contra a ordem econômica ocorridos no contexto da crise. Mais de uma década depois, esta atribuição é agora do próprio MP islandês, encabeçado pelo Director of Public Prosecutions (DPP) ou Ríkissaksóknari, e integrado pela Procuradoria Distrital (Héraðssaksóknari) e pelos procuradores policiais (district commissioners of police).

Um dos processos levados a julgamento pelos tribunais islandeses teve agora desfecho na Corte Europeia de Direitos Humanos. No caso Bjarki H. Diego vs. Islândia, os juízes em Estrasburgo concluíram ter havido violação ao artigo 6º da Convenção Europeia de 1950, porque o réu Bjarki Diego fora ouvido como testemunha e, na ocasião, o procurador especial não informou ao sr. Diego que ele, na verdade, já estava sob investigação nem lhe alertou do seu direito de ser assistido por advogado. O investigado prestou compromisso como se testemunha fosse e o caso seguiu até o julgamento.

Em 2015, Diego, que trabalhara para o banco Kaupþing, foi condenado pela corte distrital de Reiquiavique por fraude financeira a dois anos e seis meses de detenção. No recurso à Suprema Corte islandesa, sua condenação foi mantida. Como vimos, o Kaupþing foi um dos três bancos privados que foram liquidados pelas autoridades locais após a gravíssima crise financeira de 2008.

Esgotadas as instâncias internas, abriu-se um caso em Estrasburgo.

O direito de ser informado da acusação
Em sua decisão em Bjarki Diego, a Corte Europeia levou em conta que, na data do depoimento do Sr. Diego na fase investigativa, como testemunha, na verdade ele já era investigado — seu telefone havia sido grampeado durante dois meses mediante ordem judicial — e, portanto, o então depoente deveria ter sido informado das suspeitas que sobre ele recaíam já naquele momento. Deliberada ou não, a falha da promotoria em prover tais informações ao suspeito viciou o devido processo legal, nos termos do artigo 6.3.a da Convenção de 1950. Ali se diz que o acusado tem, como mínimo, entre outros direitos, o de ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;

No sentido que lhe dá a Corte Europeia, há uma criminal charge contra uma pessoa (i) desde o momento em que esta é informada pela autoridade competente da alegação de que teria praticado um crime; (ii) ou desde o instante em que seu status libertatis for substancialmente afetado por diligências estatais resultantes de tais suspeitas.

CASO BJARKI H. DIEGO v. ISLÂNDIA
43. Em primeiro lugar, a Corte reitera que a proteção conferida pelo artigo 6º, §§ 1 e 3 (a) e (c) se aplica a uma pessoa sujeita a uma "acusação criminal", no sentido autônomo da convenção para esse termo. Uma "acusação criminal" existe a partir do momento em que um indivíduo é oficialmente notificado pela autoridade competente de uma alegação de que cometeu uma infração penal, ou a partir do momento em que sua situação tenha sido substancialmente afetada por ações tomadas pelas autoridades como resultado de uma suspeita contra ele (ver Ibrahim e outros vs. Reino Unido [GC], n.º 50541/08 e três outros, § 249, 13 de setembro de 2016, e Simeonovi vs. Bulgária [GC], n.º 21980/04 , §§ 110-11, 12 de maio de 2017).

No caso em tela, a existência da interceptação telefônica inequivocamente punha Bjarki Diego na condição de investigado, não na de testemunha.

CASO BJARKI H. DIEGO vs. ISLÂNDIA
45. A Corte observa que o demandante foi um dos oito indivíduos cujos telefones foram grampeados, conforme mandados judiciais, por dois meses antes de seu depoimento em 14 de maio de 2010, e que esses indivíduos foram repetidamente identificados como “suspeitos” nos relatórios de acompanhamento da escuta telefônica (ver parágrafo 8 acima). O Tribunal observa ainda que nos pedidos para obtenção de mandados relativos ao requerente, o Procurador Especial afirmou repetidamente, já em 9 de março de 2010, que havia suspeitas de que o requerente participara de decisões sobre as supostas condutas ilícitas nos casos sob investigação.

No ordenamento brasileiro, o direito de ser informado da condição de investigado não é claro na legislação processual. O artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição assegura que o "preso" deve ser informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, o de contatar sua família e ter a assistência de advogado.

Nesta linha, em 2021, inspirando-se no caso Miranda vs. Arizona, da Suprema Corte dos EUA, o STF decidiu invalidar condenação criminal que se baseara exclusivamente em supostas declarações firmadas perante policiais militares no local da prisão. O STF entendeu ser inaceitável tal medida, por violar o direito ao silêncio do sentenciado. De modo similar ao precedente que gerou o Miranda warning, a "Constituição Federal impõe ao Estado a obrigação de informar ao preso seu direito ao silêncio não apenas no interrogatório formal, mas logo no momento da abordagem, quando recebe voz de prisão por policial, em situação de flagrante delito". (STF, RHC 170843 AgR, Relator(a): Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 4/5/2021).

Tal dispositivo constitucional encontra paralelo no artigo 7.4 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e no artigo 9.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. No tocante ao direito à liberdade pessoal, a CADH determina que "toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela".

Quanto ao direito ao silêncio, tais dispositivos devem ser lidos para abranger o direito à informação quanto à possibilidade de seu exercício por qualquer pessoa criminalmente investigada pelo Estado, esteja presa ou não.

No âmbito da investigação criminal, o artigo 2º, §6º da Lei 12.830/2013, que trata do indiciamento policial, implicitamente representa uma informação ao suspeito de que a partir dali a Polícia concluiu ser ele o autor da infração penal. Mas, a tal altura, a investigação já estará praticamente encerrada.

O que mais se aproxima da ideia de criminal charge, no sentido conferido pela Corte Europeia, é a nota de culpa entregue ao suspeito por ocasião da prisão em flagrante (artigo 306, §2º, CPP) ou a nota semelhante de que trata o artigo 2º, §4º, da Lei 7.960/1989, sobre prisão temporária.

Obviamente, a denúncia e a queixa-crime também cumprem esse papel de informar a pessoa da existência de uma acusação, mas só a partir da deflagração da persecução penal em juízo.

O direito à assistência de advogado
Além de não ter sido informado do seu status de investigado, durante seu depoimento na fase investigativa, o sr. Diego não teve direito à assistência de advogado, o que também impactou no exercício do seu direito de defesa. Conforme a CEDH, "não se pode inferir do fato de ele não ter feito tal pedido que ele tenha renunciado ao direito a um advogado durante o depoimento".

A assistência de advogado é essencial ao devido processo legal. Tal direito é assegurado pela Constituição brasileira (artigo 5º, LXIII e art. 133) e também por dois tratados de que o Brasil é parte: a CADH (art. 8.2) e o PIDCP (art. 14.3).

Sua violação, quando dolosa, pode configurar crime de abuso de autoridade, previsto no artigo 15 da Lei 13.869/2019, que impõe pena de um a quatro anos de reclusão e multa a quem "prossegue com o interrogatório de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono".

Consequências da decisão em Bjarki
Atendo-se ao fato de não ser uma corte de cassação das decisões judiciais dos Estados Partes da Convenção Europeia, a CEDH não ordenou um novo julgamento do acusado. Limitou-se a reconhecer a possibilidade de aplicação de uma espécie de revisão criminal prevista nos artigos 228 e 232 do CPP islandês, que permitem a reabertura de uma causa mesmo após o trânsito em julgado.

CASO BJARKI H. DIEGO vs. ISLÂNDIA
64. Tendo em conta as circunstâncias particulares do presente caso, a Corte concorda com o Governo que a constatação de uma violação do artigo 6 § 1 da Convenção constitui por si só uma justa satisfação em relação a qualquer dano imaterial. A Corte observa ainda que cabe ao Estado demandado escolher, sob supervisão do Comitê de Ministros, as medidas gerais e/ou, se for o caso, individuais a serem adotadas em seu ordenamento jurídico interno para pôr fim à violação ou violações constatadas pelo Tribunal e remediar na medida do possível os efeitos. A esse respeito, a Corte observa que os artigos 228 e 232 da Lei Procesusal Penal dispõem que o Comitê de Revisão de Processos Judiciais pode, quando certas condições estiverem preenchidas, ordenar a reabertura de processos criminais que tenham sido encerrados por uma sentença definitiva proferida pelo Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal (ver, mutatis mutandis, Ibrahim e outros, já citado, § 315, e Ramos Nunes de Carvalho e Sá v. Portugal [GC], n.ºs 55391/13 e 2 outros, § 222, 6 de novembro de 2018). A esse respeito, a Corte destaca a importância de assegurar que os procedimentos internos sejam implementados para que um caso possa ser reexaminado à luz da constatação de que o artigo 6 da Convenção foi violado. Como o Tribunal sublinhou anteriormente, tais procedimentos podem ser considerados um aspecto importante da execução das suas sentenças e a sua disponibilidade demonstra o compromisso de um Estado Contratante para com a Convenção e com a jurisprudência do Tribunal (ver Moreira Ferreira c. Portugal (n. 2) [GC], nº 19867/12, § 99, 11 de julho de 2017).

Caberá, portanto, a Reiquiavique decidir como proceder, na sua ordem interna, para remediar a violação detectada pela Corte de Estrasburgo, o que torna essencial, no entendimento do tribunal, que existam procedimentos no direito local que permitam contornar ou resolver um vício de due process identificado num caso criminal concreto. No particular, o artigo 288, alíneas "c" e "d", do CPP islandês viabiliza a revisão criminal quando: c) for demonstrado que há forte probabilidade de que as provas apresentadas no caso foram erroneamente avaliadas, influenciando o desfecho do caso; ou quando d) tiverem ocorrido vícios substanciais no procedimento, influenciando o desfecho do caso.

Exame do precedente à luz do processo penal brasileiro
Se uma decisão semelhante fosse adotada pela Corte IDH contra o Brasil, não haveria no direito processual penal brasileiro nenhuma regra que viabilizasse a solução do caso em concreto. Talvez, com algum esforço, a solução pudesse ser buscada no artigo 621 do CPP, que trata da revisão criminal. Mas este dispositivo, datado de 1941, obviamente não contém qualquer cláusula de diálogo com as decisões do sistema interamericano de direitos humanos.

A revisão será possível no Brasil a) quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; b) quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; ou c) quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena

Comparando-se o artigo 621 do nosso CPP com o artigo 228 do CPP islandês, nota-se haver ali hipóteses de revisão criminal que não são previstas pela legislação brasileira.

Como se viu nos desdobramentos do caso Sétimo Garibaldi vs. Brasil perante o TJ-PR e o STJ não temos ainda uma enabling legislation que facilite ou viabilize, diretamente e sem rodeios, o cumprimento das decisões da Corte IDH no Brasil. Ali (vide o RESP 1.351.177/PR) o problema estava no artigo 18 do CPP, que não permite, como deveria permitir, o desarquivamento de uma apuração criminal em função de uma sentença da Corte IDH.

A faculdade de desarquivamento ora presente no CPP de 1941 e na Súmula 524 do CPP é restrita à descoberta de novas provas, não abrangendo a necessidade de cumprimento de obrigações processuais positivas afirmadas no contencioso interamericano. Datado dos anos 1940, o artigo 18 do CPP limita-se a autorizar que, depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, a autoridade policial proceda a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.

Como disse a Corte Europeia em Bjarki Diego, deve haver procedimentos internos que permitam que um caso seja reexaminado pelo Judiciário local após a constatação de uma violação ao devido processo legal. Em linha com sua jurisprudência, ressaltou a CEDH que tais procedimentos são "um aspecto importante da execução de suas sentenças e sua existência [no direito interno] revela o compromisso dos Estados Partes para com a Convenção e a jurisprudência do Tribunal".

Autores

  • é doutorando em Direito (UniCeub), mestre em Direito Público (UFPE), especialista MBA em Gestão Pública (FGV), membro do MP desde 1993, atualmente no cargo de procurador regional da República em Brasília (MPF), professor assistente de Processo Penal da UFBA, secretário de Cooperação Internacional da PGR (2013-2017), fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

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