Opinião

Rápidas considerações sobre o processo civil contraepistêmico

Autor

  • Luiz Roberto Hijo Sampietro

    é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) advogado professor de Processo Civil no Núcleo de Direito à saúde da ESA/OAB-SP e em cursos de pós-graduação lato sensu.

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15 de março de 2022, 10h11

A partir da evolução das formas de agrupamento e de organização de pessoas, da paulatina desvinculação entre o Estado e a Igreja e da superação do absolutismo pela emergência da razão iluminista, o direito passou a ser analisado e estudado segundo o prisma racional. O racionalismo, portanto, logo animou a interpretação e a aplicação do processo civil, sobretudo nos quadrantes do direito probatório. Assim, a concepção racionalista de prova, fundada no cognitivismo [1] e na ideia de verdade enquanto correspondência (adaequatio intellectus cum re), atesta que o objetivo da instrução probatória é a investigação da verdade [2].

Realmente, o processo judicial do Estado Democrático de Direito tem o objetivo de produzir decisões justas, o que não acontecerá se o provimento estiver fundado em uma determinação incorreta ou inaceitável dos fatos [3]. Daí se extrai que é teleológico o elo entre a verdade e a prova judicial: as atividades probatórias do processo devem ser concebidas de modo a torná-lo um instrumento epistêmico, capaz de reconstruir fatos históricos viabilizadores da descoberta da verdade.

Importante acentuar, entretanto, que Michele Taruffo, principal arauto da verdade enquanto correspondência no processo, assinala que a limitação cognoscitiva humana dos argumentos racionais e linguísticos impede que se atinja a verdade absoluta e imutável sobre o fato judicializado [4]. Por tal motivo, o jurista de Pavia é favorável à concepção de verdade relativa no processo, intitulada de verdade alética, isto é, a correspondência das proposições fatuais com os fatos descritos. Essa noção de verdade como correspondência se afastaria do realismo ingênuo (naïf), em decorrência da objetividade dela: o mundo fenomênico é o ponto de referência para a determinação da verdade ou falsidade das afirmações sobre os fatos. Segundo essa visão realista-racionalista do fenômeno probatório, portanto, aquilo que é, é, independentemente do acerto ou do erro da percepção humana sobre a verdade.

Assim, como forma de se evitar o subjetivismo judicial e o irracionalismo dele decorrente, a convicção do juízo resultante da valoração da prova (CPC, artigo 371) deve nortear-se pela ideia segundo a qual uma asserção está provada ("está provado que p") somente quando existir elementos de juízo suficientes a favor de p. Por outro lado, o "está provado que p" será tido como falso se não houver elementos de juízo a favor de p ou se tais elementos forem insuficientes [5]. As vantagens dessa concepção de prova e verdade são 1) o uso dos standards de prova como meio de se objetivar a suficiência da corroboração das afirmações de fato; e 2) a possibilidade de se exercer controle sobre a decisão, mediante as vias recursais disponíveis.

Não obstante o até aqui afirmado, a verdade é apenas um dos critérios de legitimação da decisão judicial. Nesse viés, acentua-se o caráter eventual da verdade [6] [7] no palco do processo civil porque o ordenamento está preocupado com valores tão ou mais caros do que ela para a resolução dos conflitos de interesses, tais como a busca do consenso como forma de autocomposição de litígios (exemplo: conciliação/mediação) e a celeridade na entrega do bem da vida (exemplo: estabilização da tutela provisória antecipada de urgência).

Ao dispor que "[a] a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial", o §3 do artigo 3º do CPC adotou o sistema multiportas de resolução de controvérsias, por meio do qual consagra-se o direito de acesso à ordem jurídica justa, com a relativização do binômio processo-direito substancial, já que a solução mais pacífica possível é a desenvolvida pelas próprias partes, com ou sem o auxílio de facilitadores, seja por meio da conciliação, mediação ou negociação.

O encerramento da controvérsia, com o encontro de vontades derivado de concessões de parte a parte, intitula-se de transação (CC, artigos 840 a 850). Quando ocorrida no bojo de processo judicial, a sentença de homologação da transação se dá em cognição restrita ao exame de possível falta dos pressupostos de validade dos negócios jurídicos. A sentença de homologação é simples juízo de delibação ou falsa sentença de mérito, uma vez que o magistrado apenas valida o ajuste das partes. Se assim é, a intensidade contraepistêmica dessa situação é a maior possível, uma vez que não há qualquer investigação probatória sobre a verdade do objeto da transação judicialmente homologada. Há, tão somente, o encerramento do conflito de interesses subjacente à demanda como resultado da liberdade dos litigantes.

Em novidade sem precedentes no ordenamento, o artigo 304, caput, do CPC, estabelece que a tutela antecipada postulada em caráter antecedente se torna estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso. E mais: reza o §1º do mesmo dispositivo que em tal hipótese  deferimento da tutela antecipada antecedente , o processo será extinto. A estabilização se consolida na hipótese de inexistência de ajuizamento da demanda prevista no §5º do mesmo dispositivo após dois anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo.

Lastreada em cognição sumária, referida decisão se estabiliza sem a necessidade de confirmação por sentença. Em contrapartida, apesar da impossibilidade de ajuizamento de "demanda revisional" após os dois anos (imutabilidade), a estabilização não faz coisa julgada porque essa última pressupõe decisão resultante de cognição exauriente em função das garantias constitucionais do devido processo. O que se antecipa, de fato, não é a declaração da existência de um direito, mas somente os efeitos práticos da tutela fundamentada em probabilidade [8]. Esses pormenores realçam a feição contraepistêmica do instituto, na medida em que o objetivo dele é a fruição de resultados práticos, e não a investigação da verdade.

De acordo com as aludidas reflexões, o processo civil brasileiro não é integralmente destinado à busca da verdade dos fatos: no universo das limitações probatórias há inúmeras regras ou procedimentos  como os vistos anteriormente  que impedem o desenvolvimento da cognição judicial em nome de outros valores que são dignos de maior consideração do que o próprio cariz epistêmico do processo. Essa realidade pode conduzir o intérprete a questionar se o processo civil brasileiro realmente detém natureza epistêmica.  

 


[1] GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 1999, p. 51.

[2] ACCATINO, Daniela. Legal evidence theory: are we all 'rationalists' now? Revus, in print  Journal for constitutional theory and philosophy of law, 2020, § 22, p. 8.

[3] TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. 2ª ed. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Trotta, 2005, p. 64.

[4] TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, p. 74.

[5] FERRER BELTRÁN, Jordi. Prova e verdade no direito, p. 38-39. O ser tido como verdadeiro não significa que o eventualmente falso se transformou em verdadeiro.

[6] SILVA, Beclaute Oliveira. Verdade como objeto do negócio jurídico processual. Negócios processuais. Coleção grandes temas do novo CPC, v. 1. 3ª ed., Salvador: Juspodium, 2017, p. 562-563.

[7] Paolo Comoglio assevera que a verdade no processo civil não é um valor absoluto; possível regra que impusesse tal exigência transformaria o processo em instrumento autoritário e quase de polícia. (COMOGLIO, Paolo. Nuove tecnologie e disponibilità della prova: l’accertamento del fatto nella diffusione dele conoscenze. Torino: G. Giappichelli, 2018, p. 122-123)

[8] CARRILHO LOPES, Bruno Vasconcelos. Estabilização da tutela antecipada e coisa julgada. In: Tutela provisória no CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 215.

Autores

  • é advogado, doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) e professor de Processo Civil em cursos de pós-graduação lato sensu.

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