Licitações e Contratos

Empresas em recuperação e a Lei 14.133: um questionamento não solucionado

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

    Ver todos os posts

4 de março de 2022, 8h00

A Lei nº 8.666/1993 nada mencionou sobre recuperação judicial de empresas, e nem poderia, porque ao legislador não é deferido o papel de prever institutos jurídicos futuros que somente apareceram mais de dez anos após a edição da lei. Explicamos: a "antiga" Lei Geral de Licitações data de 1993, enquanto a lei que trata da recuperação judicial de empresas (Lei nº 11.101) somente foi promulgada no ano de 2005.

Spacca
Até 2005, portanto, não havia grande polêmica sobre esse tema, sobretudo porque o artigo 31, II, da Lei nº 8.666/1993, quando da enumeração da documentação relativa à qualificação econômico-financeira das empresas licitantes, exigia a certidão negativa de falência ou concordata. Tratava-se, portanto, de uma restritiva interpretação literal.

Todavia, talvez por descuido legislativo, quando a Lei nº 11.101/2005 foi promulgada, o legislador perdeu a oportunidade de modificar o aludido artigo 31, II, da Lei Geral de Licitações. Assim sendo, desde 2005 criou-se uma disputa acirrada quanto à possibilidade de empresas em recuperação judicial participarem de certames licitatórios.

Certo é que, sem maiores aprofundamentos quanto ao tema — sobretudo porque o espaço aqui não permite —, o instituto da recuperação judicial é substancialmente diferente da extinta concordada. Assim, se os institutos são diversos, pode-se entender que houve uma derrogação do aludido artigo 31, II, da Lei nº 8.666/1993, devendo-se interpretá-lo sem a restrição documental relacionada à recuperação judicial.

Os motivos para que a interpretação possa caminhar nesse sentido (de permitir a participação de empresas em recuperação judicial em certames licitatórios) são os mais diversos, a começar pela própria finalidade do instituto. Porém, mais do que isso, pode-se pensar no exemplo de uma empresa de limpeza e conservação, ou mesmo no de uma empresa de segurança armada, em que a quase totalidade de seus contratos são firmados com o poder público. Em tais hipóteses, para que serviria a recuperação judicial se a recuperanda não pudesse licitar?

Seguindo essa linha interpretativa, os tribunais vêm permitindo a participação de empresas em recuperação judicial em certames licitatórios. No entanto, deixam a cargo da Administração Pública a eventual verificação da real viabilidade econômico-financeira da empresa recuperanda licitante, o que muitas vezes gera dificuldade e insegurança não apenas para a própria empresa, mas também para o agente público.

Em um de seus mais recentes julgados sobre o tema, o Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que "admite-se a participação, em licitações, de empresas em recuperação judicial, desde que amparadas em certidão emitida pela instância judicial competente afirmando que a interessada está apta econômica e financeiramente a participar de procedimento licitatório" [1].

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que "a exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certame, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica" [2].

Em suma: a jurisprudência do TCU e do STJ (sob a égide da Lei nº 8.666/1993) parece caminhar no sentido de não permitir a exigência de certidão negativa de recuperação judicial para que uma empresa participe de licitação; isto é, a licitante não pode ser desclassificada do certame pelo simples fato de estar em recuperação judicial.

Nada impede, porém, segundo os próprios precedentes do TCU e do STJ, que a comissão de licitação ou o pregoeiro faça uma análise técnica mais aprofundada, com o fim de averiguar se a empresa em recuperação judicial tem ou não viabilidade econômico-financeira para participar daquele certame.

Logo, partindo de tais pressupostos, uma questão interessante exige reflexão: que grau de discricionariedade deve ser conferido à Administração Pública no que tange a possibilidade de alijar do certame determinada empresa em recuperação judicial?

O primeiro ponto a ser destacado quanto a essa questão perpassa pela seguinte análise: eventual ato de desclassificação da empresa em recuperação judicial deve ser o mais motivado possível, a fim de fornecer elementos suficientemente esclarecedores para um hipotético questionamento judicial (ou mesmo administrativo) posterior. Dito de outro modo, a comissão de licitação ou o pregoeiro (e também o agente de contratação, já sob a ótica da Lei nº 14.133/2021) devem, inarredavelmente, conferir o máximo de fundamentação a qualquer decisão administrativa que não permita a participação de determinada empresa em recuperação judicial em certames licitatórios.

A falha na fundamentação da Administração Pública já alimenta e possibilita, por si só, a impetração de mandado de segurança, porque uma precária motivação pode ser encarada como violação a direito líquido e certo, bem assim afronta os princípios da isonomia e impessoalidade. Interessante, pois, que os agentes públicos envolvidos no processo de licitação fundamentem o ato de maneira adequada, com análise de balanços e demais índices demonstrativos da saúde financeira do potencial licitante.

Em caso de permissão para que a empresa em recuperação judicial participe de licitação, principalmente na hipótese de ela ser declarada vencedora do certame, a relevância e a imprescindibilidade da fundamentação são talvez até maiores, mas, em tal caso, como proteção ao próprio gestor público: afinal, se, no futuro, a recuperação judicial não for bem sucedida e a empresa vier à falência, ficando impossibilitada de honrar suas obrigações com a Administração Pública contratante, o agente público pode ser responsabilizado pessoalmente (inclusive sob a ótica do artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — Lindb, que prevê o erro grosseiro) por não ter feito uma análise bem fundamentada sobre a viabilidade econômico-financeira da empresa quando do processo licitatório.

Por fim, deve-se também questionar a possibilidade de a Administração Pública já excluir, em regra do próprio edital da respectiva licitação, a participação de empresas em recuperação judicial.

Parece-nos que isso deve ser possível, especialmente em contratações mais sensíveis, nas quais a complexidade do objeto do contrato e/ou o seu grande vulto econômico possam justificar a decisão do poder público de não querer assumir o ônus de contratar uma empresa em recuperação judicial, cuja situação de crise, aliada à incerteza do seu plano de soerguimento, agrava sobremaneira o risco de insucesso da respectiva contratação administrativa.

Mas, também nesse caso, não custa lembrar ser absolutamente imprescindível que a Administração Pública, ao elaborar o instrumento convocatório, que exclui a participação de empresas em recuperação judicial, fundamente de forma clara e detalhada sua decisão.

Seguindo a mesma lógica da Lei nº 8.666/1993, a promulgação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não pôs fim à discussão, nada dispondo sobre recuperação judicial na fase de habilitação. Tudo leva a crer que se trata de um silêncio eloquente e, diante da lacuna normativa, quis o legislador, confessadamente, conferir ao Poder Judiciário o ônus de decidir no caso em concreto.

O vácuo normativo existente na Lei nº 14.133/2021 potencializa uma insegurança jurídica, porquanto os critérios que são esquadrinhados pela jurisprudência, inclusive pelos julgados do Tribunal de Contas da União, oportunizam uma amplíssima margem de discricionariedade à Administração Pública, seja quando do momento de divulgação do edital de licitação, seja quando do julgamento das propostas.

As críticas sobre a intervenção do Judiciário na tomada das decisões administrativas são cada vez mais severas. Entretanto, nesse específico caso, o legislador claramente entendeu que a solução a ser adotada pelo Judiciário será sempre a melhor, a depender da formulação argumentativa contida nos lenitivos processuais levados ao crivo do julgador.

Por qualquer ângulo interpretativo, a inexistência de regra específica que trate e aborde, abertamente, o tema deságua em insegurança jurídica, delongando o curso do processo licitatório e conferindo ao Judiciário, bem como à própria Administração Pública, uma decisão de natureza extremamente técnico-empresarial.

De rigor, se a Lei nº 14.133/2021 valeu-se dos mais variados julgados do Tribunal de Contas da União, poderia haver adotado, no corpo normativo, o teor desses julgados, bem assim a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Haveria, nesse sentido, não apenas um reforço normativo, mas a galvanização de uma maior segurança jurídica, contornando, no corpo da lei, o que já é comum na praxe jurisprudencial.

Desafortunadamente, a participação de empresas em recuperação judicial em processos de licitação continua sendo um questionamento a ser solucionado. É preciso, pois, temperança e necessária motivação para a correta tomada de decisão por parte da Administração Pública, sob pena de intermitente judicialização.

 


[1] Acórdão 1201/2020, Plenário, rel. min. Vital do Rego.

[2] AREsp 309.867, 1ª Turma, rel. min. Gurgel de Faria.

Autores

  • é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e bacharel em Administração.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!