Opinião

Busca domiciliar: novos standards do STJ e superação da Súmula nº 70 do TJ-RJ 

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30 de maio de 2022, 16h02

O ingresso de policiais em domicílio alheio para efetuar prisões e buscas, sem mandado judicial, é tema que já gerou [1] e continua gerando considerável repercussão na jurisprudência brasileira. Há cerca de um ano, julgou-se um Habeas Corpus [2] no Superior Tribunal de Justiça (STJ), impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, no qual foram fixados importantes standards probatórios sobre esta questão.  

Posteriormente, novos julgados do STJ trataram sobre o tema [3], destacando-se o recente informativo nº 731 daquela Corte, que trouxe à baila a questão da ilicitude das provas colhidas em domicílio com desvio de finalidade [4]. O avanço da jurisprudência neste último ano, no que se refere à salvaguarda do direito à inviolabilidade do domicílio [5] e outros que lhe são correlatos, é notável.  

De antemão, vê-se que foi conferido balizamento mais objetivo  e restritivo — à aferição das "fundadas razões" indicadoras de flagrante delito que, a teor do artigo 5º, XI, da Constituição Federal, e do enunciado fixado no Tema nº 280 do Supremo Tribunal Federal (STF), permitem o ingresso forçado em domicílio. 

Nesses casos, estabeleceu-se que só restará autorizado o ingresso forçado em domicílio em situações nas quais a imprescindibilidade da cessação da prática criminosa desautorize a espera pelo mandado judicial, considerado o "meio ordinário e seguro para o afastamento do direito à inviolabilidade da morada" [6], devendo existir elementos objetivos, seguros e racionais que justifiquem o ingresso na residência.  

Isto é, nem toda situação de flagrância terá o condão de autorizar o ingresso forçado em domicílio, restando tal hipótese restrita aos casos que traduzam "verdadeira urgência". Da mesma forma, somente quando o atraso na abordagem policial possa levar à destruição ou ocultação da prova que se deseja colher é que haverá a justa causa autorizadora da busca domiciliar sem amparo judicial. 

A nosso ver, o endurecimento de tais requisitos foi acertado. Como bem colocado pelo excelentíssimo ministro Rogério Schietti no voto condutor do Habeas Corpus nº 598.051, leading case no tema, se ao magistrado só é possível deferir uma medida cautelar mediante decisão fundamentada, como conferir irrestrita discricionariedade a um servidor de segurança pública para, a partir de uma análise amplamente subjetiva e muitas das vezes enviesada, proceder ao ingresso desautorizado em domicílio alheio? 

Ademais  e aqui chegamos ao ponto nevrálgico deste breve artigo  também foram fixados pelo STJ novos parâmetros exigidos para validação do consentimento do morador quanto à entrada dos policiais em domicílio. 

leading case estabeleceu que, para ser válido, o consentimento voluntário e livre do morador deve ser demonstrado de maneira inequívoca, sendo enfatizada a especial necessidade de comprovação da autorização dada pela pessoa que permitiu o ingresso domiciliar, a qual incumbirá ao Estado [7]

O registro, nesses casos, deverá ser obtido por escrito, por meio das declarações de eventuais testemunhas ou, ainda, por gravação de áudio e vídeo, de sorte que a narrativa dos policiais, considerada isoladamente, não será suficiente para legitimar a abordagem. Por conseguinte, será nula a diligência que não tiver outros meios de corroboração além da palavra dos agentes públicos, eivando de nulidade todas as provas colhidas na ação policial [8]

Ou seja, passa-se a exigir elementos de prova objetivos para a validação do consentimento do morador no caso concreto. Tal exigência, a nosso ver, representa um importante marco no combate a ações policiais arbitrárias e traz maior segurança jurídica para a análise dos casos. 

Pois bem. Como se sabe, no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) ainda vige a Súmula nº 70, a qual dispõe que "o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação". Editada em 2004, a súmula comumente é utilizada como fundamento de condenações criminais no estado  especialmente quando se trata de delitos relacionados a (suposto) tráfico de drogas  o que já até foi constatado em estudo elaborado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro [9].  

Basta, inclusive, uma rápida pesquisa no site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para encontrar decisões condenatórias fundadas em provas colhidas no curso de buscas domiciliares de legalidade questionável [10], mas que, com amparo na súmula em comento, foram validadas com espeque na exacerbada credibilidade conferida às declarações de policiais [11].  

Sucede que, se tal fundamento já se mostrava duvidoso anteriormente [12], fato é que, atualmente, está em franca dissonância com o entendimento vigente no STJ. Como visto, a teor dos novos standards probatórios exigidos pela Corte, são indispensáveis à legitimidade do ingresso policial em domicílio elementos objetivos de comprovação do consentimento do morador, de modo que o sobrevalor conferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro à narrativa dos agentes públicos, nesses casos, não se revela idôneo para dar contornos de legalidade a ações policiais. 

Frise-se: o entendimento do STJ é explícito e cristalino no sentido de que, havendo dúvida quanto à legitimidade do consentimento do morador, o mero fato de policiais defenderem uma determinada versão não é suficiente para que tal dúvida se resolva em favor do Estado [13]. Ou seja, a prova oral produzida pelos policiais, isoladamente, não será suficiente para embasar uma condenação, cabendo ao agente público demonstrar, de maneira inequívoca, a legalidade do consentimento.  

Sendo assim, soa evidente a incompatibilidade do enunciado sumular em questão com a atual  e pacífica  jurisprudência, de modo que, a nosso ver, o entendimento firmado na súmula do TJRJ deve ser completamente abandonado.  

Por fim, considerando que o atual posicionamento do STJ se mostra pacificado, igualmente entende-se que as condenações impostas com base na súmula nº 70 serão passíveis de revisão, considerando que o atual entendimento é, obviamente, benigno aos réus [14].


[1] STJ. RHC nº 118.817/MG, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 10/12/2019, DJe 13/12/2019. REsp nº 1593028/RJ, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 10/03/2020, DJe 17/03/2020; AgRg no REsp nº 1753662/RS, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/09/2018, DJe 28/09/2018; HC nº 527.161/RS, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/11/2019, DJe 29/11/2019. 

[2] STJ. HC nº 598.051/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 02/03/2021, DJe 15/03/2021. 

[3] STJ. REsp nº 1946458/GO, relator ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 19/10/2021, DJe 22/10/2021.56. AgRg no HC nº 641.932/RS, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 26/10/2021, DJe 04/11/2021. HC nº 639.324/SC, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 09/11/2021, DJe 17/11/2021.60. AgRg no RHC nº 149.964/SC, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 09/11/2021, DJe 16/11/2021. 

[4] STJ. HC nº 663.055/MT, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/03/2022, DJe 31/03/2022 

[5] Segundo Alexandre Morais da Rosa, "A vedação ao fishing expedition é entendida como consequência lógica da garantia contra a autoincriminação (privilege against self-incrimination). As origens históricas remontam às cortes eclesiásticas inglesas, em que, após colhido o juramento, procedia-se à investigação de acusações desconhecidas, em verdadeiro ato de pescaria (equivalente ao juízo final). Premida pelo juramento, a vida da pessoa era escrutinada. As garantias constitucionais colocam barreiras às práticas ilegais, embora os agentes oportunistas se valham das 'brechas' legais ou instrumentalização dos institutos processuais". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal. Acesso em: 26 de abril de 2022. 

[6] STJ. HC nº 598.051/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 02/03/2021, DJe 15/03/2021. 

[7] De acordo com Aury Lopes Junior, nos casos em que não haja autorização judicial para a busca domiciliar, e não sendo a hipótese de flagrante delito, deverá existir o consentimento do morador, imprescindivelmente voluntário e livre de qualquer constrangimento. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 805.  

[9] STJ. HC nº 674.139/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15/02/2022, DJe 24/02/2022. A Quinta Turma também compartilha do mesmo entendimento: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/06042021-Turmas-penais-unificam-orientacao-sobre-prova-de-autorizacao-do-morador-para-a-entrada-da-policia.aspx. Acesso em: 19 de abril de 2022. 

[11] Nesse cenário, Borges de Souza Filho enfatiza que "91% das prisões são realizadas com a entrada dos policiais nas residências sem autorização judicial". Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/17280#preview-link1. Acesso em 26 de abril de 2022. 

[12] TJRJ. Apelação Criminal nº 0262346-97.2020.8.19.0001. Desembargadora Maria Sandra Rocha Kayat Direito, Primeira Câmara Criminal, julgado em 22/03/2022. Apelação Criminal nº 0107013-55.2020.8.19.0001, desembargadora Gizelda Leitão Teixeira, 4ª Câmara Criminal, julgado em 08/03/2022. Apelação Criminal nº 0031037-37.2019.8.19.0014. Desembargadora Suely Lopes Magalhães, Oitava Câmara Criminal, julgado em 23/02/2022. Apelação Criminal nº 0032738-81.2013.8.19.0066, desembargadora Mônica Tolledo de Oliveira, Terceira Câmara Criminal, julgado em 22/02/2022. Apelação Criminal nº 0102829-27.2018.8.19.0001, desembargadora Gizelda Leitão Teixeira Quarta Câmara Criminal, julgado em 15/02/2022. 

[13] É oportuno destacar que as críticas dirigidas à súmula nº 70 do TJRJ não são recentes. O verbete já se tornou alvo, inclusive, de uma campanha da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, cujo objetivo era sua revogação, tendo em vista a fragilidade das condenações que tiveram como elemento probatório unicamente os depoimentos de policiais. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=26053. Acesso em: 09 de abril de 2022. Nas palavras de Lima e França, o "verbete em análise revela grave desrespeito ao princípio constitucional do estado de inocência (ou presunção de inocência) e ao princípio acusatório, como critério de valoração da prova, na medida em que se percebe que a aplicação da Súmula 70, como eixo para o julgamento, determina a inversão do ônus da prova, que recai sobre os ombros do acusado, que se vê obrigado a demonstrar que o depoimento dos policiais é imprestável e insuficiente para a condenação". Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r39111.pdf. Acesso em: 26 de abril de 2022. Além disso, nas palavras de Magalhães, "os juízes imaginam que têm um grande poder ao julgar e aplicar a pena, porém, percebe-se que, na verdade, o poder está com o policial que efetua a prisão". Disponível em: https://app.uff.br/riuff/handle/1/23015. Acesso em 26 de abril de 2022. 

[14] STJ. HC nº 616.584/RS, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 30/03/2021, DJe 06/04/2021. 

[15] STJ. RvCr nº 5.627/DF, relator ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 13/10/2021, DJe 22/10/2021. 

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