Opinião

A recepção de ucranianos no Brasil: o refúgio é a melhor opção

Autor

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

14 de março de 2022, 6h33

Em 3 de março de 2022, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) editaram a Portaria Interministerial nº 28 [1], concedendo visto temporário e da autorização de residência para fins de acolhida humanitária aos migrantes ucranianos ou apátridas provenientes do conflito armado iniciado no último dia 24 entre Rússia e Ucrânia.

Essa medida, muito festejada à luz do princípio da humanidade [2], o qual tem como escopo a proteção de civis e hors de combat em meio a hostilidades, garantindo-lhes os seus direitos sob a tríade dos direitos humanos, direito humanitário e direito dos refugiados [3]. Afinal, não se pode considerar a possibilidade de estender às pessoas apenas a tutela aos seus direitos mais básicos apenas em tempos de normalidade, senão também durante o conflito, garantindo-lhes a possibilidade de locomoção e acolhida em local seguro. E, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados — Acnur, em uma semana, já se somam mais de um milhão de deslocados [4].

A Portaria Interministerial nº 28/2022, portanto, vem em boa hora, garantindo àquele que queira abrigar-se no Brasil a possibilidade de pleitear o visto humanitário, o qual terá validade por 180 dias (artigo 2 §1º). Ainda, aquele que ingresse no país em virtude dos acontecimentos na Ucrânia, independentemente da forma, pode igualmente pleitear residência para fins humanitários por dois anos (artigo 5 §1º), passível de conversão para residência por prazo indeterminado após findo tal período, mediante requerimento do interessado perante a Polícia Federal (artigo 8).

A portaria vigorará até 31 de agosto de 2022, podendo ser renovada (artigo 1 §2º). Entretanto, algumas considerações devem ser feitas acerca desse documento, as quais culminam no entendimento de que, mesmo com ela, a consideração do refúgio ainda seja a melhor opção.

Primeiramente, pondera-se sobre a necessidade de edição de portarias para abrigar pessoas provenientes de locais que se encontrem em situação de calamidade e/ou emergência por meio da acolhida humanitária, haja vista a previsão de tal medida na própria Lei de Migrações (Lei Federal nº 13.445 de 2017), seja em sede de concessão de visto (artigo 14, I, 'c'), seja em sede de autorização de residência (artigo 30, I, 'c').

Antes do advento da citada legislação, compreendia-se a necessidade de editar-se atos normativos que antevissem a possibilidade de acolher pessoas que estivessem perpassando em seus países de origem por "situações graves ou de iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário" [5], afinal, não havia no Estatuto do Estrangeiro (Lei Federal nº 6.815 de 1980) regra similar. Até mesmo porque, essa legislação não era dirigida à preservação dos direitos humanos dos migrantes, vendo os mesmos como verdadeiros "inimigos do Estado", na medida em que potencialmente poderiam atentar contra a soberania nacional.

Assim, percebe-se, por exemplo, a edição da Resolução Normativa CNIg nº 97/2012 [6] a qual tinha como objetivo acolher pessoas nacionais do Haiti que quisessem vir ao Brasil em virtude, à época, devido à grave instabilidade social, política e econômica do Haiti, acentuada após o terremoto que assolou, em especial, Porto Príncipe, em janeiro de 2010. Ou, no mesmo sentido, a Resolução Normativa Conare nº 17/2013 [7] que garantia a mesma acolhida aos indivíduos provenientes da Síria, haja vista os desdobramentos do conflito na região, que se iniciaram ainda em 2011.

Apesar disso, ressalta-se que, já havendo previsão legal, a edição de portarias como a de nº 28 aqui em comento ou mesmo a Portaria Interministerial nº 24 de 2021 [8] destinada aos migrantes afegãos ou outros nacionais que estivessem em tal país, fruto da retomada do Poder do país pelo Talibã, sirvam mais para apontar o posicionamento do Estado diante de tal situação, reconhecendo, de plano, o momento de grave instabilidade institucional e/ou de violação de direitos humanos do que para efetivamente garantir o abrigo dos migrantes que eventualmente se desloquem ao Brasil.

Acredita-se que as portarias como ade nº 28 facilitem, assim, a análise dos pedidos, uma vez vislumbradas as datas de ingresso no país e a nacionalidade da pessoa ou o seu país de origem, mas não sejam determinantes na sua acolhida.

Contudo, note-se que, caso optem por utilizar deste documento legal, os migrantes deverão preencher uma série de requisitos previstos no artigo 3, tais como, no caso do visto humanitário para os ucranianos, comprovante de antecedentes criminais expedido pela Ucrânia (que pode, sim, ser substituído por declaração do requerente atestando a sua inexistência), entrevista pessoal e documento de viagem, o qual, para o Brasil, seria passaporte válido. Chama-se atenção para o fato desses dois últimos requisitos poderem ser dispensados a critério da autoridade consular, sendo essa uma exceção, logo, passível de criar empecilhos para a concessão do visto.

Ainda, consoante nota assinada pelo MJSP e MRE, Embaixadas do Brasil situadas em Varsóvia, na Polônia, Budapeste, na Hungria, Bucareste, na Romênia, Praga, na República Tcheca, e Bratislava, na Eslováquia, é que emitirão tais vistos, de maneira que se os migrantes provenientes do citado conflito já tenham se deslocado para outras cidades na Europa, aparentemente, não poderão pleiteá-lo, a não ser, evidentemente, que já se encontrem em solo brasileiro  caso em que basta solicitar a autorização de residência com base na acolhida humanitária [9].

De toda sorte, a segunda ponderação que deve ser feita refere-se ao efeito da edição da citada portaria frente ao instituto do refúgio. Isso porque, muito embora ela prescreva que a concessão do visto humanitário "ocorrerá sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas na Lei nº 13.445 de 2017" (artigo 2 §2º), ela traz explicitamente que "a obtenção da autorização de residência prevista nesta portaria implica a desistência de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado" (artigo 9).

Refúgio não é uma modalidade de visto, claro, mas é uma forma de um Estado conferir proteção àquele que se encontra em uma situação de perseguição real ou ficta, por um motivo de raça, religião, pertencimento a grupo social específico, nacionalidade ou opinião política de grupo, e que, por isso, é obrigado a deixar o seu país de origem, já que não mais pode se valer da proteção do mesmo. Ademais, no continente americano, as situações geradoras de refúgio ainda contemplam a massiva e sistemática violação de direitos humanos.

Essas previsões estão contidas na Lei Federal 9.474 de 1997, a qual, além de prever os procedimentos para a obtenção do status de refugiado no Brasil, lista os direitos que os refugiados, reconhecidos ou solicitantes, detêm no país, somando-se àqueles previstos na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951. Aliás, este tratado, ao qual o Brasil ratificou em 1961, gera obrigações expressas para o Estado, inclusive, contendo previsões que, por vezes, são mais benéficas do que as concedidas a migrantes comuns, tais como aquelas relativas a sua contratação por empresas, não incidindo as limitações previstas na Consolidação das Leis do Trabalhos  CLT, pontualmente, nos artigos 355 ou 358 (muito embora a vigência desta seja questionável à luz da própria Constituição Federal de 1988).

Ainda, a sua permanência no Estado enquanto refugiado perdura pelo período que for necessário para a sua plena proteção, nos termos do princípio do non-refoulement. Muito embora seja necessário requerer autorização de residência no Brasil (artigo 30, II, 'e', da Lei 13.445 de 2017), o refugiado ainda tem ao seu favor a possibilidade de dispensa de documentos em virtude da sua condição excepcional e o dever que o Estado tem de integrá-lo na sociedade (artigos 43 e 44 da Lei 9.474 de 1997).

Assim sendo, mesmo que a edição da Lei de Migrações tenha trazido um acréscimo no que diz respeito aos direitos concedidos aos migrantes no Brasil (artigo 4), por certo que a condição de refugiado lhes garante um plus, o qual não pode ser ignorado pelo Estado sob pena de sua potencial responsabilização internacional.  Cabe lembrar que no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos já existe uma jurisprudência consolidada neste sentido [10], derivada da Convenção Americana de Direitos Humanos, igualmente internalizada pelo Brasil em 1992.

A terceira questão a ser comentada é aquela feita por Paula Zambelli Salgado Brasil [11], para quem a Portaria Interministerial nº 28 é limitada por estar voltada aos nacionais da Ucrânia ou a apátridas, não permitindo que outras pessoas deslocadas pelo conflito possam ser recepcionadas pelo Brasil. Para a professora, essa medida destoa, por exemplo, da Portaria editada para recepcionar pessoas provenientes do Afeganistão, citada anteriormente. Além disso, esse fato desconsidera que a "Ucrânia é um país formado por diversas nacionalidades".

Não apenas isso, essa situação pode ser considerada discriminatória. Tal como se tem observado a partir de diversos relatos que estão ecoando na Europa em meio ao influxo de migrantes provenientes da Ucrânia de situações de discriminação para com deslocados de origem nigeriana ou de outros países africanos [12], a Portaria Interministerial nº 28 não parece contemplar esses grupos específicos.

Nesse passo, entende-se que o Brasil, país multicultural que promove o "repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação" a migrantes (artigo 3, II, da Lei 13.445 de 2017), e que se pauta pela prevalência dos direitos humanos (artigo 4, II, da Constituição Federal) não poderia aceitar uma limitação neste sentido. Fazê-lo significaria dar espaço para visões que parecem defender que o migrante teria características específicas relativas ao gênero, a raça, a origem nacional, a religião, a opção sexual, etc., as quais, se não forem preenchidas, culminariam no seu rechaço e, assim, em outras violações de direito internacional dos refugiados, a começar pelo próprio princípio da não-devolução.

Por isso, entende-se que, caso decidam vir ao Brasil, o melhor caminho para esses migrantes provenientes do conflito entre Rússia e Ucrânia seja o da solicitação de refúgio  e não da acolhida humanitária  para uma rela e plena proteção de seus direitos.

[2] CIJ. Ahmadou Sadio Diallo (Republic of Guinea v. Democratic Republic of the Congo). Judgment of 30/11/2010. Spearate Opinion  Cançado Trindade. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/103/103-20101130-JUD-01-05-EN.pdf

[5] Estes são os termos do artigo 36 do Decreto 9.199 de 2017, que regulamenta a Lei de Migrações, trazendo o escopo da acolhida humanitária.

[10] Cf. ESIS; PALUMA; SILVA. Os parâmetros de proteção das migrações no sistema interamericano de direitos humanos. Revista Jurídica Unicuritiva, v. 2, nº 59, 2020. Disponível em: revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/4099

Autores

  • é professora de Direito Internacional e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, mestre em Direito Público pela Unisinos, com período de estudos junto à University of Toronto, e membro da ILA-Brasil e da Abri.

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