Público & Pragmático

O estado de coisas inconstitucional no contexto pandêmico

Autores

  • Ricardo Maurício Freire Soares

    é pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma La Sapienza pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata e pela Università del Salento doutor em Direito pela Università del Salento doutor em Direito Público e mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor da Faculdade de Direito da UFBA.

  • Matheus Lins Rocha

    é doutorando na área de Biodireito Direito Médico e da Saúde pelo Programa de Medicina e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia mestre em Direito Governança e Políticas Públicas pela Universidade Salvador pós-graduado em Direitos Humanos e em Direito e Saúde Pública em Contexto de Pandemia pela Universidade de Coimbra em Direito Processual pela PUC-MG em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito advogado sócio da Lins & Lins Advogados Associados e professor dos cursos de Direito e Administração da Universidade Salvador/Unifacs e de Direito do Centro Universitário Jorge Amado/UniJorge.

6 de março de 2022, 8h00

O Supremo Tribunal Federal tem verificado diversos desrespeitos aos direitos humanos fundamentais dos reclusos, analisando o tema no RE nº 580.252/MS, no RE 641.320/RS e na ADI 5.356/MS, processos que se relacionam com a necessidade de elaboração de políticas públicas para efetivação dos referidos direitos.

No julgamento da ADPF nº 357/DF, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), de relatoria do então ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal determinou, em decisão convergente com a proferida pela Corte Constitucional Colombiana (Sentencia de Unificación — SU 559 06/11/1997), o estado de coisas inconstitucional relativo ao sistema penitenciário brasileiro, entendendo pela violação sistemática de diversos direitos dos reclusos, inclusive o direito à saúde, evidenciando-se falhas com relação às políticas públicas elaboradas pela Administração Pública brasileira (BRASIL, 2015).

Sobre o estado de coisas inconstitucional, Carlos Campos (2016) assevera que cabe ao juiz constitucional decidir pela presença do estado de coisas inconstitucional, instituto que se relaciona com a violação objetiva dos direitos fundamentais e com a omissão constitucional. Saliente-se que a Corte afirma que falhas estruturais de políticas estatais são fatores centrais desse estado contrário à Constituição, sendo omissões estatais genéricas e sistemáticas que autorizam a intervenção judicial, surgindo a possibilidade de o Poder Judiciário determinar a elaboração de leis e políticas públicas para dirimir o referido estado de coisas (CAMPOS, 2016, p. 98).

Com efeito, precedente que merece destaque é aquele referente à Sentencia de Tutela — T 025/2004 (COLÔMBIA, 2004), relacionado ao deslocamento forçado de pessoas na Colômbia, além da Decisão na referida ADPF nº 357/DF pelo relator que votou no sentido de deferir a medida liminar no sentido de controle efetivado pelo Supremo Tribunal Federal comparando a Convenção Americana de Direitos Humanos com o Estado de Coisas no Sistema Penitenciário brasileiro. Inobstante a grande evolução sobre a declaração do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, não houve, todavia, decisão no sentido de realização de acompanhamento desse estado de coisas inconstitucional (BRASIL, 2015).

Por sua vez, Carlos Campos (2016) sustenta que o sistema carcerário brasileiro produz grande violação generalizada aos direitos humanos por motivo de omissões e falhas estruturais e pela inércia sistemática e incapacidade das autoridades públicas para superar o quadro. A superlotação carcerária, as instalações insalubres, a tortura, a ausência de segurança interna, a inexistência de divisão dos presos, bem como a não efetivação de direitos humanos fundamentais, como saúde, alimentação saudável, educação e trabalho, demonstram o tratamento desumano e degradante dos reclusos.

A doutrina traça quatro pressupostos do estado de coisas inconstitucional, a saber: (1) violação massiva, de forma continuada relacionada a diferentes direitos fundamentais, afetando-se grande número de indivíduos; (2) omissão estatal, de forma reiterada e persistente no sentido de promover os direitos fundamentais; (3) falhas estruturais e deficiência nas políticas públicas e (4) possibilidade de número elevado de demandas judiciais relacionadas ao caso, o que poderia congestionar, mais ainda, o Poder Judiciário (CAMPOS, 2016).

A superlotação carcerária é apontada como grande problema que inviabiliza a efetivação dos direitos humanos fundamentais, havendo deficiências e violações dos referidos direitos, em diversas das unidades federativas do Brasil, podendo ser imputada a responsabilidade ao Poder Público (CAMPOS, 2016).

É evidente que, no cenário de pandemia do Covid-19, a situação carcerária que era precária, pode ainda mais evidenciar suas carências, fator que levou ao então relator, ministro Marco Aurélio, tendo em vista a situação precária e desumana dos presídios e penitenciárias, demandar providências a serem observadas pelos juízos de execução penal.

Estados Unidos, França, Itália, Portugal, Irã, Marrocos, Burkina Faso, Chile e Colômbia são países que têm adotado medidas de desencarceramento (COSTA et al. 2020). No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça elaborou a Recomendação 62 que tem, como objetivo, recomendar aos tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos estabelecimentos do sistema presidial e do sistema socioeducativo, devendo ser verificados e investigados mecanismos no sentido de compelir o Estado Brasileiro a adotar providências para sanar o estado de coisas inconstitucional presente no sistema penitenciário (BRASIL, 2020).

Urge, portanto, que sejam verificados e investigados mecanismos no sentido de compelir o Estado brasileiro a adotar providências para sanar o estado de coisas inconstitucional presente no sistema penitenciário brasileiro, inclusive com o controle judicial de políticas públicas, concluindo-se pelo presente estado de vulnerabilidade dos reclusos que pode, cada vez mais se agravar, tendo em vista o cenário pandêmico do Covid-19.

Para Moraes (2016: 46), as políticas públicas podem ser conceituadas como instrumentos de execução de programas políticos por meio da intervenção estatal na sociedade com o objetivo de assegurar igualdade de oportunidades aos indivíduos, tendo por finalidade assegurar as condições materiais de uma existência digna a todos os indivíduos.

Com efeito, pode-se relacionar as políticas públicas como meios para que seja possível alcançar determinada finalidade desejada, podendo ser fixada por diversos modelos e critérios objetivos fixados. Assim, analisando-se o governo como norteador de processos de transformação social, as ações governamentais sistematizadas acabam por configurar uma verdadeira "tecnologia jurídica governamental" que possui a finalidade de efetivar a democracia e o desenvolvimento com padrões jurídicos previamente estabelecidos (BUCCI, 2013: 36).

Considerando as normas programáticas previstas na Constituição Federal e os direitos sociais, tipificados no artigo 6º do referido diploma, direitos de segunda dimensão, que são efetivados a partir de uma ação positiva estatal, vislumbra-se que o Poder Público define metas e define mecanismos que funcionam como meios de efetivação, também denominados de políticas públicas.

Os direitos sociais, previstos no artigo 6º da Constituição não são autoexecutáveis, como os direitos de primeira dimensão, mas necessitam de uma atuação estatal para serem efetivados. Neste diapasão, o Poder Executivo e o Legislativo devem atuar com ações necessárias para efetivação dos direitos previstos constitucionalmente. Entretanto, havendo determinada omissão dos referidos poderes na elaboração de políticas públicas ou, caso a política implementada seja insuficiente ou ineficaz, o Poder Público poderá verificar a compatibilidade da ação ou omissão com o texto constitucional?

O precedente do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ministro Dias Toffoli, evidencia que, em situações excepcionais, o Poder Judiciário poderá determinar a implementação de políticas públicas para efetivação dos direitos humanos fundamentais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes" (BRASIL; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2012).

Constata-se que mesmo os precedentes que indicam a eventual interferência indevida do Poder Judiciário na Administração Pública salientam que, em situações de desrespeito aos direitos humanos fundamentais, existe a possibilidade do controle judicial na implementação de políticas públicas.

O argumento relativo à ausência de orçamento público para implementação de todas as políticas públicas necessárias, também é utilizado como um possível entrave ao controle de políticas públicas, havendo uma fundamentação no sentido da utilização da teoria da reserva do possível. Portanto, há uma atuação discricionária do ente público para utilização da verba pública para a efetivação das prioridades fixadas. Para a efetivação de cada direito há um custo envolvido, com a necessidade de ação do Estado que possui recursos limitados (HOLMES; SUNSTEIN, 2019).

Resta evidente, contudo, que o mínimo existencial dos direitos humanos fundamentais não pode ficar condicionado à teoria da reserva do possível aplicada pelo Poder Judiciário brasileiro, sob pena de transformação da Constituição e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos em documentos sem qualquer efetividade.

Inobstante a relevância da análise orçamentária estatal, é necessário atentar-se ao núcleo mínimo, intangível dos direitos fundamentais, o denominado mínimo existencial como condição de efetivação da própria dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, III da Constituição Federal, não podendo o Estado ser omisso às determinações constitucionais e convencionais de direitos humanos. Necessário evidenciar que uma das características mais marcantes do neoconstitucionalismo, e do pós-positivismo, é a atribuição do caráter normativo aos princípios, dentre os quais se destaca o princípio da dignidade da pessoa humana (SOARES, 2010).

Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal afirmou que não caber ao Poder Judiciário a implementação e formulação de políticas públicas, sendo, pois, tarefa dos Poderes Legislativo e Executivo. Entretanto, ao tratar da implementação e formulação de políticas públicas, elabora a relação entre o referido encargo e o Poder Judiciário.

Portanto, afigura-se nítido o entendimento do Supremo Tribunal Federal no que se refere à relação entre o Poder Judiciário e a formulação/execução de políticas públicas, havendo um verdadeiro controle judicial, no momento em que se configura um desrespeito aos preceitos constitucionais.

Destarte, conclui-se pela acirrada problemática da efetivação dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade, panorama que foi ainda mais agravado pelo contexto pandêmico, restando comprovada a necessidade da fiscalização de políticas públicas como instrumento de realização da cidadania do âmbito da gestão prisional,

 

REFERÊNCIAS

BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 45/ DF, relator: min. CELSO DE MELLO, data de julgamento: 29/4/2004, data de publicação: DJ 4/5/2004 PP-00012 RTJ VOL-00200-01 PP-00191. 2004.

______. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 347/DF – DISTRITO FEDERAL. Relator: MIN. MARCO AURÉLIO

______. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 2020.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. 1ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

COLOMBIA. Corte Constitucional Colombiana. Sentencia de Unificacíon – SU 559, de 6/11/1997. Disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1997/SU559-97.htm. Acesso em: 22/9/2021.

DANTAS, Miguel Calmon Teixeira de Carvalho. Máximo Existencial como Direito Fundamental. Rejeitando a Tese do Mínimo Vital pelo Desenvolvimento de Referenciais mais Protetivos. Curitiba: Juruá, 2019.

DIAS, Jean Carlos. O Controle Judicial de Políticas Públicas. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática — 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013.

HOLMES, Stephen. SUNSTEIN, Cass. O Custo dos Direitos: Porque a liberdade depende dos impostos. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

LEAL, César Barros. Execução Penal na América Latina à Luz dos Direitos Humanos. Viagem pelos caminhos da dor. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2012.

MORAES, Daniele Alves. O controle jurisdicional de políticas públicas pela instrumentalização do processo coletivo. Doutorado em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2016.

SOARES, Ricardo Maurício Freire. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

WATANABE, Kazuo. Controle Jurisdicional das Políticas Públicas — "Mínimo Existencial" e demais direitos fundamentais imediatamente judicializáveis. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. WATANABE, Kazuo. O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

Autores

  • é pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma La Sapienza, pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata e pela Università del Salento, doutor em Direito pela Università del Salento, doutor em Direito Público e mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor da Faculdade de Direito da UFBA.

  • é doutorando na área de Biodireito, Direito Médico e da Saúde pelo Programa de Medicina e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela Universidade Salvador, pós-graduado em Direitos Humanos e em Direito e Saúde Pública em Contexto de Pandemia pela Universidade de Coimbra, em Direito Processual pela PUC-MG, em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito, advogado, sócio da Lins & Lins Advogados Associados e professor dos cursos de Direito e Administração da Universidade Salvador/Unifacs e de Direito do Centro Universitário Jorge Amado/UniJorge.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!