Opinião

Lei dos jogos de azar: o jogo que deve ser jogado

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6 de março de 2022, 6h34

A Câmara dos Deputados aprovou o texto-base de um projeto de lei que "legaliza os chamados jogos de azar — como bingo, cassino e jogo do bicho" [1] é a notícia mais recente vinda do parlamento brasileiro que ganhou as manchetes da mídia brasileira.

Entretanto, o projeto ainda passará pelo Senado e o presidente da República já afirmou que o vetará caso ele efetivamente seja aprovado pelo Congresso Nacional [2].

As dúvidas são: a regulamentação dos referidos jogos no Brasil seria algo positivo? Qual é a realidade dos países onde os jogos de azar são regulamentados? Que cautelas devem ser tomadas?  

As respostas aos questionamentos acima mencionados é o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória, explicativa e comparativa.

Da proibição dos jogos no Brasil
No Brasil, a norma que proíbe (ou restringe) os jogos existe desde 1946 por meio do Decreto-Lei 9215/46, que foi recepcionado pela Constituição de 1988 como Lei Ordinária e que tem o seguinte objeto: "proíbe a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional".

Interessante se faz trazer à baila os considerandos da norma em testilha:
"Considerando que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal;
Considerando que a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a esse fim;
Considerando que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração e jogos de azar;
Considerando que, das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes;
Considerando que as licenças e concessões para a prática e exploração de jogos de azar na Capital Federal e nas estâncias hidroterápicas, balneárias ou climáticas foram dadas a título precário, podendo ser cassadas a qualquer momento".

Assim, não há como se negar que a referida lei é extremamente obsoleta, levando em consideração até mesmo aspectos religiosos, não sendo por outra razão que a chamada "bancada Evangélica" é contra a aprovação no momento dos jogos de azar [3].

Além disso, os mesmos considerandos afirmam que é uma tendência a vedação aos jogos de azar em outros países, o que não é uma realidade, pois eles existem em vários locais do mundo, como nas vizinhas Uruguai [4] e Venezuela [5], bem como em Portugal, onde os referidos jogos são realizados sob a tutela do Estado, uma vez que o Decreto-Lei Português 422/89 prevê:

"Artigo 1.º Jogos de fortuna ou azar Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte. 2.º Tutela A tutela dos jogos de fortuna ou azar compete ao membro do Governo responsável pelo sector do turismo."

Além disso, existem autores em Portugal defendendo que os jogos de azar são verdadeiras concessões de serviços públicos [6], ainda que não exista unanimidade nesse sentido [7]. De qualquer forma, o fato é que Portugal reconheceu que controlar a proibição dos jogos é algo extremamente difícil, sendo melhor os permitir mediante controle estatal [8], o que viabiliza, inclusive, a cobrança de tributos [9].

Realmente, comparando com o Brasil, mesmo diante da proibição, é muito comum se deparar com bancas de jogo do bicho em várias cidades do Brasil, inclusive com os chamados "bicheiros" ganhando posição de destaque na sociedade brasileira, como foi o caso de Castor de Andrade [10].

Diante da referida realidade, indaga-se: não seria melhor o Brasil seguir o exemplo de Portugal e permitir a realização dos jogos de azar, os controlar e arrecadar tributos? Além disso, a permissão também evitaria a feitura de contravenções e crimes, tendo em vista que atividades hoje realizadas sob o manto da ilegalidade passariam a ser permitidas e controladas. Aliás, existem outros exemplos no Brasil onde a proibição acaba gerando marginalização e falta de arrecadação tributária, como é o caso da proibição do cultivo da cannabis, por exemplo, mas essa é uma discussão para outro artigo.

De qualquer forma, a discussão em questão é realmente complexa, tal como será visto no tópico que segue.

Da regulamentação dos jogos no Brasil
De antemão, urge a necessidade de frisar que os jogos não são completamente proibidos no Brasil.

A lei 13.756/2018 prevê:
"Artigo 29. Fica criada a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional. § 1º A modalidade lotérica de que trata o caput deste artigo consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico."

Desse modo, conforme se percebe, como serviço público exclusivo da União e passível de delegação, o Brasil permite as chamadas apostas fixas, onde o jogador sabe exatamente quanto vai gastar e quanto pode vir a ganhar, como acontece nas loterias de um modo geral, como a Mega-Sena. Percebam que na referida espécie de jogo não existe, tal como comumente acontece em cassinos e em outros tipos de jogos, a possibilidade de a pessoa perder grandes somas em dinheiro. Além disso, a dita espécie de jogo no Brasil é, por expressa previsão legal, um serviço público, o que garante o controle estatal, tal como acontece em Portugal, assim como foi visto acima.

O projeto de lei aprovado recentemente na Câmara dos Deputados, no entanto, visa ampliar as espécies de jogos no Brasil, incluindo a possibilidade de cada estado da federação ter um cassino, salvo Minas Gerais e Rio de Janeiro que podem vir a ter dois e São Paulo que pode vir a ter três. Além disso, o projeto busca legalizar o Jogo do Bicho e trazer de volta as Casas de Bingo, sempre com um capital mínimo e mediante autorização [11].

A grande questão é: o projeto em testilha toma todas as cautelas necessárias para evitar os dois maiores medos da aprovação da ampliação dos jogos no Brasil, quais sejam: o fato de que jogar efetivamente vicia [12] e de que a possível aprovação definitiva do projeto pode ser uma porta aberta para a lavagem de dinheiro no Brasil [13]?

Em relação ao problema do vício, o projeto prevê uma "política nacional de proteção aos jogadores e apostadores[14]", que traz como uma de suas diretrizes: "IV – prevenção e tratamento dos transtornos de comportamento associados a distúrbios com jogos e apostas", bem como "V – prevenção e estabelecimento de normas e procedimentos de resolução do superendividamento dos jogadores e apostadores".

Além disso, o projeto prevê:
"Seção I – Da Prevenção ao Endividamento
Artigo 80. É vedado à entidade operadora: I – conceder, sob qualquer forma, adiantamento, antecipação, bonificação ou vantagem prévia, ainda que a mero título de promoção, divulgação ou propaganda, para a realização de jogo ou aposta; II – firmar parceria, convênio, contrato ou qualquer outra forma de arranjo ou ajuste negocial com qualquer pessoa jurídica para permitir ou facilitar o acesso a crédito ou a operação de fomento mercantil por parte de jogador ou apostador; e III – instalar ou permitir que se instale, em seu estabelecimento físico, qualquer agência, escritório ou representação de pessoa jurídica que conceda crédito ou realize operação de fomento mercantil a jogadores e apostadores; e Artigo 81. São nulos de pleno direito os negócios jurídicos sob qualquer forma manifestados ou instrumentalizados que tenham por fim ou possam configurar: I – mútuo ou constituição de garantia prévia de dívida de jogo ou aposta; ou II – promessa de alienação, cessão ou dação em pagamento de bens, direitos e valores para quitação de dívida de jogo ou aposta".

Entretanto, as mencionadas diretrizes são meras normas programáticas e que precisam de efetiva concretização para que tenham algum efeito prático, o que deve ser debatido de forma mais profunda.

Já as proibições visando prevenir o endividamento possuem mais concretude a partir do momento no qual evita a concessão de empréstimos com fins de permitir a realização de jogos. A referida medida é extremamente importante para evitar o superendividamento dos jogadores, porém não é o suficiente, tendo em vista que a limitação para a obtenção de empréstimos legais tende a levar os viciados em jogos a buscarem agiotas e a consequência da referida possibilidade é extremamente perigosa e preocupante. Assim, a presente questão deve ser enfrentada pelas autoridades competentes de forma mais profunda.

Já acerca da lavagem de dinheiro, o projeto prevê:

"TÍTULO V – DA PREVENÇÃO À LAVAGEM DE DINHEIRO E AO FINANCIAMENTO DO TERRORISMO CAPÍTULO I – DA POLÍTICA DE PREVENÇÃO
Artigo 84. As entidades operadoras devem implementar e manter política formulada com base em princípios e diretrizes que busquem prevenir a sua utilização para as práticas de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo. Parágrafo único. O Ministério da Economia regulamentará o disposto neste Título.
Artigo 85. A política de prevenção deverá ser documentada, aprovada pela diretoria da entidade operadora, constantemente atualizada e compatível com os perfis de risco: I – da própria entidade operadora; II – dos jogadores e apostadores; III – da quantidade e do volume de recursos envolvidos nos jogos e apostas; e IV– dos funcionários, parceiros e prestadores de serviços terceirizados da entidade operadora.

Parágrafo único. A entidade operadora deverá divulgar a política de que trata este artigo aos seus funcionários, parceiros e prestadores de serviços terceirizados, mediante linguagem clara e acessível, em nível de detalhamento compatível com as funções desempenhadas e com a sensibilidade das informações.
 Artigo 86. Além de outras previstas na regulamentação editada pelo Ministério da Economia, a política de prevenção deverá conter diretrizes e regras sobre: I – definição de responsabilidades para o cumprimento das obrigações de previstas neste Título e nos atos regulamentares editados pelo Ministério da Economia; II – procedimentos de avaliação e análise dos jogos e das apostas, bem como da utilização de novas tecnologias, com vistas à busca permanente da mitigação do risco de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo; III – avaliação interna de risco, com o objetivo de identificar e mensurar o risco de utilização dos jogos e apostas na prática da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo; IV – avaliação de efetividade da política, dos procedimentos e dos controles internos de que trata este Título; V – seleção, contratação e capacitação de funcionários, parceiros e prestadores de serviços terceirizados; e VI – procedimentos de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo".

Mais uma vez nos referidos pontos temos normas extremamente abstratas e que não trazem mecanismos efetivos para combater a lavagem de dinheiro por meio dos jogos. A preocupação com problema efetivamente existe na proposta, mas falta a previsão de medidas práticas mais efetivas.

No mais, o projeto prevê que caberá ao Ministério da Economia regulamentar o referido dispositivo legal, porém essa possibilidade não é o ideal, pois seria melhor que a própria lei detalhasse como efetivamente combater a utilização da prática dos jogos como mecanismo para se realizar a lavagem de dinheiro.

Outrossim, deixar a referida regulamentação para o Ministério da Economia é extremamente preocupante, primeiro porque joga para o futuro solucionar um problema que deveria ter a solução dada junto com a aprovação da possível futura lei. Além disso, deixar a regulamentação para um ministério é permitir que as medidas preventivas possam vir a mudar a cada troca de governo, gerando uma descontinuidade em uma situação que deveria ser perene.

Enfim, o projeto não deixa de abordar o combate aos maiores medos de uma possível ampliação dos jogos no Brasil, porém o faz de forma meramente teórica e superficial, o que ainda não é o suficiente para afastar os receios existentes.

Conclusão
Não há como negar: ampliar os jogos no Brasil é uma medida que pode gerar novos empregos, estimular o turismo, fomentar a economia e aumentar a arrecadação dos tributos. Assim, não devemos apenas defender o veto da ideia.

Entretanto, a ampliação dos jogos no Brasil não pode acontecer de forma impetuosa, sem que existam as cautelas necessárias para se evitar a proliferação de patologias entre os jogadores, bem como para impedir que os jogos surjam como mecanismos para lavar verbas financeiras ilícitas.

Desse modo, a discussão não pode se resumir a aprovar ou não aprovar o projeto de lei dos jogos de azar e sim debater quais mecanismos legais devem existir para que a atividade em questão efetivamente atinja os objetivos almejados caso aprovada, mas sem trazer malefícios para a sociedade.

Enfim, é um jogo difícil, mas que deve ser jogado.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Diogo Freitas. Curso de Direito Administrativo, Vol.2, 2ªed, Coimbra: Almedina. 2003.
ALMEIDA, João Amaral; SÁNCHES, Pedro Fernandes. Temas de Contratação Pública, Coimbra: Coimbra Editora, 2011.Tomo I.
CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra: Almedina, 2020.
GONÇALVES, Pedro Costa. Manual de Direito Administrativo, Vol.1, Almedina: Coimbra, 2020.
https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-06/nicolas-maduro-reabre-cassinos-em-busca-de-oxigenio-para-a-economia-venezuelana.html.
https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/02/24/camara-aprova-texto-base-de-projeto-que-legaliza-jogos-de-azar-e-cria-regras-para-exploracao-de-apostas.ghtml.
https://igamingbrazil.com/cassino/2021/03/25/uruguai-anuncia-novas-medidas-de-contencao-mas-cassinos-seguem-abertos/.
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/02/23/ofensiva-da-bancada-evangelica-trava-votacao-de-projeto-sobre-jogos-de-azar.htm.
https://www.camara.leg.br/noticias/854027-plenario-conclui-votacao-do-projeto-que-legaliza-jogos-de-azar-veja-como-ficou-o-texto/.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0xwh3ni9r3ymu3qmx4wb68qxz48049514.node0?codteor=2139618&filename=Tramitacao-PL+442/1991.
https://www.conjur.com.br/2022-fev-26/pierpaolo-cruz-bottini-jogos-azar-lavagem-dinheiro.
https://www.gruporecanto.com.br/2019/blog/vicio-em-jogos/
https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-que-vetara-projeto-sobre-jogos-de-azar/.


[6] GONÇALVES, Pedro Costa.  Manual de Direito Administrativo, Vol.1, Almedina: Coimbra, 2020. p.827.

[7] AMARAL, Diogo Freitas. Curso de Direito Administrativo, Vol.2, 2ªed, Coimbra: Almedina. 2003. p.579.

[8] ALMEIDA, João Amaral; SÁNCHES, Pedro Fernandes. Temas de Contratação Pública, Coimbra: Coimbra Editora, 2011.Tomo I. p.192.

[9] CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra: Almedina, 2020.p.419.

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