Ambiente Jurídico

Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural completa 50 anos

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

5 de março de 2022, 8h00

Está prestes a completar 50 anos de existência a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, resultado dos trabalhos da Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), reunida em Paris de 17 de Outubro a 21 de Novembro de 1972, em sua 17ª sessão.

Spacca
Trata-se de um dos mais importantes documentos sobre a defesa do patrimônio cultural e do meio ambiente em todo mundo. No Brasil ela foi internalizada ao nosso ordenamento jurídico  pelo Decreto n° 80.978, de 12.12.77, que a promulgou.

Segundo Clarice Cristine Ferreira Menezes[1], com a Convenção houve a ampliação da percepção dos patrimônios que deveriam ser resguardados, bem como uma busca pela institucionalização da cooperação internacional para a preservação dos bens naturais e culturais a partir da sistematização de critérios e estratégias que pudessem ser aplicados em nível mundial.

Em sua parte introdutória o documento internacional reconhece que, já naquela quadra da história, o patrimônio cultural e o patrimônio natural estavam cada vez mais ameaçados de destruição, não apenas pelas causas tradicionais de degradação, mas também pela evolução da vida social e econômica que as agravavam.

Na sequência, afirma que a degradação ou o desaparecimento de um bem do patrimônio cultural e natural constitui um empobrecimento efetivo do patrimônio de todos os povos do mundo, razão pela qual era dever da ONU ajudar a conservação e proteção dos bens culturais e naturais únicos e insubstituíveis, de valor universal excepcional, pertencentes a qualquer povo.

Em seguida concluiu que se fazia necessária a adoção de novas disposições convencionais que estabelecessem um sistema eficaz de proteção coletiva do patrimônio cultural e natural de valor universal excepcional organizado de modo permanente e segundo métodos científicos modernos.

Composta por trinta e oito artigos, a Convenção está dividida em oito títulos, que tratam dos seguintes temas: Definições do patrimônio cultural e natural; Proteção nacional e proteção internacional do patrimônio cultural e natural; Comitê intergovernamental para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural; Fundo para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural; Condições e modalidades de assistência internacional;  Programas educativos; Relatórios e Cláusulas finais.

Para a Convenção são considerados como patrimônio cultural: os monumentos (obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência); os conjuntos (grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência); e os locais de interesse (obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Como patrimônio natural são considerados os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações com valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; as formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente delimitadas que constituem habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, com valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação;  e os locais de interesse naturais ou zonas naturais estritamente delimitadas, com valor universal excepcional do ponto de vista a ciência, conservação ou beleza natural.

Para serem incluídos na Lista do Patrimônio Mundial exige-se que os sítios tenham  valor universal excepcional e atendam a pelo menos um dos dez critérios de seleção atualmente previstos nas Diretrizes Operacionais para a implementação da Convenção do Patrimônio Mundial que é, juntamente com o texto da Convenção, a principal ferramenta de trabalho para os assuntos relacionados ao Patrimônio Mundial.

Os critérios  de seleção são revisados regularmente pelo Comitê do Patrimônio Mundial, que  se reúne uma vez por ano e é composto por representantes de 21 Estados- Partes da Convenção eleitos por sua Assembleia Geral. O Comitê é o órgão incumbido da implementação da Convenção e pode determinar o uso do Fundo do Patrimônio Mundial e alocar assistência financeira a pedido dos Estados-Partes. Também cabe a ele decidir se um sítio é aceito para inscrição na Lista do Patrimônio Mundial; examinar os relatórios sobre o estado de conservação dos sítios inscritos e solicitar aos Estados-Partes que tomem medidas quando os sítios não estiverem sendo adequadamente administrados; determinar a inclusão de sítios na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo ou mesmo a remoção deles da lista.

Atualmente existem 167 países signatários da Convenção e 1.154 bens considerados patrimônio da humanidade, sendo 897 culturais, 218 naturais e 39 bens mistos (que congregam valores naturais e culturais). 52 bens culturais estão inseridos na lista de patrimônio em perigo e 3 foram excluídos da lista de patrimônio mundial, quais sejam: Vale do Elba em Dresden (Alemanha), Santuário do Oryx Árabe (Omã) e o Centro de Liverpool (Reino Unido).

No Brasil temos, atualmente, 15 sítios reconhecidos como patrimônio cultural da humanidade: Brasília (1987), Centro Histórico de Salvador da Bahia (1985), Centro Histórico de São Luís (1997), Centro Histórico da Vila de Diamantina (1999), Centro Histórico da Cidade de Goiás (2001), Centro Histórico da Vila de Olinda (1982), Cidade Histórica de Ouro Preto (1980), Ruínas de São Miguel das Missões (1984), Conjunto Modernista da Pampulha (2016), Rio de Janeiro: Paisagens Cariocas entre a Serra e o Mar (2012), Santuário do Bom Jesus do Congonhas (1985), Praça São Francisco na Vila de São Cristóvão (2010), Parque Nacional da Serra da Capivara (1991), Sítio Roberto Burle Marx (2021) e Sítio Arqueológico Cais do Valongo (2017).

Os sítios naturais são 7: Reservas do Sudeste da Mata Atlântica (1999), Ilhas Atlânticas Brasileiras: Reservas Fernando de Noronha e Atol das Rocas (2001), Complexo de Conservação da Amazônia Central (2000, 2003), Áreas Protegidas do Cerrado: Parques Nacionais da Chapada dos Veadeiros e das Emas (2001), Reservas de Mata Atlântica da Costa do Descobrimento (1999), Parque Nacional do Iguaçu (1986), Área de Conservação do Pantanal (2000).

Como sítio misto foi reconhecido o conjunto de Paraty e Ilha Grande — Cultura e Biodiversidade (2019).

Como acima dito, conquanto o bem reconhecido pela Unesco não fique sob a administração internacional, aquele organismo verifica periodicamente a sua situação de conservação e gestão e, em caso de ameaças, pode colocá-lo na lista do patrimônio mundial em perigo ou mesmo excluí-lo.

Como bem ressaltado por Paulo Affonso Leme Machado, dessa forma fica mais difícil abrandar a fiscalização interna — a nível nacional — no sentido de concessões prejudiciais ao bem integrante da lista do patrimônio mundial. De outro lado, não é desprezível a força da opinião pública mundial, reforça após a Convenção de 1972, que pode agir em favor da conservação ou da revalorização dos bens classificados[2].

A aplicabilidade e a força da Convenção em nosso país já foram invocadas em processos judiciais sobre a proteção de diversos bens integrantes da lista do patrimônio mundial, sendo julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) casos envolvendo o patrimônio cultural das cidades do Rio de Janeiro[3] Olinda[4] e Brasília[5], onde expressamente foi levada em consideração as disposições do texto convencional.

Do acórdão proferido pelo STJ  relacionado ao patrimônio cultural de Brasília, podemos extrair os seguintes excertos:

A Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural tem aplicabilidade judicial direta no Brasil, seja porque seus princípios gerais e obrigações, mesmo os aparentemente mais abstratos e difusos, iluminam o sistema constitucional e legal brasileiro e com ele dialogam, em perfeita harmonia, coerência e complementaridade, seja por ser inadmissível que o País negocie, assine e ratifique tratados internacionais para em seguida ignorá-los ou só aplicá-los de maneira seletiva, cosmética ou retórica. A cooperação entre os Estados-Parte, uma das marcas da Convenção, não a transforma em desidratado acordo de cavalheiros, que legitima a inação e a omissão estatal, algo que imunizaria seu texto, em cada País, contra eventual tentativa de implementação pelo Poder Judiciário.

Tampouco devem ser lidas como rol exortatório de políticas públicas, a cargo do Poder Executivo, ou proclamação vazia de consequências práticas, no âmbito judicial. Ao contrário, são deveres que convidam o escrutínio e a implementação judicial em cada Estado-Parte. Naquilo que importa para a solução da presente demanda, no art. 5º, "d", da Convenção, encontra-se, a rigor, um genuíno e amplo dever exigível dos Estados-Parte (aí se incluindo, no caso do Brasil, a União, os Estados Federados e os Municípios), consistente na adoção, para proteger e conservar os bens listados como patrimônio mundial, de medidas jurídicas e administrativas "adequadas" (= eficazes).

Enfim, a Convenção para a proteção do patrimônio mundial de 1972 é diploma normativo de extremo relevo para a proteção dos bens integrantes do meio ambiente em suas dimensões natural e cultural, podendo ser utilizado em nosso país como substrato adicional e complementar aos mandamentos constantes de nossa Constituição Federal, sobretudo nos arts. 216 e 225.


[1] Cooperação internacional e patrimônio mundial. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Volume 2 – Número 3 – Julho de 2010. www.rbhcs.com ISSN: 2175-3423

[2] Direito Ambiental Brasileiro. 18. Ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 901.

[3] STJ; REsp 1.791.098; Proc. 2019/0004998-3; RJ; Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; Julg. 23/04/2019; DJE 02/08/2019.

[4] STJ; REsp 1.293.608; Proc. 2011/0101319-3; PE; Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; DJE 24/09/2014.

[5] STJ; REsp 840.918; Proc. 2006/0086011-1; DF; Segunda Turma; Relª Minª Eliana Calmon Alves; Julg. 14/10/2008; DJE 10/09/2010.

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