Opinião

A Lei nº 14.230 e a definição do valor do dano ao erário nos inquéritos civis

Autores

  • Murilo Alan Volpi

    é promotor substituto no estado do Paraná (MP-PR) doutorando e mestre em Direito Político Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) especialista em Direito Tributário pela FDRP-USP ex-advogado e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e ex-delegado de polícia no estado de Minas Gerais (PC-MG).

  • Matheus Tauan Volpi

    é delegado de polícia no estado de Minas Gerais (PC-MG) doutorando em Direito Tributário pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) mestre e especialista em Direito Tributário pela USP professor de Direito Penal e Processo Penal na Unip-São José do Rio Preto (SP) e ex-advogado e analista jurídico do Ministério Público (MP-SP).

10 de março de 2022, 11h11

A Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, promoveu modificações substanciais na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92). Para parte da doutrina, a partir deste momento tem-se na verdade uma nova Lei de Improbidade Administrativa, uma vez que houve modificação das bases fundantes da Lei 8.429/1992, dando origem a um novo sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa [1].

Dentre as inúmeras modificações introduzidas pela Lei nº 14.230/21, está o novo artigo 17-B, que disciplina o Acordo de Não Persecução Cível (ANPC) e estabelece, em seu §3º, que, "para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 dias".

Em análise à redação do §3º do referido dispositivo legal, verifica-se que o legislador buscou, no que diz respeito à apuração do dano em Inquéritos Civis, condicionar a atuação do Ministério Público à atuação do Tribunal de Contas, tornando a análise de ocorrência de dano ao erário uma espécie de ato complexo [2].

Maria Sylvia Zanella Di Pietro [3], ao discorrer sobre a classificação dos atos administrativos, pontua que "atos complexos são os que resultam da manifestação de dois ou mais órgãos, sejam eles singulares ou colegiados, cuja vontade se funde para formar um ato único".

Ao tornar a verificação da ocorrência do dano ao erário uma espécie de ato complexo, o artigo 17-B, §3º, da Lei de Improbidade Administrativa conflitou com a base constitucional do sistema de responsabilização por improbidade administrativa, uma vez que: a) inovou em relação a atribuições dos Tribunais de Contas, criando competências não previstas no texto constitucional; b) solapou a autonomia e a independência funcional do Ministério Público.

O Tribunal de Contas, por definição, "é órgão auxiliar e essencial de orientação do Poder Legislativo, embora a ele não subordinado, praticando atos de natureza administrativa, concernentes, basicamente, à fiscalização, com garantias de autonomia e autogoverno" [4].

As atribuições dos Tribunais de Contas estão previstas taxativamente na Constituição Federal, conforme se infere, dentre outros dispositivos, do artigo 71, que estabelece as atribuições do Tribunal de Contas da União. Dentre as referidas atribuições, não se identifica a de atuar como órgão auxiliar do Ministério Público na tutela do Patrimônio Público, tampouco a atribuição de apurar a ocorrência de dano ao erário no bojo de Inquéritos Civis. Nesse ponto, portanto, o artigo 17-B, §3º, da Lei de Improbidade Administrativa inovou em relação às atribuições dos Tribunais de Contas, criando competências sem paralelo no texto constitucional, desconfigurando o perfil e a atuação da referida instituição, em nítida violação à Constituição Federal.

Ao mesmo tempo, a referida modificação legislativa violou a autonomia e a independência funcional do Ministério Público, sobretudo na medida em que condicionou o exercício de atividade-fim do Ministério Público à atuação de outros órgãos ou instituições, violando o disposto no artigo 127 da Constituição Federal.

Como ensina Emerson Garcia, "o princípio da independência funcional está diretamente relacionado ao exercício da atividade finalística dos agentes ministeriais, evitando que fatores exógenos, estranhos ou não à Instituição, influam no desempenho de seu munus. Evita-se, assim, que autoridades integrantes de qualquer dos denominados ‘Poderes do Estado’, ou mesmo os órgãos da Administração Superior do próprio Ministério Público, realizem qualquer tipo de censura ideológica em relação aos atos praticados" [5].

Permitir tal ingerência de outras instituições na atividade-fim do Ministério Público implica, portanto, em notória violação ao princípio da independência funcional, que possui status constitucional.

Dessa forma, verifica-se que artigo17-B, §3º, da Lei de Improbidade Administrativa, para além de enfraquecer sistema de tutela cível do interesse público anticorrupção, é incompatível materialmente com a Constituição Federal, uma vez que, a um só tempo, inova em relação às atribuições do Tribunal de Constas, em franca violação à Constituição, e solapa a autonomia e independência funcional do Ministério Público.

 


[1] MEDINA, José Miguel Garcia. A nova Lei de Improbidade Administrativa e os processos em curso. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-nov-24/processo-lei-improbidade-administrativa-processos-curso> Acesso em: 17/02/2022.

[2] "[…] atos simples correspondem a decisões de apenas um órgão administrativo: se a decisão dá-se pela manifestação de apenas um agente, são atos singulares (ainda que essa manifestação tenha sido precedida de outra); se a decisão dá-se pela manifestação de vários agentes, são atos colegiais. Quando a decisão decorre da manifestação de dois ou mais órgãos, configura-se o ato complexo. […] Não se deve confundir o ato complexo e o ato composto com o procedimento administrativo. Este compreende uma série de atos, vinculados um ao outro por um vínculo causal e teleológico. No procedimento administrativo: a) cada um dos atos conserva a sua autonomia, de modo que há uma série ordenada de atos administrativos autônomos; b) todos os atos se conectam numa unidade de efeito jurídico, todos estão vinculados para a produção do ato final e conclusivo; c) os atos estão vinculados causalmente, de modo que cada um supõe o anterior e o último supõe o grupo inteiro. Em síntese: ato complexo é um ato administrativo único e não uma série de atos; o ato composto são dois atos administrativos, em que um é condição de eficácia do outro e não uma série de atos; o procedimento é uma série de atos causal e teleologicamente vinculados" (Tratado de Direito Administrativo: ato administratio e procedimento administrativo. FILHO, Romeu Felipe Bacellar. MARCONDES, Ricardo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Tratado de direito administrativo v.5 / Coordenação Maria Sylvia Zanella Di Pietro, p. 112-113.)

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo.  34. ed.  Rio de Janeiro: Forense, 2021.pag. 256.

[4] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional  37. ed.  São Paulo : Atlas, 2021.

[5] Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. 4 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014, p. 141.

Autores

  • é promotor substituto no Estado do Paraná (MP/PR), doutorando e mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie, especialista em Direito Tributário pela USP, já foi advogado, analista Jurídico do MPSP e delegado de polícia no Estado de Minas Gerais.

  • é delegado de polícia no Estado de Minas Gerais (PC/MG), doutorando em Direito Tributário pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e especialista em Direito Tributário pela USP, professor de Direito Penal e Processo Penal na Unip-São José do Rio Preto/SP e já foi advogado e analista jurídico do Ministério Público (MP/SP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!