Interesse Público

Experimentação consensual na organização administrativa: contratos de desempenho

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

3 de março de 2022, 9h29

A organização administrativa do Estado em sentido institucional [1] é representada nos livros didáticos como mosaico, mapa ou galáxia administrativa [2]. Essas metáforas são úteis: destacam a composição heterogênea (a pluralidade estrutural) e as relações organizativas de mútua interação entre as unidades do conjunto (a cooperação, a subordinação, a autonomia relativa e o eventual conflito de suas unidades fracionárias, personalizadas ou não).

Spacca
A organização administrativa reúne órgãos submetidos a vínculos hierárquicos e órgãos independentes, de criação legal ou constitucional, assim como entidades sujeitas ao direito público e ao direito privado, ou a regimes jurídicos mistos (em parte público e em parte privado) [3], e envolve um intrincado complexo de relações interorgânicas e interadministrativas [4].

Mas é preciso ir além dessas metáforas, pois elas não são imunes à crítica. Elas descrevem a organização administrativa institucional de forma sincrônica e não diacrônica. Surpreendem a fotografia de um momento, não o filme. Simplificam as estruturas em formas-típicas. Registram relações estruturais estáticas, não transformações e relações dinâmicas no tempo. Pecam por "presentismo" (François Hartog). Algo fica oculto por essas metáforas.

O contrato de desempenho, previsto na Lei 13.934/2019, em vigor a partir de 09.06.2020, pode ajudar a compreender algumas relações organizativas dinâmicas e alertar o olhar para transformações na organização que exigem a observação no tempo, que são perceptíveis apenas à luz de dois momentos, e não são surpreendidas pelo flagrante de um instante.

A organização administrativa pode ser vista sob a perspectiva de uma "ordem no tempo", pois transforma-se: entidades podem ser convertidas por lei em outras, ou fundidas; órgãos podem ter competências transferidas e cindidas, podem perder ou ganhar competências por atos legais ou por atos e fatos jurídicos administrativos previstos em lei. É dizer: a organização administrativa pode ser objeto de experimentação, inclusive por iniciativa de gestores públicos, não devendo ser descrita como simples mapa, mosaico ou galáxia estática de elementos conectados.

Discricionariedade organizatória
O direito administrativo convencional empresta pouca atenção ao tema da discricionariedade administrativa organizatória. Segundo o saber tradicional, a organização administrativa institucional do Estado é um dado, um pressuposto para o gestor, resultado de decisões exclusivas do legislador. Afinal, ressalvada a Constituição, apenas a lei formal pode criar ou extinguir órgãos públicos (artigo 48, XI, CF) e apenas a lei pode criar ou autorizar a criação de entidades públicas (artigo 37, XIX, CF) ou autorizar a criação de suas subsidiárias ou a participação dessas entidades públicas em empresas privadas (artigo 37, XX, CF). Invoca-se ainda a norma geral de liberdade, segundo a qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (artigo 5º, II, CF), norma fundamental que contém a exigência de que a autoridade legítima seja apenas aquela exercida com base legal. O erro é considerar que o universo da organização administrativa se limita a esses temas de estruturação e formação da autoridade e que a disciplina legal ocorre apenas de forma direta e específica, quando há heterogeneidade na disciplina da matéria e um complexo de relações muitíssimo mais abrangente na intimidade da Administração Pública.

A organização administrativa é tema ao mesmo tempo constitucional, legal e administrativo, a convocar e envolver o gestor público, pois ao lado das medidas legislativas indicadas supra (fundamentalmente estruturais) há um expressivo conjunto de decisões referentes à distribuição interna de competências, à estruturação orgânica e à ordenação da força de trabalho e de recursos, à delegação, avocação e repartição de competências no espaço, no tempo e entre os diversos órgãos da estrutura administrativa que não cabem ao legislador detalhar (artigo 84, VI, "a", CF). É também relevante em sede de organização a decisão do gestor de delegar ou não a terceiros a execução de serviços e o exercício de frações da atividade administrativa (artigo 175 e 22, XXVII, CF) ou compartilhar ou mesmo transferir para outras administrações estrutura, bens e informações, inclusive fiscais (artigo 241 e 37, XXII, in fine, CF). Alguns resumem o conceito de discricionariedade organizatória no de "discricionariedade de programação do trabalho administrativo e de alocação de recursos" [5]

A organização administrativa compreende, em especial, (a) técnicas de criação, modificação e extinção de pessoas jurídicas e órgãos despersonalizados; (b) técnicas de distribuição funcional de competências e de solução de conflitos de competência; (c) técnicas de coordenação, supervisão e direção; (d) técnicas de controle, avaliação, medição de desempenho e superação de incoerências; (e) técnicas de associação ou colaboração com terceiros ao aparato do Estado, inclusive em ação executiva, a envolver outros sujeitos públicos ou sujeitos privados. Todos esses temas possuem relevância direta para o cidadão, tendo sido superada a concepção que remetia as relações internas a uma "zona não jurídica" de auto-organização.

Uma organização administrativa institucional policêntrica, afastada de modelos piramidais simplificados, desafiada a oferecer serviços essenciais e segurança jurídica a uma sociedade hipercomplexa e conflitiva, não admite a supremacia absoluta do vínculo hierárquico e do modelo departamental de condução linear das decisões administrativas. Pretende ser flexível, apoiada em instâncias de participação e aconselhamento representativas (artigo 10, CF), suscitar colaboração e cooperação, manejar incentivos e não apenas ordens e sujeições unilaterais e executórias.

Como muito bem sintetizou Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez há décadas:

"El acto unilateral asegura eficazmente la sumisión, pero es incapaz de suscitar el entusiasmo y el deseo de colaboración. La proliferacón de conciertos económicos, contratos-programa, convenios fiscales, contratos o ‘cuasicontratos’, según la imprecisa y equivoca terminología francesa; aún imperfectamente manejados, acierta, pues, a expresar una necesidad real; la Administración, hecha para mandar, necesita imperiosamente negociar, una vez descubierto que con poder mandar no basta en muchos casos." [6]

Além da necessidade de concertação, há também múltiplos conflitos a resolver no âmbito interno da própria Administração. Não por acaso proliferam câmaras de conciliação e arbitragem administrativas [7],  que tentam reduzir a litigância intragovernamental (estudada com ampla casuística por Arnaldo Godoy) [8], prova incontornável de que a unidade hierárquica coerente da Administração, mesmo da Administração direta, em grande medida padece de irrealismo institucional.

No Brasil, a complexidade da organização administrativa direta tem matriz na própria Constituição, que reconheceu autonomia administrativa, financeira e até iniciativa legislativa a órgãos administrativos sem personalidade jurídica, que amiúde contendem com a Administração Central, a exemplo do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos Tribunais de Contas.[9] Esses órgãos — e outros, como o CNMP e o CNJ — já tiveram reconhecida a possibilidade de invocar "direito-função" para postular diretamente em juízo (portanto, com personalidade judiciária)[10] contra atos de outros órgãos, inclusive atos do presidente da República, quando "entendam praticados com usurpação de sua própria competência constitucional" (STF, MS 21239, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgamento 05/06/1991, DJ 23-04-1993).

É certo que os órgãos são unidades de atuação jurídica despersonalizadas (artigo 1º, §2º, I, da Lei nº 9.784/1999). Não são pessoas jurídicas e, portanto, não possuem aptidão genérica para direitos, deveres e obrigações, mas são sujeitos de direito e, como tais, gozam de aptidão limitada ou parcial para direitos, deveres e obrigações [11].  O reconhecimento da capacidade jurídica parcial dos órgãos despersonalizados não deve ser contido no conceito de personalidade judiciária (capacidade para estar em juízo), sendo aplicável também ao âmbito da organização e dos processos administrativos (capacidade orgânica ou interna), pois os órgãos são "termo de relação jurídica" (Lourival Vilanova) [12], servem de centro de imputação de normas administrativas, base essencial para a doutrina e a disciplina normativa das relações interorgânicas. A aceitação de órgãos administrativos como sujeitos de direito, parte em relações interorgânicas e parte em relações processuais administrativas é, ao contrário de surpreendente tolice, algo hoje absolutamente trivial no direito comparado e na doutrina administrativa internacional. [13]

É no âmbito das relações interorgânicas e das relações interadministrativas que o exercício da discricionariedade organizatória recebe destaque. Normas podem atribuir a administradores competência discricionária mediante a previsão de alternativas para atuar ou deixar de atuar em face de certas situações de fato, a exemplo da possibilidade de delegar ou não delegar competências administrativas a autoridades subordinadas ou não subordinadas hierarquicamente (artigo 12, Lei 9784/1999);  podem estabelecer a obrigação de atuação e prossecução de determinado fim com a eleição de um entre vários meios admitidos, a exemplo da supervisão unilateral imediata ou a adoção de uma programação de supervisão mediante contrato de desempenho (artigo 2º, Lei 13.934/2019); ou, simplesmente, podem conferir competência para o gestor descentralizar a execução de atividades para atender aos fins da Administração, sem detalhamento ou especificação de forma ou meio (v.g., artigo 34, Lei 13.848/2019), entre muitos outros modos de programação normativa de margens de apreciação e deliberação contextual em matéria de organização. É sobre o segundo domínio, o de eleição consensual e experimental de decisão organizatória previamente disciplinada, que cuidará o tópico seguinte.

Contrato de desempenho
A Lei 13.934/2019 instituiu via alternativa de realização da supervisão sobre entidades personalizadas instrumentais da administração indireta autárquica e de controle sobre órgãos despersonalizados na União.

A norma regulamenta o contrato referido no § 8º do artigo 37 da Constituição Federal, denominando-o de "contrato de desempenho". A origem parlamentar da Lei restringiu o seu alcance e utilidade [14], mas ela ainda assim merece atenção e emprego, conquanto experimental e controlado.

O contrato de desempenho exprime modo de exercício da autoridade pela via da consensualidade. Programa-se e parametriza-se o controle com a participação e adesão do controlado, disso decorrendo redução da discricionariedade por parte do controlador e oferta de fruição de benefícios para a entidade ou órgão controlado enquanto vigente o vínculo.

Busca-se suscitar o entusiasmo e o desejo de colaboração, de que nos falava Enterría e Ramón Fernandez, já referidos, mas igualmente reduzir a assimetria de informação que usualmente distingue os órgãos e entidades executivas e os órgãos de planejamento e supervisão.

Na estrita definição legal, "contrato de desempenho é o acordo celebrado entre o órgão ou entidade supervisora e o órgão ou entidade supervisionada, por meio de seus administradores, para o estabelecimento de metas de desempenho do supervisionado, com os respectivos prazos de execução e indicadores de qualidade, tendo como contrapartida a concessão de flexibilidades ou autonomias especiais". (artigo 2º da Lei 13.934/2019).

Essa definição abrangente é complementada por outra mais específica e técnica:

"O contrato de desempenho constitui, para o supervisor, forma de autovinculação e, para o supervisionado, condição para a fruição das flexibilidades ou autonomias especiais." (artigo 3º da Lei 13.934/2019).

Trata-se de mecanismo engenhoso de enquadrar órgãos e entidades em regime jurídico especial, previamente estabelecido em lei e normas regulamentares, desde que atendidas exigências de desempenho parametrizadas adredemente, segundo prazos acordados, estimulando a melhoria dos resultados a serem entregues pelo supervisionado e o aperfeiçoamento do próprio exercício da competência de controle.

Em julho de 2021, foi assinado o primeiro contrato de desempenho na União, sob a disciplina da Lei 13.934/2019, envolvendo a Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia (Sepec/ME) e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro).  O contrato assinado indica objetivos a serem alcançados pelo Inmetro no período de 2021 a 2023, além de 10 indicadores, sendo três de efetividade, três de eficácia e quatro de eficiência. A supervisão do instrumento será de responsabilidade da Comissão de Orientação, Acompanhamento e Avaliação da Sepec/ME. O contrato de desempenho do Inmetro segue a linha evolutiva dos contratos de gestão endógenos ou internos que a entidade vinha assinando nos últimos anos.

Resta acompanhar o cumprimento desta primeira experiência de aplicação do novo diploma legal.  Temos tradição de controle documental e legalista, despreocupado com a entrega de resultados efetivos ao cidadão. Para aferir desempenho é preciso informação, determinação precisa do grau em que o resultado alcançado difere do programado, considerados os meios, os indicadores e os prazos de realização. Nada disso é efetivamente viável a partir de planejamentos abstratos de cúpula, sem a integração de informações e vontades dos dois polos da relação de controle, e sem a presença de incentivos a assunção específica de responsabilidades.

NOTAS
[1] Em sentido funcional, a organização administrativa abrange sujeitos estatais e sujeitos externos ao aparato do Estado, em regra de direito privado, porém que realizam funções administrativas por delegação (v.g, concessionários ou permissionários) ou por colaboração (vg., entidades do terceiro setor). Neste artigo cuidaremos da organização administrativa exclusivamente em sentido institucional, interno e orgânico.

[2] PASTOR, Juan A. Santamaria.  Principios de Derecho Administrativo General, Vo. 1, 1a. Ed. Madrid: Iustel, 2004, p. 390.

[3]  Cf. ESTONINHO, Maria João.  A Fuga para o direito Privado: contributo para o estudo da atividade de direito privado da Administração Pública. Coimbra, Almedina, 1996, p. 29-96.

[4]  Sobre o tema, cf. MODESTO, Paulo. A Hora e a Vez das Relações Interorgânicas. Rev. Colunistas de Direito do Estado, 2016, n.296, disponível em https://bit.ly/rel-interorganicas Ampliar em: Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa. In: MODESTO, Paulo (Org.). Nova organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.113-169, disponível em https://www.academia.edu/45494341

[5] GONÇALVES, Pedro. Manual de Direito Administrativo. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 2019, p. 290.

[6] GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNANDEZ, Tomas-Ramon. Curso de derecho administrativo.  Madrid:Civitas, 1998. t. I, p. 668.

[7]  A Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal – CCAF foi instituída pelo Ato Regimental n° 05, de 27.09. 2007, como unidade da Consultoria-Geral da União. Com o incentivo do Art. 32, da Lei 13.140/2015, a experiência tem sido adotada em vários Estados (Goiás, Minas Gerais, Alagoas, entre outros).

 [8]  Cf. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Domesticando o Leviatã: litigância intragovernamental e presidencialismo de articulação institucional. Brasília: edição do autor, 2013, 380p.

 [9] Cf. ACO 1218 AgR, rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julg. 25/08/2015, DJe-186, 17-09-2015.

 [10] Cf., entre muitos, ADI 1557, rel. min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ 18.06.2004; RE 595176 AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa,  Segunda Turma, julg. 31/08/2010, DJe-235, 03-12-2010; ADI 5275, rel.  Alexandre De Moraes, Tribunal Pleno, julg. 11/10/2018, DJe-230, 26-10-2018.

[11] SILVA, Claudio Henrique Ribeiro da. Apontamentos para uma teoria dos entes despersonalizados.  Jus Navigandi, n. 809, 20 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7312; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia: 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 125-126.

[12] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 2. ed. São Paulo: RT, 1989, p.194

[13] Entre muitos, cf. LEITÃO, Alexandra. Contratos interadministrativos. Coimbra: Almedina, 2011, p. 30-32; SANTAMARIA PASTOR, Juan Afonso. La teoría del órgano en el Derecho Administrativo. REDA, nº 40-41, 1984, p. 43-86; MOREIRA, Vital. Administração autónoma e associações públicas. Coimbra: Coimbra Ed, 1997. p. 273-275; MAURER, Hartmut. Droit Administratif Allemand. Trad. Michel Fromont. Paris; L.G.d.J, 1995, p.38-39; FODERARO, Salvatore. Personalità interorganica. 2. ed. Pádua: CEDAM, 1957; TREVIJANO FOS, J. A. GARCÍA. Tratado de Derecho Administrativo, t. II vol. I, 2.ª ed., Madrid, 1971, pág. 193 e seg; GIANNINI, Massimo Severo. Diritto amministrativo. Milão: Giuffrè, 1970, vol.1, p. 113 e segs.

[14] Ver MODESTO, Paulo. Contrato de Desempenho e Organização Administrativa. ConJur: 19.12.2019, disponível em https://www.academia.edu/41817236

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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