Opinião

ADI nº 4.980/DF: uma questão de política criminal-tributária

Autores

  • Robson Maia Lins

    é advogado consultor e parecerista na área tributária conselheiro da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE) membro do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP) membro do conselho consultivo do Instituto Potiguar de Direito Tributário (IPDT) professor dos programas de graduação e pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor do Mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) professor Conferencista da Especialização do Ibet doutor em Direito Tributário na PUC-SP. mestre em Direito Tributário na PUC-SP e graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

  • Pablo Gurgel Fernandes

    é advogado com atuação na área tributária membro do comitê jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (Fbasd) diretor-auxiliar do IPDT professor assistente no mestrado em Direito Tributário do Ibet orientador de monografias e professor seminarista do curso de especialização em Direito Tributário do Ibet doutorando em Direito Tributário na PUC-SP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pelo Ibet e graduado pela UFRN.

1 de março de 2022, 17h19

Para a pauta plenária do dia 10 de março, o Supremo Tribunal Federal incluiu o início do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.980/DF, por intermédio da qual a Procuradoria-Geral da República (PGR) pretendeu, de uma perspectiva pragmática, a antecipação temporal de envio da representação fiscal para fins penais, "no que se refere aos crimes formais, especialmente o de apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A, CP)", posto que, em sua óptica, "consumam-se independentemente do exaurimento da esfera administrativa".

Confessamos, porém, que a leitura das peças processuais respectivas despertou em nós múltiplas inquietações, a respeito das quais desejaríamos mesmo vivenciar maiores debates legislativos, aprofundados, acurados, interdisciplinares e plurais.

Não nos parece profícuo continuar depositando expectativas em provimentos jurisdicionais que funcionem como sucedâneo de uma genuína reforma legislativa. Afinal, a partir de decisões pontuais não se pode esperar conformações sistemáticas, que confiram maior harmonia aos pontos fronteira, intersecção ou superposição existentes entre os ramos do direito positivo concretamente envolvidos.

Nas últimas décadas, a comunidade jurídica experienciou uma sucessão de pronunciamentos judiciais, ora aguardados com esperança, ora encarados como soluções definitivas. Entretanto, aquilo que o tempo evidenciou foi a substituição de velhos embates por novas divergências interpretativas.

Considerando o elevado nível de complexidade da legislação tributária, que não raras vezes suscita dissidências hermenêuticas inconciliáveis e sempre renovadas (por variadas e difusas alterações normativas), causa-nos espécie que, até os dias atuais, o Parquet pretenda avocar para si — e logo pela via da jurisdição constitucional — tarefas que melhor se coadunam com a competência dos agentes públicos que integram os órgãos de fiscalização e julgamento da Administração Tributária, dotados de maior conhecimento e aparato tecnológico para examinar lançamentos contábeis, analisar o cumprimento de deveres jurídico-tributários e afirmar a existência das infrações fiscais erigidas pelo Direito como núcleo de específicas hipóteses penais incriminadoras.

Voltando-nos novamente à ADI nº 4.980/DF, alguns dos principais argumentos deduzidos pelo legitimado nos inspiraram reflexões, ora partilhadas.

Na óptica da PGR, relativamente aos crimes tributários de natureza formal, afigurar-se-ia inconstitucional a regra da oferta de notitia criminis pelo Fisco tão somente após o processo administrativo fiscal se encerrar, por "favorecer a impunidade das condutas criminosas" e ofender o "princípio da proporcionalidade, sob a perspectiva da proteção deficiente".

Contudo, não poderíamos mesmo falar em proteção insuficiente em matéria tributária quando: a) a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 se absteve de lhe cominar algum mandamento específico de criminalização inobservado [1]; b) já vigoram inúmeras outras consequências negativas, de ordem material e processual, cominadas pelo sistema jurídico em prejuízo do sujeito que infringe a legislação tributária [2]; e c) há décadas conferiu-se à satisfação do crédito tributário repercussões sensíveis sobre a punibilidade do crime tributário correlato, ao ponto de parcelamentos lhe suspenderem e pagamentos lhe extinguirem [3].

O Ministério Público também afirmou que o condicionamento do "envio da comunicação formal da prática delitiva ao prévio exaurimento da questão tributária administrativa" iria de encontro à "função ético-social do tributo que demanda proteção pelo Direito Penal".

A esse respeito, entretanto, recordamos do pensamento externado pelo então ministro Sepúlveda Pertence, quando, por ocasião de sua participação no julgamento do Habeas Corpus nº 81.611/SP, pontificou que "à efetiva repressão penal dos crimes contra a ordem tributária, na lei vigente, não se podem atribuir inspirações éticas", dado seu "significado moralmente neutro de técnica auxiliar da arrecadação" e caráter de "reforço de cobrança".

Naquela mesma oportunidade, o então ministro Nelson Jobim rememorou que desde a segunda metade do século passado a "vinculação desses ilícitos de natureza fiscal sempre estiveram vinculados à política econômica do governo, ou seja, transformaram-se em instrumento de arrecadação".

E durante os debates plenários que culminaram com a edição da SV nº 24 do STF, foi a vez de o ministro Dias Toffoli obtemperar:

"Podemos divergir dessa política, mas, como julgadores, nós não podemos refazê-la. (…) É uma política tributária, sem abrir mão do tipo penal. O tipo penal incidirá no momento em que o cidadão contribuinte olvidar do seu pagamento. Podemos concordar ou discordar, mas isto é o que está na lei. (…) Nesse sentido há uma legislação, essa legislação estabeleceu uma política tributária, e o Estado, ao perseguir cidadãos que não têm lançamento tributário firmado pela Fazenda Pública, está vendo crime onde não o há".

Prosseguindo, o MP ainda acresceu que a eficácia de sua atuação ficaria "comprometida pela demora no envio das informações pelos agentes fiscais", pois a obrigação de "aguardar o trâmite administrativo" postergaria o "exercício de punir estatal" e aumentaria a "probabilidade de já restar ultimada a prescrição", tornando "insuficiente a defesa do funcionamento do sistema tributário constitucionalmente exigida".

Não se pode perder de vista, todavia, que o prazo prescricional penal é proporcional ao tamanho da pena cominada e esta, a seu turno, é fixada segundo valoração legislativa a respeito dos níveis de reprovabilidade e lesividade sociais das condutas tipificadas. Ademais disso, o Poder Legislativo poderia reduzir a probabilidade de consumação da prescrição, ao menos para casos tais, se: 1) vinculasse o termo a quo de sua contagem ou a fluência de seu cômputo ao deslinde do processo administrativo fiscal correlato; e/ou 2) reformulasse a legislação adjetiva, de modo a imprimir maior celeridade aos feitos submetidos ao contencioso administrativo tributário.

Por fim, uma das propostas de solução idealizadas pela PGR, e ventiladas no processo de controle abstrato em comento, foi a de "atribuir interpretação extensiva ao artigo 93 do CPP para admitir a possibilidade de suspensão do processo criminal, uma vez que a lei atribuiu à administração função atípica jurisdicional no que diz respeito à constituição do crédito tributário". Dessa forma, "se já houve a instauração de inquérito, ou o oferecimento de denúncia, em sobrevindo a desconstituição do lançamento, haverá o respectivo trancamento".

No ponto, a tônica simplista nos causou espanto!

Não raras vezes, a denúncia ministerial se limita à transcrição ou síntese da autuação fiscal, cuja defesa administrativa é gratuita, decorre do exercício do direito de petição, suspende automaticamente a exigibilidade dos créditos tributários (artigos 5º, incisos XXXIV, alínea "a", e LV, da CRFB/88 e 151, inciso III, do CTN), além de se apresentar como uma oportunidade mais econômica de exercício da autotutela estatal (artigo 37, caput, da CRFB/88, c/c as Súmulas nºs 346 e 473 do STF) e apta a reduzir o volume da litigiosidade judicial.

A ansiedade por antecipar a persecução penal inevitavelmente desaguará em denúncias prematuras, que a posteriori se mostrarão infundadas, e ao vilipêndio do status dignitatis do cidadão. Lembremos: a) "ser réu da ação penal já é uma pena", como observou o então ministro Nelson Jobim, durante os debates de julgamento do paradigmático Habeas Corpus nº 77.002/RJ; e b) como atentava Francesco Carnelutti, "apenas com o surgimento da suspeita, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são inquiridos, examinados, isso na presença de todo mundo. O indivíduo, dessa maneira, é feito em pedaços" [4].

E quase nenhuma atenção foi dispendida à outra face da moeda, qual seja, a prática do crime excesso de exação (artigo 316, §1º, do CP), que atualmente pode ocasionar imensuráveis prejuízos à sujeitos de direito, além de dar ensejo à abertura de inquéritos policiais desnecessários e — principalmente, frise-se — ampliar a probabilidade da oferta de denúncias penais infundadas.

Por tudo, a comunidade jurídica precisa voltar suas atenções ao julgamento que se avizinha e doravante acompanhar os próximos capítulos do Projeto de Lei do Senado nº 236/2012, que visa a introduzir um novo Código Penal e, em matéria de crimes contra a ordem tributária, já recebeu pelo menos três propostas bem definidas e com filosofias políticas muito distintas.


[1] Diverso era o contexto jurídico da questão afeta à criminalização da homofobia, julgada na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão — ADO nº 26/DF, da relatoria do então ministro Celso de Mello.

[2] Exemplificativamente, fazemos alusão à: multas, arrolamento de bens e direitos, inscrição em cadastros públicos e privados de inadimplentes, protesto de certidão de dívida ativa, averbação pré-executória, negativa de certidão de regularidade fiscal, inviabilização de participação em certame licitatório, rescisão de contrato administrativo, exclusão de regime tributário mais benéfico, submissão à regime diferenciado de fiscalização e cobrança, declaração de inaptidão ou inidoneidade, medida cautelar fiscal, ação de execução fiscal, declaração de ineficácia por fraude à execução, penhora e expropriação e compensação de ofício.

[3] Cf. Artigo 11, §1º, da Lei nº 4.357/1964, artigo 2º da Lei nº 4.729/1965, artigo 18 do Decreto-Lei nº 157/1967, artigo 2º do Decreto-Lei nº 326/1967, artigo 2º do Decreto-Lei nº 326/1967, artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.060/1969, artigo 1º, §3º, do Decreto-Lei nº 1.893/1981, artigo 1º, §4º, da Lei nº 1.951/1982, artigo 24, §3º, do Decreto-Lei nº 2.303/1986, artigo 1º, §4º, do Decreto-Lei nº 2.331/1987, artigo 14 da Lei nº 8.137/1990, artigo 98 da Lei nº 8.383/1991, artigo 34 da Lei nº 9.249/1995, artigo 15, §3º, da Lei nº 9.964/2000, artigo 9º, §2º, da Lei nº 10.684/2003, artigo 69 da Lei nº 11.941/2009 e artigo 6º da Lei nº 12.382/2011.

[4] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 3ª ed. Campinas: Russell Editores, 2009. P. 54-55.

Autores

  • é advogado, consultor e parecerista na área tributária, conselheiro da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), membro do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP), membro do Conselho Consultivo do Instituto Potiguar de Direito Tributário (IPDT), professor dos programas de graduação e pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor do mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor conferencista da especialização do Ibet, doutor em Direito Tributário na PUC-SP, mestre em Direito Tributário na PUC-SP e graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

  • é advogado com atuação na área tributária, membro do Comitê Jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (Fbasd), diretor-Auxiliar do IPDT, professor assistente no mestrado em Direito Tributário do Ibet, orientador de monografias e professor seminarista do curso de especialização em Direito Tributário do Ibet, doutorando em Direito Tributário na PUC-SP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, especialista em Direito Tributário pelo Ibet e graduado pela UFRN.

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