Estado da Economia

Paternalismo estatal e fórmulas mágicas de tributação contra obesidade

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

6 de março de 2022, 8h00

"As penas servem para intimidar aqueles que não querem cometer crimes[2]"

Na atual proposta de reforma tributária (PEC 110) há a previsão de criação de um imposto seletivo para o desestímulo do consumo de determinados bens que imporiam efeitos negativos (durante a produção ou em seu consumo) a terceiros não relacionados à respectiva operação comercial. Daí o crescente debate acerca da tributação sobre o pecado (sin taxes) ou, de forma mais genérica, do imposto seletivo em virtude de externalidades negativas decorrente do consumo de bens, em um processo cuja pauta se confunde com argumentos morais.

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Temos diversas dúvidas sobre a conveniência da implementação ou expansão de tal tipo de tributo, inclusive a de se não estaríamos a aplicar uma forma ineficiente de moralismo preconceituoso a tratar o outro como alguém que deve ser conduzido pelo Estado em seus hábitos, por meio de mecanismos de preço e não por meio da regulação ou da educação, por exemplo. O preconceito pode se manifestar na forma de discriminação do público que consome o produto, na forma regressiva e injusta de como o aumento de preços atinge de maneira variada as distintas categorias de renda da população e até mesmo por uma visão idealista e preconceituosa contra grandes companhias, algo como uma visão hipster de tributação.

Não se trata de negacionismo sobre os pontos de partidas de quem defende tal forma de paternalismo econômico-político, tais como o de que fumar é prejudicial à saúde; o de que o álcool em excesso poderá ter efeitos deletérios sobre a saúde, o convívio social e sobre a mortalidade em acidentes de veículos automotivos; ou o de que a obesidade é um problema de saúde pública. É importante deixar bem claro: nosso questionamento recai sobre a forma de correlacionar tais pontos de partida às sugestões de intervencionismos por meio de incremento de preço pela via tributária de alguns poucos produtos cuja relação não é direta e determinante com as premissas que justificariam a nova forma adicional de tributação.

Os fundamentos adotados pelos defensores de uma tributação majorada (ou criação de novo imposto) para desestimular padrões de consumo são: (i) um motivo para se questionar o consumo de algum produto ou serviço, (ii) a ideia de que caberia ao Estado punir ou desestimular o seu consumo por mecanismos de preço, a partir do sistema tributário; (iii) que os recursos obtidos por meio da elevação da carga tributária serão, efetivamente, utilizados para combater os malefícios que estariam relacionados ao seu consumo e (iv) que essa seria uma forma eficiente e correta de educar as pessoas para se comportarem de uma forma mais próxima do que os defensores de tais tributos entendem ser a melhor.

Premissas repetidas muitas vezes tornam-se quase verdadeiras. Para não tentar tratar de todas as possíveis formas de tributação seletiva de desestímulo ao consumo, vamos abordar a tributação sobre refrigerantes (soda tax), muitas vezes adotada de forma mais ampla, como tributação sobre bebidas adocicadas (sweetened beverage tax) ou sobre produtos açucarados em geral (sugar tax)[3].

O ponto de partida dos defensores da sobretributação dos refrigerantes ou das bebidas açucaradas é o da necessidade do desestímulo ao consumo de tais bebidas em virtude do papel que elas teriam na obesidade e nas consequentes doenças relacionadas ao sobrepeso. O meio defendido é o incremento de tributação sobre tais produtos, o que (finalidade) diminuiria o seu consumo e permitiria (oportunidade) fazer frente aos gastos públicos com a saúde.

Tal modelo possui um salto arbitrário entre a premissa dos gastos públicos com obesidade e a eleição de um ou poucos produtos como responsáveis pelo sobrepeso, a sofrerem uma tributação discriminatória, o que parecer ser tão científico e empírico quanto dietas que defendem o corte de apenas um item da lista do cardápio da família ou culpar a orelha de porco pelo teor calórico do sábado de feijoada. O paralelo com as dietas milagrosas pode parecer jocoso, mas é o melhor exemplo para colocar em perspectiva o caráter preconceituoso na eleição de um ou outro item como causa do aumento generalizado de peso da população de diversos países[4].

Um dado interessante pode ser obtido na análise mais recente da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018), no livro Análise do Consumo Alimentar Pessoal no Brasil. Nele, localizamos a participação de refrigerantes na obtenção média de calorias das pessoas. Os resultados são esclarecedores e ajudam a desmontar certos estigmas, bem como fazem patente a contradição existente entre itens da cesta básica ultraprocessados com redução de carga tributária versus potenciais itens a serem objeto de um tributo seletivo:

"62. Consumo de alimentos e grupos de alimentos no Brasil segundo a classificação NOVA Para o total da população brasileira com dez ou mais anos de idade, pouco mais da metade (53,4%) das calorias consumidas foi proveniente de alimentos in natura ou minimamente processados, 15,6% de ingredientes culinários processados, 11,3% de alimentos processados e 19,7% de alimentos ultraprocessados (Tabela 7). [….] Dentre os alimentos ultraprocessados, a margarina correspondeu a 2,8% das calorias totais, vindo, a seguir, o biscoito salgado e salgadinho “de pacote” com 2,5%, os pães com 2,1%, os biscoitos doces com 1,7% e os frios e embutidos com 1,6%. Em seguida, em ordem decrescente de contribuição para as calorias totais, apareceram chocolate, sorvete, gelatina, flan ou outra sobremesa industrializada (1,4% das calorias), refrigerantes (1,3% das calorias totais), cachorro quente, hambúrgueres e outros sanduíches (1,1% das calorias totais) e bebidas lácteas (1,1% das calorias totais)”, grifos adicionados[5].

Há um reducionismo questionável em se combater um problema efetivo e epidêmico, o da obesidade, que envolve diversos fatores, apelando ao preconceito a um ou dois produtos. Que fique bem claro, para evitarmos polêmicas desnecessárias: esse texto não trata de saúde pública, que é ponto de partida. Trata, antes, da crítica ao remédio que se pretende adotar contra tal desafio, qual seja, o aumento de preço de pouquíssimos produtos industrializados com açúcar a partir de um Estado que assume a função de babá, na crença de que isso melhorará os números da saúde pública e de que o governo usará esses recursos arrecadados para tal desiderato.

Nesse sentido, sugerimos algumas reflexões, de forma a questionar se a manipulação de preços por meio de tributação seria a melhor maneira de induzir pessoas a determinados padrões de consumo.

As pessoas desenvolvem hábitos de consumo e de alimentação em virtude de múltiplos fatores, alguns dos mais importantes são: sua renda, influência familiar, local e cultural.

A alteração de padrão de consumo dependerá da análise das elasticidades próprias e cruzadas dos bens consumidos. A mera variação de preço não garante que as pessoas simplesmente comportem-se como algoritmos racionais, a ponto de mudarem seus hábitos por conta de um legislador estatal racional.  Além disso, esse tipo de manipulação por preço atinge de forma distinta as categorias de renda familiar, reforçando, por meio desta regressividade, os efeitos perversos de uma desigualdade social e regional bem caracterizada em nosso país[6].

O peso discriminatório do aumento de preço conforme a renda, quando posto em termos mais diretos, desmascara o argumento moral que se faz na defesa da punição do consumo de produtos por parcelas da população. É a provocação: um sujeito hipotético é obeso, pobre e usa o sistema público de saúde. Devemos tributar mais pesadamente o que ele consome, ele próprio ou a sua renda? Isso seria correto? E os dados atuariais de seu uso da seguridade social? Pessoas saudáveis, ao gerarem eventos previdenciários por mais tempo, não equilibrariam tal conta? Perceba-se o terreno minado deste tema do ponto de vista político. Em outros termos, para fugir ao debate transparente e democrático, os governos optam pela eleição de alguns produtos para serem sobretaxados, no que acabam por obter a adesão de entidades interessadas nos recursos arrecadados e entre pensadores moralistas ou, então, progressistas, seduzidos pela pauta moral dos costumes ou pela ideia de tributação de grandes companhias, como se houvesse oligopólio de grandes empresas no fornecimento de alimentos ricos em carboidrato e açúcar.

Victor Fleischer, ao criticar o uso indiscriminado de taxas pigouvianas[7], chama a atenção para o caráter politicamente impopular quando se trata de assumir o direcionamento pessoal contra obesos ou pobres, decorrente da mencionada regressividade. Como justificar a tributação de uma mãe trabalhadora, solteira, pobre, com três filhos tendo que pagar um tributo adicional porque ela não encontra tempo e disposição suficiente para se exercitar após ter de trabalhar em turno completo, ir ao mercado, cozinhar e colocar os filhos para dormir[8]?

Assim, além da elasticidade de cada produto, o nível de consumo guarda relação com a renda de cada família, de onde se conclui que um incremento de preço poderá não alterar o volume consumido por aqueles de renda superior, além de poder motivar a troca de marca, o decréscimo de qualidade ou a substituição da forma de obtenção de açúcar por aqueles consumidores, de renda inferior. Por vezes, esse é o caminho ao contrabando ou à sonegação. Assim, a redução de peso é apenas um objetivo teórico conveniente na busca de adesão política, a camuflar o interesse arrecadatório; ou seja, um verdadeiro Cavalo de Tróia mimetizado de saúde pública. Daí que o debate é tão esfumaçado, a ponto de sequer tornar visível o dado mais básico de decréscimo atual do consumo dessas bebidas e o crescimento do sobrepeso e da obesidade.

Outro ponto questionável é atribuir ao Estado uma função de babá (Nanny State), algo como terceirizar a educação alimentar das famílias a uma entidade estatal[9]. Sem contar uma visão de privatização do serviço público da saúde, em que parcela da população pagará de forma regressiva por seu uso.

Por último, deve-se lembrar que a história demonstra que, por vezes, a proibição ou estigmatização de um determinado produto pode gerar um resultado indesejado, o do aumento de sua procura, notadamente em jovens[10], reforçando o aforismo do intelectual austríaco Karl Kraus, para quem as penalidades foram postas apenas para desincentivar aqueles que já não pretendiam incorrer no pecado.

No estudo de políticas públicas, das funções do Estado e do custeio de sua atuação, deve-se evitar cair na fácil tentação da busca de resultados sobre comportamentos de consumo de bens em um contexto em que o pecado maior do governo é o de não querer perder uma arrecadação fácil (a compensar a extinção do IPI); do que decorre uma recompensa (indução) governamental no desejo pela manutenção do volume consumido antes da medida.

Deve-se resistir à tentação de se tributar o pecado, porque as premissas de tal tributação podem não estar tão bem firmadas, como nos fazem crer certas intuições e, sobretudo, porque os resultados de redução da obesidade não serão alcançados por meio da sobrecarga, arbitrária, de alguns itens da mesa da família brasileira. Por vezes, pecados devem ser estudados e discutidos de uma forma mais conscientizadora e eficiente, que não a de tratar as famílias brasileiras como experimentos de engenharia social intervencionista de castigos de sobrepreços de impacto desigual.

Um tributo desse tipo parece, apenas, alimentar a tão antiga ideia de permissão da prática do pecado por aqueles que podem pagar as indulgências sem maiores prejuízos aos seus orçamentos; tudo isso sem liturgia, sem fé, sem absolvição e, o pior,  sem o milagre da redução de peso da população.


[2] KRAUS, Karl. Aforismos. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010, p. 34. No original: „Die Strafen dienen zur Abschreckung derer, die keine Sunden begehen wollen“. Cf. KRAUS, Karl. Ich bin der Vogel, den sein Nest beschmutzt: Aphorismen, Sprüche und Widersprüche. Wiesbaden: Marix Verlag, 2007, p. 45.

[3] Outros tributos aparecem na literatura ou nas experiências práticas de países e estão relacionados, também, com a abordagem calórica, como como o Fat tax, Junk food tax ou Nutella tax.

[4] Diversos exemplos de ausência de significância estatística ou diferenças entre simulações e estudos empíricos, ver: THOM, Michael. Taxing Sin. Cham: Palgrave McMillan, 2020, pp. 36-43, incluindo essa passagem: “It also comes as no surprise that a McKinsey Global Institute analysis ranked beverage taxation as one of the least effective strategies to reduce obesity. The most effective was portion control” (p. 43).

[5] THOM, Michael. Taxing Sin. Cham: Palgrave McMillan, 2021, p. 36. “But data trends directly undermine the notion that there is a direct connection from drinking soda to tipping the scale into obese territory. Soft drink consumption in the United States more than doubled from 1960 to 1980, yet over that two – decade period, the obesity rate was flat. Between 2005 and 2010, the number of calories in beverages sold in schools plunged by 90 % — mostly because of voluntary action taken by “big soda” — but the adolescent obesity rate rose 10 %. Studies also show that obesity’s latter – day surge occurred alongside plummeting soda consumption”.

[6] Nesse sentido, ver HOFFER, Adam & GVILLO, Rejeana & SHUGHART, William & THOMAS, Michael. "Income-expenditure elasticities of less-healthy consumption goods", Journal of Entrepreneurship and Public Policy, Vol. 6, Issue: 1, 2017, p. 138, DOI: 10.1108/JEPP-03-2016-0008. Disponível em http://dx.doi.org/10.1108/JEPP-03-2016-0008.

[7] Trata-se de um tipo de tributação, proposta pelo economista inglês Arthur Pigou, para neutralizar as externalidades negativas (custos) geradas por contribuintes a terceiros. Por todos, ver: MASUR, Jonathan S. & POSNER, Eric A. Toward a Pigouvian State. University of Pennsylvania Law Review, vol. 164, 2015, pp. 94-95.

[8] FLEISCHER, Victor. Curb Your Enthusiasm for Pigovian Taxes. In: Vanderbilt Law Review, vol. 68:6:1673, pp. 1705-1706: “But such a tax on obese people, instead of fatty foods, would be punitive, politically unpopular, normatively unjustified, and arguably immoral. The tax would be regressive and would have a disparate racial impact. Unlike a tax on specific types of food and drink, it would operate as a sort of reverse endowment tax, with the incidence of the tax falling most heavily on those saddled with bad genes and poor ability to compensate. One can imagine a politician trotting out a story of an exhausted, poor, single, working mother with three kids having to pay an annual excise tax of $500 because she cannot find enough time to exercise after working an eight hour day, going to the grocery store, cooking, and putting the kids to bed.”

[9] Não se defende aqui uma visão ultraliberal do cidadão e da cidadã em relação ao Estado ou a uma ampliação irrefletida das esferas individuais de liberdade. Trata-se da crítica, reitere-se, de uma forma de propor um remédio (tributação sobre o consumo majorada) de itens isolados da alimentação como forma de discutir orçamento público com a saúde e o combate à obesidade.

[10] “Thus, stigmatizing soda can lead to an unintended consequence: individuals drink more of it, not less”: THOM, Michael. Taxing Sin. Cham: Palgrave McMillan, 2020, p. 64.

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