Segunda Leitura

A indispensável repressão penal para a proteção da Amazônia

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

6 de março de 2022, 8h00

A proteção do meio ambiente na Amazônia deixou de ser mera opção e tornou-se obrigação da qual o Brasil não tem como escapar, uma vez que se encontra sob ameaça de graves sanções econômicas.[1]

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Nesta situação limite, nenhuma forma de proteção pode ser rejeitada. Do pagamento por serviços ambientais à repressão penal, todas as ações do poder público ou da iniciativa privada são válidas. Assim, vejamos como e até onde pode ser utilizada a proteção penal ambiental.

O Direito Penal Ambiental brasileiro tem por matriz a Lei 9.605, de 1998. Mas, a referida lei foi feita para outros tempos e para infrações menores, tanto assim que a absoluta maioria de seus artigos permite transação ou suspensão do processo. Foi idealizada para educar e reparar o bem ambiental danificado através de acordos e não para punir o infrator com prisão.

Se isto foi bom para o matuto que, por ignorância ou hábitos seculares, matava um tatu, acaba sendo pouco útil na criminalidade ambiental da atualidade, especialmente na Amazônia. Vejamos.

Segundo a Lei 9.605/98, a exportação ilegal de pássaros para o exterior sujeita o infrator à simbólica sanção de 6 meses a 1 ano de detenção (artigo 29, § 1º, III), o corte de árvores em área de preservação permanente, 1 a 3 anos (artigo 38), a poluição nas formas mais graves, 1 a 5 anos (artigo 54) e a mineração sem licença de qualquer espécie, 6 meses a 1 ano de detenção (artigo 55). A exceção fica na hipótese de maus tratos a gatos ou cachorros, infração punida com 2 a 5 anos (artigo 32, § 1º).

Fácil é ver que, diante de tais penas, o Estado fica fragilizado diante dos grandes crimes ambientais praticados na complexa realidade da Amazônia, onde as condutas lesivas são praticadas em larga escala e os danos ambientais podem ter consequências muito piores.

Alguns, ingenuamente, pensam que a selva, de tão grande que é, jamais será dizimada. Erro flagrante. Paulo Nogueira Neto, o primeiro secretário do Meio Ambiente do Brasil, narra em suas memórias que fazendo uma viagem no Paraná, em 1941, "logo que o avião subiu em Curitiba, após uns 15 minutos de voo, olhando para baixo, somente eram vistas florestas". "Não se via sinal de vida humana, até as proximidades de Foz do Iguaçu, As florestas eram tão imensas e contínuas que eu escrevi nessa época, numa revista da Faculdade de Direito, que elas durariam para sempre. Ledo engano."[2]

A atividade predatória na Amazônia nem sempre é bem compreendida pelos habitantes de outras regiões do país. Ao desconhecimento quase geral, mesclam-se notícias de objetivo meramente político e artigos que se limitam a protestos ou lamentações.

No entanto, o avanço do desmatamento prossegue velozmente. O Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) revelou com base em dados colhidos via satélite Landsat, que entre 1º de agosto de 2020 e 31 de julho de 2021, nada menos que  13.235 km2 foram desmatados na Amazônia Legal, o que representa um aumento de 21,97% no período.[3]

Vejamos, pois, as três práticas criminais mais graves existentes na Amazônia e como o Direito Penal Ambiental pode ajudar a combatê-las: desmatamento e mineração irregular.

A derrubada da floresta, por óbvio, é a que mais chama a atenção. Ela interessa aos que exploram a pecuária e a agricultura em larga escala, ou seja, o agronegócio. As terras mais baratas e a grande quantidade de águas estimulam a criação do gado e o cultivo em larga escala da soja, arroz e o milho.

Sempre é bom lembrar que  na Amazônia o proprietário pode utilizar 20% de sua área rural (artigo 12, inciso I, "a", do Código Florestal), devendo preservar os 80% restantes. Mesmo utilizando 1/5 da área total,  o lucro dos empreendedores é grande e isto, aliado à uma maior conscientização ecológica e ao maior rigor nos financiamentos, estimula que tais práticas se façam de forma sustentável. Muitos cumprem rigorosamente as normas ambientais.

No entanto, existem os que atuam na ilegalidade, promovendo o desmatamento sem autorização da autoridade ambiental ou valendo-se de autorização fraudulenta. Para a União Europeia , "a exploração madeireira ilegal constitui um problema insidioso de ordem ambiental, econômica e social que contribui para as alterações climáticas, a redução da biodiversidade, a perda de rendimentos, o desencadear de conflitos (por vezes armados) motivados por questões de terras e de recursos, bem como a corrupção".[4]

Uma das forma de controle eficiente da origem da madeira é o  Documento de Origem Florestal (DOF), que é uma "licença obrigatória para o transporte e armazenamento de produtos florestais de origem nativa, inclusive o carvão vegetal nativo, contendo as informações sobre a procedência desses produtos, nos termos do artigo 36 da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 (Lei de Proteção da Vegetação Nativa)".[5]

Todavia, o fornecimento do DOF vem sendo feito pelos órgãos ambientais estaduais, com base no artigo 8º da Lei Complementar 140/2011. Os processos administrativos não possuem a transparência desejada, sendo difícil o acompanhamento pela sociedade civil através da internet, apesar da Lei 10.650/2003 assegurar "o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama".[6] Seria de todo oportuno que os Tribunais de Contas dos Estados realizassem auditorias nas agências ambientais.

A importação de madeira pela União Europeia é regulada pelo citado Regulamento 995/2010. Muito embora ele tenha sido um bom passo no controle do desmatamento ilegal, na verdade não tem o rigor exigido para a entrada da carne bovina e dos produtos agrícolas. A disparidade é compreensível. A madeira, ao contrário da soja e a carne, não tem concorrentes em países europeus.

Já a importação de carne bovina é normatizada no Regulamento de Execução (UE) 2018/700, que exige severo controle da rastreabilidade em todas as fases de produção, transformação e distribuição.[7] A importação da soja passa pelo exame de proposta da Comissão Europeia, feita em 17 de novembro de 2021, que pretende proibir a importação de produtos ligados ao agronegócio brasileiro por força da devastação florestal, mesmo que feito dentro da legalidade no país de origem. Aí entra, portanto, a vedação de uso de 20% da propriedade na Amazônia para a agricultura e a pecuária.[8]

A mineração também chama a atenção. Praticada na maioria das vezes de forma ilegal, deixa um rastro de destruição e problemas na saúde das populações da região. Recentemente reportagem da revista Carta Capital mostrou como está consolidada a atuação do PCC, a maior organização criminosa do país, na exploração dos minérios. Por exemplo, no estado de Roraima milhares de foragidos da Justiça encontram refúgio em locais distantes, sendo que 25 deles se encontram em Terra Indígena Yanomami, onde atuam com 20.000 garimpeiros ilegais.[9]

Portanto, valendo-se de armamento pesado, utilizando a experiência do tráfico de drogas, tem o crime organizado um enorme campo de atuação nesta área, inclusive valendo-se das restrições à entrada das policiais e órgãos ambientais estaduais em terras indígenas.

Como se vê, os problemas da Amazônia são proporcionais ao seu tamanho: gigantes. As dificuldades passam ainda pela grilagem de terras e pela sobreposição de títulos de propriedade gerando mais de um Cadastro Ambiental Rural (CAR), tudo de modo a facilitar a obtenção fraudulenta do Documento de Origem Florestal (DOF).

Neste quadro, que exige a tomada de medidas urgentes, sugere-se:

  1. Capacitação de magistrados e agentes do MP na área penal ambiental, através de cursos práticos em que participem policiais especializados e técnicos dos órgãos ambientais;
  2. Fortalecimento das Polícias Estaduais, a fim de que atuem nos moldes da Polícia Federal, que presta excelentes serviços na região;
  3. Fortalecimento do Ibama, que viu reduzido seu quadro de servidores e enfraquecida sua estrutura funcional;
  4. Fortalecer a participação da Receita Federal nas atividades de controle de saída de madeira através dos portos da região;
  5. Ação policial permanente no combate à mineração ilegal, inclusive impedindo o acesso a alimentos e combustíveis, além do afundamento de balsas;
  6. Participação mais ativa do agronegócio nas ações de proteção da floresta, posicionando-se com clareza contra a exploração ilegal, assim evitando a confusão atual existente.

Por óbvio, os problemas vão além dos apontados (v.g., a exportação de peixes ornamentais) e das soluções sugeridas. Mas o importante é que elas venham.

[1] FREITAS, Vladimir Passos de. A adesão do Brasil à OCDE e os reflexos sobre a proteção do meio ambiente. Revista Consultor Jurídico, 6 fev. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-06/segunda-leitura-adesao-brasil-ocde-reflexos-protecao-meio-ambiente , Acesso em 5 mar. 2022.

[2]  NOGUEIRA NETO, Paulo. Uma trajetória ambientalista – Diário de Paulo Nogueira Neto. São Paulo: Empresa das Artes, 2010, p. 25.

[3]  Agência Brasil. Inpe: desmatamento na Amazônia Legal tem aumento de 21,97% em 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-11/desmatamento-na-amazonia-legal-tem-aumento-de-2197-em-2021. Acesso em: 4 mar. 2022.

[4] EUR Lex. Regulamento (UE) n.o 995/2010 relativo às obrigações dos operadores que colocam no mercado madeira e produtos de madeira. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/LSU/?uri=CELEX:32010R0995. Acesso em 6 mar. 2022.

[5] IBAMA. Documento de Origem Florestal. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/flora-e-madeira/dof/o-que-e-dof. Acesso em 6 mar. 2022.

[6] BRASIL. Lei 10.650, de 16/4/2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.650.htm#:~:text=1o%20Esta%20Lei%20disp%C3%B5e,31%20de%20agosto%20de%201981. Acesso em 6 mar. 2022.

[7] NICOLOSO, Carolina da Silveira e SILVEIRA, Vicente Celestino Pires. Rastreabilidade bovina: histórico e reflexões sobre a situação brasileira. Disponível em: 2136-Texto do artigo – Arquivo Original-10089-1-10-20130328 (1).pdf. Acesso em 6 mar. 2022.

[8] O Tempo. União Europeia propõe banir importação de soja e carne ligada ao desmatamento. Reportagem de Ana Estela de Souza Pinto, 17 nov. 2021.Disponível em: https://www.otempo.com.br/economia/ue-propoe-banir-importacao-de-soja-e-carne-ligada-a-desmatamento-1.2571283. Acesso em 6 mar. 2022.

[9]  Revista Carta Capital. Amazônia do Crime. 23 fev. 2022, p. 24.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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