Opinião

A online dispute resolution e o acesso à Justiça: uma reflexão necessária

Autores

  • Guilherme Vinicius Justino Rodrigues

    é advogada mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDSP-USP) e especialista em Direito Processual Civil pela Ponticífia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

  • Igor Moraes Rocha

    é mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDSP-USP) graduado em Direito pela UFMG e advogado.

  • Luma Zaffarani

    é advogada e especialista em Direito Processual Civil pela Ponticífia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

9 de março de 2022, 11h04

Os dados mais atuais do Poder Judiciário brasileiro dão conta do que já é amplamente divulgado e conhecido por toda a sociedade brasileira: temos, atualmente, uma quantidade abissal de processos em tramitação, mais de 75,4 milhões [1]!

Diante desse quadro, diversas soluções "mágicas" já foram propostas e testadas ao longo dos anos sem, contudo, apresentarem resultados significativos para a redução do acervo. Já passamos por propostas de alterações do Código de Processo Civil, de criação de filtros a serem ultrapassados para o acesso ao Poder Judiciário e, também, em um passado não tão longínquo, de colocar o acesso à justiça como questão subsidiária. Fato é que, com alguma constância, essas propostas ainda parecem com discussões atuais.

É nessa toada que, atualmente, muito se discute acerca da necessidade de implementação e desenvolvimento no Brasil das ODRs (Online Dispute Resolution), plataformas digitais por meio das quais as partes possam resolver seu litígio de forma afastada do Poder Judiciário [2].

A ideia é simples: ao afastar a resolução dos litígios do ambiente tradicional do Judiciário para aproximá-la das plataformas com ambientes digitais otimizados facilitar-se-ia a resolução dos conflitos e a diminuição do número de processos. Por exemplo: imagine que você fez uma corrida de "Uber" e, após a viagem notou que o valor cobrado foi maior que o devido. Diante desta situação você se vê obrigado a litigar com a empresa para se ver ressarcido.

É aí que entram as ODRs. O sistema lhe oferece a opção de, ao invés de levar seu conflito para o Poder Judiciário, permitir resolvê-lo por meio de uma plataforma online que, de forma rápida, lhe ponha em contato direto com a empresa para juntos, buscarem uma solução do conflito.

De forma alguma se nega o incrível potencial que as ODRs, bem como todos os meios de resolução de conflitos alternativos (ou adequados), possuem para auxiliar na criação de uma sociedade capaz de resolver seus conflitos de forma mais célere.

O que se busca, no entanto, é apresentar ao leitor uma faceta da ODR distante daquela dinâmica que busca encontrar uma "solução mágica", segundo a qual poderá ser o método entendido como uma opção para auxiliar na solução de conflito, quando o seu uso for possível, e não como um instrumento para resolver o problema de acervo do nosso sistema de justiça.

Vale destacar que muito embora a resolução on-line de disputa e a "cultura do consenso", conforme ensina o professor Kazuo Watanabe, possam desaguar na redução de acervo do Judiciário, esse não deve ser o objetivo precípuo de qualquer plataforma [3] de ODR. Muito pelo contrário: a adequação da forma como se resolve o conflito e a otimização do acesso à justiça é quem devem servir de norte.

Utilizemo-nos da plataforma "consumidor.gov" como exemplo. Ao longo dos anos a plataforma tem divulgado excelentes resultados sob uma análise quantitativa, com índice de resolução de conflitos superior a 70%. Só em 2020, a plataforma registrou um milhão e 100 mil reclamações, das quais, mais de 78% foram consideradas resolvidas pelos seus usuários.

Os números realmente impressionam, porém, é perfeitamente possível realizar algumas reflexões: Como fica a situação das pessoas que não possuem acesso à internet? Será que todos possuem habilidade técnica para manusear a plataforma? Como ficariam os casos de urgência ou onde claramente inexiste interesse em conciliação?

O maior ponto de inflexão acerca do método, todavia, ainda é a ideia de condicionar a caracterização do interesse de agir em futuras ações a seu uso prévio, como já defendeu o professor Fernando Gajardone e o professor Kazuo Watanabe, em parecer específico para o Mercado Livre, tendência também existente em outros métodos adequados, que por meios diretos ou indiretos buscam "excluir" a possibilidade de recorrer ao judiciário.

Embora ainda sem resposta, outras questões surgem: Como são desenhadas as plataformas? Elas realmente são mais acessíveis e protetivas às partes hipossuficientes do que o Poder Judiciário? Direitos básicos como o contraditório são garantidos nelas? As partes em negociação realmente estão em simetria técnica e informacional ou existem vantagens sistêmicas em prol de grandes litigantes [4]? Este tipo de preocupação existe em todos os ambientes?

Muito embora seja frequente falar em modelos alternativos ou adequados de solução de controvérsia, pouco se comenta a respeito da regulação desses canais, quando desenhados para o ambiente on-line. O controle público basicamente é inexistente. E apesar das tentativas de aplicar a legislação atual para resolver a questão, vê-se que essa está formatada para o ambiente analógico, e não para o digital, assim, a sua aplicabilidade encontra óbices de ordem prática. É isto que se verifica ao analisar a regulamentação do SAC, contida no Decreto nº 6.523/2006, concebido para regulamentar o atendimento telefônico.

Embora não se proponha a vilania da ODR, aponta-se por outro lado, apenas, que este método, como qualquer outra iniciativa humana, é sujeito a erro e falha e tem de ser interpretada levando em consideração a existência desses dilemas.

Mais do que buscar por soluções milagrosas ou definitivas, temos de considerar, de forma honesta, as vantagens e desvantagens das ferramentas on-line para, enfim, poder traçar abordagens realistas e capazes de resolver os problemas concretos com a melhor qualidade possível.

 

Referências bibliográficas

ARBIX, Daniel do Amaral. Resolução on line de controvérsias  tecnologia e jurisdições. 2015, 265 f. Tese (Doutorado em Direito)  Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.

ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Meios Consensuais de Resolução de Disputas Repetitivas: a conciliação, a mediação e os grandes litigantes do Judiciário. 2014, 195 f. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números. Brasília, DF, 2021.

COSTA, Susana; FRANCISCO, João. Acesso à Justiça e a obrigatoriedade da utilização dos mecanismos de Online Dispute Resolution: um estudo da plataforma consumidor.gov. In: LUCON, Paulo et al. Direito, Processo e Tecnologia. Ed. 2020. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Releitura do princípio do acesso à Justiça em tempos de pandemia. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 21, n,º 55, p. 51-62, jul.-set./2020.

GALANTER, M. Acesso à justiça em um mundo de capacidade social em expansão. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 2, nº 1, 2 jan. 2015.

PARECER LAVRADO PELO PROFESSOR KAZUO WATANABE, EM CONJUNTO COM RICARDO QUASS DUARTE E CAROLINE VISENTINI FERREIRA GONÇALVES, EM RESPOSTA A CONSULTA DA EMPRESA MERCADO LIVRE BRASIL. 05 abr. 2019.

WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE, Maurício de Moraes (coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover, p. 690. São Paulo: DPJ, 2005.

 


[1] "O Poder Judiciário finalizou o ano de 2020 com 75,4 milhões de processos em tramitação (também chamados de processos pendentes na figura 54), aguardando alguma solução definitiva. Desses, 13 milhões, ou seja, 17,2%, estavam suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório, aguardando alguma situação jurídica futura. Dessa forma, desconsiderados tais processos, tem-se que, em andamento, ao final do ano de 2020 existiam 62,4 milhões ações judiciais.[…] Em 2020, foi constatada na série histórica a maior redução do acervo de processos pendentes, com a redução de cerca de dois milhões de processos, confirmando a contínua tendência de baixa desde 2017" (CNJ, 2021, p. 102).

[2] O professor Daniel Arbix desenvolveu relevante tese sobre o funcionamento dessas ferramentas online, especialmente como funcionam fora do Brasil.

[3] A professora Susana Henriques Costa e o professor João Francisco chamaram atenção para essa preocupação: A obrigatoriedade generalizada da comprovação da realização do prévio requerimento administrativo, por outro lado, é medida à redução de acervo que tende a se tornar mais um obstáculo para a concretização dos direitos do cidadão (COSTA, FRANCISCO, 2020).

[4] A professora Cecília Asperti em sua dissertação de mestrado revelou a possível vantagem do litigante habitual pelo fato de apresentar lista ao Judiciário, para mutirão, com casos em que a conciliação seria possível, pois somente seleciona casos em que sua perspectiva de êxito é mais remota. (ASPERTI, 2014, p. 152)

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