Opinião

O artigo 28 da Lindb e a resistência do TCU

Autor

  • Thiago Groszewicz Brito

    é advogado consultor jurídico e parecerista na Jacoby Fernandes e Reolon Advogados Associados pós-graduado em Direito Administrativo pelo IDP e em Direito Público e cursa MBA executivo em Economia Gestão e Regulação na FGV.

4 de março de 2022, 6h07

Desde a sua concepção, a Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, encontrou oposição por parte de alguns membros do Tribunal de Contas da União (TCU), que chegaram a pedir o veto integral ao então Presidente da República [1].

A referida norma alterou o Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, conhecido como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb). Alguns dispositivos, é verdade, foram vetados, mas a essência foi mantida, em especial para garantir a segurança jurídica e a eficiência na aplicação do Direito Público.

O presente artigo abordará a resistência do citado órgão de controle, especialmente em aplicar o artigo 28 do Decreto-Lei nº 4.657/1942, introduzido pela lei, bem como demonstrará que não se sustentam os fundamentos jurídicos utilizados pela Corte de Contas para não aplicar a nova regra.

1. Resistência na aplicação da norma
O artigo 28 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 dispõe que "o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro". O Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019, que regulamentou os dispositivos introduzidos pela Lei nº 13.655/2018, em seu artigo 12, § 1º, trouxe o conceito de erro grosseiro, entendendo como "aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia".

Recentemente, em sessão realizada em 17/8/2021, o TCU, por meio do Acórdão nº 11.289/2021-1ª Câmara, reforçou a sua jurisprudência para afastar a aplicação dos dispositivos acima em caso envolvendo dano ao erário, sob o argumento de que o preceito exposto "não atinge os requisitos necessários à responsabilidade financeira pelo débito" [2].

O argumento para tanto foi pormenorizado no voto que guiou o Acórdão 2.391/2018-Plenário [3], em que aquela corte fixou o entendimento de que os prejuízos ao erário permanecem sujeito à comprovação de dolo ou culpa, sem qualquer gradação, como é de praxe no âmbito da responsabilidade aquiliana, inclusive para fins de regresso à Administração Pública, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição [4].

De acordo com o TCU [5], como regra, a legislação civil não faz nenhuma distinção entre os graus de culpa, para fins de reparação do dano. Tenha o agente atuado com culpa grave, leve ou levíssima, existirá a obrigação de indenizar. A única exceção seria quando houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Nesta hipótese, o julgador pode reduzir, equitativamente, a indenização, nos termos do art. 944, parágrafo único, do Código Civil [6].

2. Ato danoso
Inicialmente, destaca-se que o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal dispõe sobre a responsabilidade objetiva do Estado, em que basta a existência de um ato comissivo ou omissivo, um evento danoso e o nexo causal entre ambos para que surja o dever de reparação pelo Poder Público.

É verdade que o referido dispositivo também trata do direito de regresso da Administração Pública em face do agente causador do dano. Exige-se, nesta hipótese, a presença de dolo ou culpa, o que caracteriza a responsabilidade como subjetiva.

Nas lições de José dos Santos Carvalho Filho [7], a responsabilidade extracontratual, também conhecida como aquiliana [8], é aquela que deriva das várias atividades estatais sem qualquer conotação pactual.

Assim, quando se fala de direito de regresso, com fulcro em responsabilidade civil aquiliana, é imprescindível que a Administração Pública demonstre a presença do elemento subjetivo para responsabilizar o agente por eventual dano, entendimento este que vai ao encontro do que dispõe o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal.

Em outras palavras, de uma maneira — artigo 37, § 6º, da Constituição Federal — ou de outra — responsabilidade civil aquiliana —, exige-se a presença ao menos do elemento subjetivo "culpa" para que possa ter início o debate sobre a responsabilização do agente causador de dano.

3. Existência de graus de culpa
Feita essa breve contextualização, cabe ressaltar que, diferentemente do entendimento fixado no Acórdão 2391/2018-Plenário, não é de hoje o entendimento de que existe distinção de graus de culpa, para fins de reparação de dano.

Antes mesmo do advento da Lei nº 13.655/2015, a doutrina já previa a gradação de culpa. Em magistério, o ministro Benjamin Zymler [9] ensina que para responsabilização é imprescindível perseguir quatro etapas, quais sejam: a) existência de irregularidade; b) autoria do ato examinado; c) culpa do agente; e d) o grau de culpa.

Especificamente quanto ao grau de culpa, o jurista explica que é imprescindível que o nível de subjetividade seja representativo, pois não é cabível a apenação quando se estiver diante de culpa leve [10].

A mencionada doutrina já citava como exemplo a flexibilização da responsabilização em casos em que era impossível a adoção de outra conduta por aquele que passou a ser denominado como "homem médio" [11]. A jurisprudência do TCU tradicionalmente segue essa linha [12].

4. O Artigo 28 da Lei nº 13.655/2015
A Lei nº 13.655/2015 foi precedida de pesquisas desenvolvidas pela Sociedade Brasileira de Direito Público em parceria com a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, estudos estes utilizados pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques para elaboração do pré-projeto, ao final endossado pelo senador Antonio Anastasia [13].

De acordo com os mencionados professores, a proposta, entre outras medidas, é neutralizar importantes fatores de distorção da atividade jurídico-decisória pública, entre eles o alto grau de indeterminação de grande parte das normas públicas e a relativa incerteza, inerente ao Direito, quanto ao verdadeiro conteúdo de cada norma [14].

Trazendo as lições para o caso em debate, entende-se que o subjetivismo no conceito de "homem médio" se enquadra exatamente na indeterminação e incerteza acima mencionadas, sendo um dos fatores que deram ensejo à Lei nº 13.655/2018, a qual, por meio do artigo 28 da Lindb, nada mais fez do que senão regulamentar o grau de culpa, considerando como insuscetível de responsabilização os danos causados por decisões e opiniões técnicas sem demonstração de dolo ou erro grosseiro.

Ou seja, a norma considerou "homem médio" aquele que eventualmente falhe, mas sem a intenção — dolo — ou sem grave imprudência, negligência ou imperícia — erro grosseiro. É imperdível que a falha seja perceptível "a olho nu" e o agente a tenha ignorado. Privilegiou-se a velha máxima de que "errar é humano".

5. Código Civil versus Lei nº 13.655
Cumpre ressaltar também que não prospera a tese de que a única forma admitida no ordenamento jurídico para reduzir, equitativamente, a indenização a ser paga pelo autor do dano é aquela prevista no artigo 944, parágrafo único, do Código Civil. A Lei nº 13.655/2015 trouxe um novo fator que deve ser observado, quando da análise da responsabilização de agentes públicos.

No ponto, destaca-se que o Código Civil — Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — e a Lei nº 13.655/2015 são de mesma hierarquia normativa, sendo esta última, além de mais recente, especial frente às regras gerais fixadas no diploma civil, o que torna o disposto no artigo 28 da Lindb de observância obrigatória.

De fato, transitar entre normas de Direito Civil e normas de Direito Público exige cautela, notadamente diante do fato de que o liame que subjuga o agente à competência da Corte de Contas integra o segundo.

Conclusão
O presente artigo buscou trazer breves comentários sobre o entendimento adotado pelo TCU, quanto à aplicação do artigo 28 da Lindb, que impõe a responsabilização do agente público apenas nos casos de dolo ou erro grosseiro. Para aquela Corte de Contas, o citado não atinge os requisitos necessários à responsabilidade financeira pelo débito.

Como visto, os argumentos utilizados para afastar a aplicação do dispositivo acima não se sustentam, pois antes mesmo do advento da Lei nº 13.655/2015, que acrescentou o artigo 28 à Lindb, o entendimento sempre foi no sentido de que há distinção de graus de culpa, a exemplo do afastamento da responsabilidade do que a doutrina e jurisprudência consideram como "homem médio".

O que a Lei nº 13.655/2015 fez foi apenas regulamentar as hipóteses em que o autor do dano tem a sua responsabilização afastada, como forma de conferir segurança ao agente público, inclusive na busca de soluções inovadoras. Em outras palavras, afastou-se a responsabilização daqueles que não atuaram com dolo ou erro grosseiro.

Por fim, destacou-se que não há hierarquia entre a Lei nº 13.655/2015 e o Código Civil, o qual, a bem da verdade, no que tange à responsabilização de agentes públicos, deve deferência aos termos fixados em normas de Direito Público, em especial aos novos preceitos acrescentados à Lindb.


[2] TCU. Processo nº 031.322/2015-8. Acórdão nº 11.289/2021 — 1ª Câmara. Relator: ministro Vital do Rêgo. Julgado em 17/8/2021.

[3] TCU. Processo nº 007.416/2013-0. Acórdão nº 2391/2018 — Plenário. Relator: ministro Benjamim Zymler. Julgado em 17/10/2018.

[4] Constituição. Art. 37. […] § 6º — As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

[5] TCU. Processo nº 007.416/2013-0. Acórdão nº 2391/2018 — Plenário. Relator: ministro Benjamim Zymler. Julgado em 17/10/2018.

[6] Código Civil. Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.

[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 500.

[8] Nesse sentido: DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. Volume 7. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 579.

[9] ZYMLER, Benjamin. Direito Administrativo e Controle. 3ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012, p. 207-210.

[10] Ibidem, p. 210.

[11] Ibidem, p. 207.

[12] Nesse sentido: TCU. Processo nº 006.662/2000-3. Acórdão nº 1.590/2019-Plenário. Relatora: ministra Ana Arraes. Julgado em 10.07.2019.

[13] Justificativa apresentada pelo senador Anastasia no Projeto de Lei do Senado nº 349/2015. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=2919883&ts=1630433024434&disposition=inline. Acesso em: 15/10/2021.

[14] SUNDFELD, Carlos Ari. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Contratações Públicas e Seu Controle. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 278.

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  • é advogado, consultor jurídico e parecerista na Jacoby Fernandes e Reolon Advogados Associados, pós-graduado em Direito Administrativo pelo IDP e em Direito Público e cursa MBA executivo em Economia, Gestão e Regulação na FGV.

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