Opinião

Fórum shopping e propriedade industrial

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3 de março de 2022, 6h07

No ano de 1808 [1] a Real Junta do Commercio, Agricultura e Navegação foi criada e sua sede fixada no Rio de Janeiro, constituindo-se em Órgão que reunia a jurisdição no ambiente comercial com funções administrativas e tipicamente judiciais. No ano seguinte, pelo famoso alvará [2] que criou o sistema de propriedade industrial no Brasil, aquele Órgão passou a reunir, ainda, a função de conceder privilégios de invenção. A transformação nominal do referido ente vinculado ao Poder Executivo ocorreu, novamente, com a criação dos Tribunaes do Commercio, na forma dada pelo Código Comercial de 1850 [3].

Mudou-se o século e a Constituição, saiu-se da monarquia e adveio a República Velha, criou-se a Diretoria Geral da Propriedade Industrial pela pena do Presidente Arthur Bernardes [4], mas a natureza de Órgão vinculado a Ministério do Poder Executivo (bem como a sede de tal serviço público) não se alterou. Cerca de uma década mais tarde, mesmo antes da Constituição de 1934, organizou-se o Departamento Nacional da Propriedade Industrial [5] — vinculado ao Ministério do Trabalho  sendo este sediado no mesmo Rio de Janeiro. Em uma chaga que parece sobreviver às vicissitudes constitucionais e de eras, a doutrina [6] da época já apontava o déficit estrutural e de pessoal do Órgão que, por sua vez, era a causa da elasticidade temporal do trâmite dos processos administrativos [7].

Como é da natureza do direito administrativo, qualquer ato do Órgão de propriedade industrial era passível de impugnação administrativa via recurso hierárquico [8]. Ou seja, os ventos da política tornavam a técnica e a especialização do ente público virtudes relativamente frágeis, já que ao contrário das agências reguladoras, permaneceu sujeito aos caprichos da conveniência e a oportunidade do destinatário da referida modalidade recursal [9].

Em 1970, no meio da segunda ditadura do século XX, pela pena de Emílio Médici, foi outorgada personalidade jurídica (descentralização) ao serviço público antes existente como Órgãos (desconcentração), bem como se alterou a nomenclatura de Departamento para Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Previu-se a extinção do DNPI, a vinculação da nova autarquia ao Ministério da Indústria e Comércio, bem como a remoção do INPI para o "novo" Distrito Federal  já que o Rio de Janeiro deixara de ser a capital do país uma década antes. Há quem diga que o Projeto de Lei 2.297/70 [10] (que deu origem a Lei 5.648/1970) fora minutado há mais de uma década da data de apresentação e, por isso, referia-se ao Distrito Federal como a antiga capital do Estado da Guanabara. Outros creem que o PL se referiu ao Distrito Federal intencionando cuidar, mesmo, de Brasília, dentro da estratégia da cúpula militar de gerar mais aglutinação de poder político na nova capital.

Entretanto, a realidade denota e conota que o Inpi é, factualmentesediado no mesmo Centro da Cidade que antes abrigou a a) Real Junta do Commércio, b) os Tribunaes do Comércio, c) a Directoria Geral da Propriedade Industrial, e d) o Departamento Nacional da Propriedade Industrial: a metrópole de São Sebastião do Rio de Janeiro. 172 anos de existência como serviço público em terras cariocas geraram uma tradição forte, geográfica e técnica, que Lei nenhuma consegue mudar como se fora o "estalo de um chicote". Renato Manfredini Júnior diria que "Mudaram as estações, nada mudou"; ou seja, a eficácia normativa jamais correspondeu a eficácia social neste caso [11].

Em 1996 a Lei de Propriedade Industrial veio a vigorar, no seio de uma série de transformações havidas pela adesão a Organização Mundial de Comércio, e seu anexo que consistiu no Acordo TRIPs. Entre as benquistas novidades da Lei 9.279/96, encontra-se uma faculdade dirigida ao Poder Judiciário de especializar seus juízos, de modo a melhor dirimir contendas que envolvam esta rica e complexa seara dos direitos intelectuais [12]. Estando sediado por tradição (e pela estrutura de pessoal e material) no Rio de Janeiro, e cuidando de autarquia federal, sói ocorrer que qualquer ato administrativo seu que seja impugnado perante o Poder Judiciário carece ser distribuído perante a Justiça Federal [13].


 

 

 

A política de distribuição de competências compartimenta os Juízos Federais em seis regiões [14], sendo que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região acolhe os Órgãos Jurisdicionais Federais que se espraiam pelos entes federativos do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. Ou seja, o TRF-2 é aquele Órgão responsável a dirimir contendas em que o Inpi é parte, exatamente pelo fato de que tal autarquia é sediada na Rua Mayrink Veiga, 9, Centro, Rio de Janeiro [15]. Pela mesma razão, o TRF-2 tratou de fazer uso da faculdade da LPI de especializar Juízos em Propriedade Intelectual, tendo o feito em primeira instância em 1999, e em segunda instância em 2005 [16].

 

Sendo o Brasil um país de dimensões continentais, alguém poderia ventilar que a concentração da especialização em propriedade intelectual, apenas, nos Juízos do TRF-2, significaria a exclusão do acesso à técnica jurisdição para os domiciliados em outros rincões do país. Contudo, com a virtualização dos Juízos e dos Processos, fato é que de qualquer lugar do mundo  incluindo-se as pessoas domiciliadas no exterior  é possível ter amplo acesso ao conteúdo dos processos (sindicabilidade [17] e ampla publicidade de que trata o artigo 93, IX, da CRFB) e do próprio serviço judicial prestado. Não à toa, além de dirimir contendas com partes sediadas alhures ou em solo patrício, desde que impugnem atos praticados pelo Inpi, o TRF-2 contempla a região que recebe o maior acervo processual em relação aos atos da referida autarquia [18].

Com mais de duas décadas de Juízos Especializados em Direitos Intelectuais, nota-se que as decisões judiciais do TRF-2 se tornaram mais céleres (aspecto quantitativo em atenção ao disposto no artigo 5º, LXXVIII, da CRFB), construiu-se jurisprudência em diversas matérias importantes (o que gera segurança jurídica [19] e previsibilidade – na forma do artigo 926 do CPC/2015) e, em geral, é da opinião destes autores que houve uma melhora qualitativa [20] do conteúdo decisório. Na grande maioria das vezes, no TRF-2 decide-se rápido e decide-se bem. As razões para tanto são mesmo intuitivas: se na advocacia é muito raro o profissional que domine, simultaneamente, as prudências previdenciárias, penais, tributárias, de direito civil, processuais, ambientais, culturais, constitucionais, administrativas, de direito internacional público e privado; no Poder Judiciário tal não é corriqueiro. O próprio CNJ  em pesquisa recente  divulgou resultados que amparam as virtudes da especialização dos juízos [21].

Neste contexto, é no mínimo curioso o movimento de partes estrangeiras, em geral, representadas por causídicos sediados no Rio de Janeiro (artigo 217 da LPI [22]), que têm realizado genuíno êxodo dos Juízos Especializados do TRF-2, para levarem suas contendas para Juízos sem especialização, em outras Regiões do País. Mutatis mutandi: a) por melhor e mais culto que seja um clínico geral, se alguém lida com cancro, é imprudente fugir do oncologista; b) se alguém deseja fazer uma cirurgia plástica de cunho estético, é improvável que se busque o açougueiro; c) se se faz necessário ser transportado por formas aeroviárias, a não ser diante de um instinto suicida, é surreal que alguém contrate como piloto alguém que seja  apenas  um craque de flight simulator; ou d) não é provável que o Réu de processo da competência do Tribunal do Júri busque em um advogado  exclusivamente experiente em direito desportivo  que lhe faça a defesa mais técnica.

Neste contexto indaga-se: 1) existe autonomia privada [23] para se "escolher" Juízos menos céleres [24], sem especialização, sem uma longa cultura de julgamento de direitos de propriedade intelectual, despidos da tradição de peritos com doutorado e expertise no setor?; 2) uma demanda, verbi gratia, que cuide do pleito de invalidação de um ato administrativo, ou de compensação por alegada mora do Inpi, que verse sobre uma patente farmacêutica  que trate de câncer, antirretroviral, que envolva enorme compra pública pelo SUS  é contenda de exclusivo interesse do titular? Ainda que as respostas às últimas duas perguntas fossem, hipoteticamente, positivas, a práxis da fuga do Juízo Natural especializado seria de boa-fé (artigo 5º do CPC/2015)?


 

 

 

Nesse cenário, se há uma tradição  na melhor acepção hermenêutica  de formação e estruturação do foro para tratamento da propriedade industrial, deve gerar ao menos perplexidade a crescente tentativa de fuga encampada por agentes do mercado. Vale ressaltar que o conceito de "causa de pedir" é, possivelmente, um dos mais fluídos no direito processual civil, podendo constantemente ser objeto de uso estratégico para fórum shopping.

 

Ocorre que, na maior parte das vezes, a prática de fórum shopping não é claramente visualizada, uma vez que as partes não detêm visão holística ficando adstritas ao caso concreto.

Esse é o busílis do nosso artigo: lançar luzes a uma prática de má-fé processual que tem se expandido. Tanto assim é, que a prática tem sido claramente rejeitada pelos Tribunais Superiores, como se extrai dos precedentes do STF [25] e do STJ [26], que já afirmaram que o forum shopping configura violação da boa-fé objetiva: "(…) A remessa da Ação Anulatória, em tal cenário, resultaria em modificação de competência fora das hipóteses permitidas pelo sistema processual, além de possibilitar a violação da boa-fé objetiva processual pela prática de forum shopping" [27].

Ao que tudo indica, a Real Politik luta contra a realidade [28] sobre a sede do INPI na capital fluminense (ainda que se louve de ficção criada pelo "democrata" Emílio Médici  artigo 1º, da Lei 5.648/70); tenta a fuga das conquistas permitidas pela especialização dos Juízos Federais; receia a estabilidade da jurisprudência; e que investe no contencioso contra a segurança jurídica em busca de uma surpresa injusta [29], apenas pratica a ilegítima estratégia do fórum shopping.

[1] Vide Alvará de 23.08.1808 de Dom João VI. Texto disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/alvara/anterioresa1824/alvara-40225-23-agosto-1808-572289-publicacaooriginal-95398-pe.html.

[2] Vide Alvará de 28.04.1809 de Dom João VI. Texto disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/alvara/anterioresa1824/alvara-40051-28-abril-1809-571629-publicacaooriginal-94774-pe.html

[3] Código Comercial do dia 25.06.1850.

[4] Decreto 16.264 de 19.12.1923.

[5] Decreto 22.989 de 26.07.1933.

[6] RODRIGUES, Clovis Costa. Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Editora Peixoto S.A, 1945, p. 310.

[7] FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. O Estatuto do Estabelecimento e a Empresa Mercantil  Sexto Volume. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 336.

[8] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Volume I  Da propriedade Industrial e do Objeto dos Direitos. 3ª Edição atualizada por Denis Borges Barbosa e Newton Silveira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 103.

[9] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 493.

[10] Curiosamente o sítio virtual da Câmara dos Deputados descreve o projeto como de origem do Legislativo (https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5648-11-dezembro-1970-358727-norma-pl.html), enquanto o Diário do Congresso Nacional do dia 24.09.1970 (disponível em http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD24SET1970.pdf#page=5) narra que a origem do texto fora do Poder Executivo. Talvez a diferença entre os Poderes da República, e suas iniciativas, no ano de 1970 não fosse tão clara.

[11] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª Edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 82-83.

[12] Lei 9.279/96, artigo 241: "artigo 241. Fica o Poder Judiciário autorizado a criar juízos especiais para dirimir questões relativas à propriedade intelectual".

[13] Constituição da República: "artigo 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho".

[14] Vide a Lei 14.226/2021 que criou o TRF-6, segregando o território do Estado de Minas Gerais que, antes, participava, da incidência geográfica do TRF-1.

[15] Informação disponível no sítio oficial da Autarquia: https://www.gov.br/inpi/pt-br.

[16] Vide informações em https://www10.trf2.jus.br/25anos/historico/.

[17]  BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e constitucionalização. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 213.

[18] Conforme pesquisa realizada no sistema EPROC (https://eproc.jfrj.jus.br/eproc/controlador.php?acao=pesquisa_processo_por_nome_parte&hash=0549b5b32e89491e0c7db0bca457ee08), o INPI era parte em 348 demandas, em 361 demandas e 565 demandas, respectivamente, nos anos de 2019, 2020 e 2021.

[19] MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2ª Edição, São Paulo: RT, 2017, p. 24.

[20] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 142.

[21] "De acordo com o que foi apurado nos questionários aplicados, conclui-se que, no tocante à especialização, a maior parte dos magistrados e servidores, 93,2% e 83,7% respectivamente, entendem que há melhora nessas varas em relação às demais unidades judiciárias. Acerca da capacitação e qualificação para realização dos trabalhos, 92,7% de magistrados e 84,4% de servidores entendem haver melhora na compreensão dos temas jurídicos. Verificou-se ainda que, tanto para os magistrados como para os servidores, todos os demais critérios, tais quais, compreensão do funcionamento da vara, divisão dos trabalhos, gestão e integração da equipe e qualidade de vida no trabalho melhoram com a especialização. (…) Diante dos resultados apresentados, verifica-se que a especialização é um modelo de sucesso que se encontra consolidado no Poder Judiciário". BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa de Percepção dos Magistrados, Servidores e Advogados quanto à especialização de Varas por Competência e a Unificação dos Cartórios Judiciais. Resultados disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio-de-unificacao-dos-cartorios_2020-08-25_3.pdf, p. 27 e 28.

[22] Lei 9.279/96: "artigo 217. A pessoa domiciliada no exterior deverá constituir e manter procurador devidamente qualificado e domiciliado no País, com poderes para representá-la administrativa e judicialmente, inclusive para receber citações".

[23] "A autonomia exerce-se em relação aos outros. E exerce-se muito freqüentemente com os outros. Surgem-nos assim as formas de colaboração" FACHIN, Luiz Edson.  Teoria Crítica do Direito Civil. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, p. 145.

[24] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. 2ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2014, p. 151.

[25] A existência de uma "filial" no Rio de Janeiro apenas atrai para a competência aqui exercida as causas que tiverem ligação com a atividade neste local exercida, mormente para que se evite o expediente conhecido no Direito Internacional Privado como forum shopping, ou seja, a escolha do melhor Juízo. (STF, RE 606082/RJ, relatora ministro Cármen Lúcia, j. 16.12.2009)

[26] STJ, Corte Especial, AgInt na SS 2.951/CE, relator ministro Herman Benjamin, j. 4.3.2020, DJe 1.7.2021.

[27] STJ, 1.ª T., AgInt no AREsp 1196503/RJ, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, AgInt no AREsp 1196503/RJ, j. 29.04.2019, DJe 10.05.2019.

[28] "A distinção entre fato e direito é com frequência perdida de vista, e os fato do processo perdem-se em uma indistinta falácia «literária» sobre o direito". TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O Juiz e a Construção dos Fatos. Tradução: Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 54.

[29] HURD, Heidi. O combate moral. Traduzido por Edson Bini e revisão da tradução Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 291.

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