Opinião

Entre a rede e o anzol: teorizando sobre o assédio moral e a impessoalidade

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

9 de março de 2022, 9h13

A Administração Pública não é uma força sem controle e ao gestor não se dá cheque em branco, fixando a Carta Política de 1988 os princípios que se aplicam ao exercício das três potestades, vista como Três Poderes, segundo a difundida teoria atribuída à Montesquieu, Locke e Rosseau.

O Estado Soberano é um só e atua por potestades, menos discricionárias e cada vez mais regradas, em atuar típico ou atípico, categorizáveis em Estado-Administração, Estado-Legislador e Estado-Juiz. De fato, todos têm uma clara predominância de uma ou outra categoria de atuação. mas neles se vê o exercício de atividades atípicas ou, noutras considerações, típicas dos outros.

Ademais, é crível que a Constituição Cidadã de 1988, em seu artigo 37, Parágrafo 4º, destaca cinco princípio básicos e cometidos ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário: a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.

Aqui, pelo tema proposto, nos prenderemos ao princípio da impessoalidade, pois é a partir dele que consideraremos aspectos ligados à figura do Assédio Moral, na ambiência da Administração Pública.

Para isso, valemo-nos da imagem do pescador que joga a rede e colhe muitos peixes, indistintamente. Pescará todos os que estejam naquela situação e, portanto, vulneráveis àquela única ação administrativa, capaz de enquadrar aquele coletivo numa mesma situação.

Fácil é perceber que tal conduta se distancia daquela em que um anzol é dirigido a um determinado servidor que, uma vez fisgado, ficará ao alvitre da discricionária vontade do pescador. Será o único alvo do gestor.

Poderíamos, assim, considerar aspectos do que chamaríamos de Teoria da Rede e do Anzol, para identificação de uma modal categoria de assédio moral.

Normalmente o cardume não se interessará em agir para apoiar o fisgado e este, vulnerável e solitário ante o gigantismo do Estado e da ação do gestor, não raro se virá na posição de vítima de assédio moral.

Se por um lado não ajuda ao motorista multado pela polícia a desculpa de que outros passaram e não foram abordados, por outro, o destaque e individualização que a Administração Pública possa atribuir à situação de apenas um servidor, poupando os demais, também identificáveis como estando na mesma situação daquele distinguido.

Esse assédio moral, antijurídico e ofensivo ao princípio da impessoalidade, enseja toda sorte de perseguição.

Por exemplo, se cinquenta servidores não realizam certa atividade que deveriam fazer, não pode apenas um deles ser escolhido para servir de exemplo ou sozinho responder pela sua conduta individual, poupando-se os demais de também ser enquadráveis como tal. A lógica e o bom senso não abolirão a Administração Pública de voltar a sua ação de controle e gestão sobre todos os que estejam na mesma situação. Assim, distinguir de certo coletivo apenas um significará a sua lesão à constitucional vontade de ação por impessoalidade administrativa.

Por isso a ideia cristalina expressada pela Teoria da Rede e do Anzol. Em resumo: em vez de jogar a rede e enquadrar a todos os que estejam na mesma situação, o que seria isonômico e, por que não, justo, a Administração Pública age apenas distinguindo um ou outro, dentre todos.

A lógica aristotélica, de buscar metodologia que busque igualdade, não suporta tal ação que veja uns mais ou menos capazes de escapar à rede onde se enquadrem todos os iguais e, portanto, de se tratar alguém como o ungido, escolhido ou, pelo anzol, pescado, para ser beneficiado ou perseguido.

Como se sente o único peixe pescado
Nos sentimos escolhidos, quando somos tratados de modo diferente dos demais. Apenas como exemplo, nem todos entrarão no Reino dos Céus, como registra a Bíblia, em Mateus, 7:21. A mais singela interpretação a respeito indicará que será uma honra e mérito alguém ser distinguido para lá entrar.

Contudo, há situações na vida em que ser escolhido não significará outra coisa, senão perseguição, injustiça, assédio moral, desgaste emocional e discriminação.

Por isso a Administração Pública deve motivar todas as suas ações. A motivação é o remédio salutar a impedir que haja a infundada e puramente potestativa vontade de agir, como fazia o Rei Sol, na França. A submissão às regras e leis é que torna os atos administrativos juridicamente aceitáveis e corretos e, com a sua justa motivação, passíveis de adequado controle, seja interno ou externo.

A motivação dos atos administrativos é tão importante que integra o próprio ato praticado, segundo a Teoria dos Motivos Determinantes.

Nos prendendo aos atos de natureza administrativa, praticados na ambiência de qualquer dos chamados três Poderes, qualquer dissonância entre a prática e os motivos resultará em possibilidade de revisão e controle do ato, por ação interna (autocontrole, por autotutela e tutela dos atos administrativos e ações dos setores jurídicos dos órgãos, por exemplo) ou por ação externa (controle pelo Poder Judiciário, como guardião da aplicação das leis e da Constituição).

Para reflexões mais amplas, invocaremos o pensador Michael J. Sandel [1] que, ao citar conto de Ursula K. Le Guin, a respeito de criança malnutrida e abandonada, ocultada de todos num porão da cidade da felicidade, em seu conto intitulado "The Ones who walked away from Ornelas", nos diz:

"Em um porão sob um dos belos prédios públicos de Ornelas, ou talvez na adega de uma das espaçosas residências particulares, existe um quarto com uma porta trancada e sem janelas. E nesse quarto há uma criança. A criança é oligofrênica, está malnutrida e abandonada. Ela passa os dias em extremo sofrimento. […] Todos sabem que ela está lá, todas as pessoas […] Todos acreditam que a própria felicidade, a beleza da cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos […] até mesmo a abundância de suas colheitas e o clima agradável de seus céus dependem inteiramente do sofrimento abominável da criança […] se ela for retirada daquele local horrível e levada para a luz do dia, se for limpa, alimentada e confortada, toda a prosperidade, a beleza e o encanto de Omelas definharão e serão destruídos".

Não é comum que se atribua a alguém o papel de "bode expiatório" e isto faz parte da História da humanidade e das narrativas de Franz Kafka e Victor Hugo (este, na bela obra, intitulada O último dia de um condenado).

Nos "porões" do cotidiano, não é incomum que um servidor perseguido precise de proteção ante a força da Administração, para que não sofra assédio moral e não se sinta perseguido, enquanto outros que, estando na posição jurídica, são poupados e lhe apontem os dedos, torcendo para que apenas o "fisgado" seja regulado e. tratado como "bode expiatório". pague por todos  para que estes sigam como na metafórica cidade da felicidade, suso referida.

Vimos isso em tempos outros, onde imperaram o arbítrio e amplas discricionariedades, seja nos cinzentos anos das ditaduras, seja com Torquemada, o Grande Inquisidor.

Administrar, gerir e executar são comandos verbais que exigem um atuar, para a Administração Pública obrigatoriamente precedido de expressa autorização para agir  é a tal regra de compatibilidade, sobre a qual nos ensina Celso Antonio Bandeira de Mello.

Em singelas linhas, o grande publicista nos ensinava que, para todos, bastava a regra de conformidade, onde tudo se poderia fazer, desde que não proibido por lei. Em sentido oposto, a Administração Pública está sujeita à regra de "compatibilidade", só podendo agir quando e como expressamente autorizada por lei.

Nesta senda, qualquer conduta fora dos trilhos traçados pela Carta Política de 1988 e pela legislação deve ser tida como "antijurídica" e "fora" dos balizamentos legais e, portanto, passível de correção e controle judicial. A propósito, ainda bem que já se foi o tempo em que o Judiciário era dependente das graças do Executivo e do Poder Moderador.

Assusta que a sociedade queira ter a previsão legal de progressistas propostas e que seja reticente na sua aplicação. É como se a massa sobrevivesse melhor se não se tivesse de se "mexer" com certas situações que, no estilo da mencionada narrativa de Sandel, poderiam "incomodar" um certo sentido de "felicidade geral"!

Alguns ainda há que acabam agindo com tendenciosa radical aplicação de traços da doutrina utilitarista do inglês Jeremy Bentham…

Por sorte, apesar das enormes dimensões territoriais do País, o sistema pátrio não tem vários Estados com Supremas Cortes, como ocorre nos Estados Unidos da América, o que faz com que tenhamos um sólido e vigoroso único Sistema Judiciário.

Para colorir os pensamentos e nos levar a reflexões ainda mais amplas e profundas, ousamos ainda citar aqui breve reflexão do rabino Nilton Bonder, no livro intitulado A Alma Imoral: "a opinião pública, os dogmas, as convenções, a moralidade e as tradições podem muitas vezes querer representar uma unanimidade que os desqualifica como determinadores do que é justo, saudável e construtivo".

O Conselho Nacional do Ministério Público, na cartilha intitulada "Assédio moral e sexual — Previna-se" [2] dispõe sobre a figura jurídica sob exame e nos auxilia a entender as suas motivações antijurídicas:

"O assédio moral pode ser conceituado como 'toda e qualquer conduta abusiva, manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho'. (HIRIGOYEN, 2001, p. 65). Tais atitudes são normalmente expressas por condutas, sem conotação sexual, ligadas ao abuso de poder e caracterizadas por práticas de humilhação e intimidação ao assediado.

O objetivo do assediador, em regra, é motivar o trabalhador a pedir desligamento, exoneração ou remoção, mas o assédio pode configurar-se também com o objetivo de mudar a forma de proceder do trabalhador simplesmente visando, por exemplo, à humilhação perante a chefia e demais colegas, como uma espécie de punição pelas opiniões, atitudes manifestadas ou por discriminação. O importante, para a configuração do assédio moral, é a presença de conduta reiterada que humilhe, ridicularize, menospreze, inferiorize, rebaixe, ofenda o trabalhador, causando-lhe sofrimento psíquico e físico".

Ora, é inegável que há uma rede de proteção ao trabalhador na sistemática da atuação da Justiça do Trabalho. Todavia, não se vê o equivalente em prol da saúde e proteção do trabalhador qualificado como servidor público.

Daí, vem a pergunta: quem deve zelar pela saúde do trabalhador e do servidor? A resposta indicará que serão os gestores da Instituição à qual está vinculado, naturalmente. A respeito:

"É dever do Estado, fornecer recursos adequados e promover  política pública de atendimento à saúde dos dignos trabalhadores que chegam à Administração Pública em condições saudáveis, respondendo de forma objetiva pela omissão ou dolo que venha a causar danos aos seus Servidores" (fonte: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, artigo Responsabilidade Civil do Estado por Doenças Profissionais causadas aos servidores em atividades penosas, de autoria de Carlos da Silva Magalhães. Leia aqui.

No mesmo sentido:

"É verdade que o Poder Estatal através, principalmente, do Poder Judiciário tem lutado incansavelmente pela saúde do trabalhador nas empresas privadas. E tal luta já teve como consequências, inúmeras conquistas e saldos positivos. Todavia, por outro lado, os servidores estatuários vêem frequentemente um descaso com esse direito constituído. Portanto, é público e notório que o Poder Público mesmo com a promulgação da Constituição Federal 1988 ainda tem se mantido inerte ao seu ônus para com a promoção da saúde e segurança dos trabalhadores dentro da atividade administrativa do próprio Estado" (Saúde e segurança do trabalho no Serviço Público – Uma reflexão à luz da Constituição Federal, por José Wilson. Leia aqui.

"Justiça do Trabalho reconhece morte por Covid-19 como acidente de trabalho – indenização será de R$ 200 mil  publicado 19/04/2021 00:02, modificado 19/04/2021 06:16

Para o juiz, houve responsabilidade objetiva do empregador, que assumiu o risco de o motorista trabalhar durante a pandemia do coronavírus e não comprovou a adoção de medidas de segurança" (leia aqui).

Interessante caso  e, decerto, em relação jurídico-material não incomum, neste país de continentais dimensões – foi julgado em 29.6.2020, pelo Superior Tribunal de Justiça. O caso concreto envolveu Assédio Moral contra servidor que apoiara candidato de oposição ao Prefeito eleito. Da Ementa, ora destacamos o seguinte trecho:

"3. O Tribunal de origem lançou os seguintes fundamentos ao apreciar a vexata quaestio: ficou incontroverso nos autos que o autor, nas eleições municipais de 2012, apoiou o partido de adversária política do requerido Pedro, sendo contrário à candidatura do atual prefeito. Assim, segundo o autor, a partir do ano de 2013, quando se iniciou o mandato do prefeito, ele passou a sofrer assédio moral, com o esvaziamento das suas funções, obrigado a cumprir sua jornada em um banco pátio do almoxarife e passou a ser alvo de chacota (…). E tais fatos foram suficientemente comprovados, pelas diversas testemunhas ouvidas em juízo, que confirmaram o esvaziamento das funções do autor após 2013, quando iniciou-se o mandato do requerido. (…) Sendo assim, presentes a conduta lesiva, o dano e o nexo de causalidade, foi correta a responsabilização dos requeridos, com a condenação ao pagamento de indenização por danos morais". (STJ, 2ª Turma, AgInt no ARESP 1621580 – SP (2019/0343135-1) RELATOR : MINISTRO HERMAN BENJAMIN. J. 29.6.2020, p. 03.11.2021. Leia aqui.

Conclusão
O tema não se esgota num artigo. Sua complexidade e extensão já foi bastante e bem estudada e, decerto, será ainda objeto de outras interessantes abordagens.

Nossa análise alvitra contribuir para a compreensão de fenômeno, com o que consideramos como Teoria da Rede e do Anzol, hábil a satisfatoriamente expressar axioma que reflita a questão em análise e na medida em que algumas situações parecem ser passíveis de acomodação ou de um "deixa pra lá", típicos do temor reverencial que o exercício do Poder causa em alguns, que preferem aguardar a mudança de gestores para agir, o que é um fator curioso e que calha à fiveleta, na medida em que os prazos prescricionais são de cinco anos e, portanto, superiores aos quatro anos dos mandatos do Executivo  ressalvado, claro, a possibilidade de reeleição, figura surgida em anos mais recentes.

O sistema de freios e contrapesos é a solução e se deve render graças ao já mencionado fato de que o Poder Judiciário não seja dependente das graças do Executivo e, como no passado, do Poder Moderador.

Além do mais, é crível que, em sede de Autotutela dos Atos Administrativos, os gestores públicos estarão hábeis a, de ofício e administrativamente, aplicar os precedentes, zelando pelo cumprimento do constitucional princípio da eficiência e ampla obediência aos dogmáticos demais princípios constitucionais incidentes, de sorte a se evitar desnecessários gastos de recursos e tempo, nos tradicionais longos e arrastados debates judiciais, até por ser crível que a sua responsabilidade também pode ser aferida por hipotética omissão em agir.


[1] SANDEL, Michael. JUSTIÇA  O que é fazer a coisa certa. Ed. Civilização Brasileira, 8ª. ed., 2012, p. 54-55.

[2] Conselho Nacional do Ministério Público Assédio moral e sexual : previna-se / Conselho Nacional do Ministério Público. — Brasília : CNMP, 2016. 28 p. il., trecho destacado: página 6. Fonte, Internet – http://www.mpf.mp.br/sc/arquivos/cartilha-assedio – consulta em 03.03.2022, às 14:28h – nossos os trechos e destaques)

Autores

  • é advogado, membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ, associado ao Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP) e defensor público junto ao STF, STJ e TJ-RJ.

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