Opinião

Prisão preventiva: um breve passeio pelos 80 anos do CPP

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30 de maio de 2022, 17h01

"É restringida a aplicação do in dubio pro reo. A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornar-se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal."

Os trechos destacados foram pinçados da exposição de motivos do Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942, e, observadas as alterações promovidas ao longo desses 80 anos de sua vigência, servem de aperitivo e convite para um resumido, despretensioso passeio pelo instituto cautelar da prisão preventiva.

Transitando precipuamente entre os artigos 311 a 313 do CPP e debruçando-se inicialmente sobre sua versão primitiva, cabia prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício ou atendendo a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou por representação da autoridade policial e assim determinada em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal ante existência do crime e indícios suficientes de sua autoria, sendo obrigatória (prisão ex legge) quando ao crime sob análise fosse cominada pena de reclusão por período máximo igual ou superior a dez anos, podendo, para garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, ser decretada se presente qualquer de tais circunstâncias e nas hipóteses de: a) crimes inafiançáveis não alcançados pela prisão obrigatória (igual ou superior a dez anos); b) afiançáveis, tratando-se de indiciado vadio (sobre vadiagem, artigo 59 da Lei de Contravenções Penais  DL nº 3.688/41) ou alguém sobre cuja identidade pairassem dúvidas pendentes de esclarecimento; c) crimes dolosos, embora afiançáveis, observada reincidência específica após sentença com trânsito em julgado. A prisão preventiva obrigatória foi revogada pela lei nº 5.349/67.

Novas possibilidades para admitir decretação da preventiva foram estabelecidas pela lei nº 6.416/77, presente qualquer daquelas circunstâncias que legitimariam sua decretação para crimes dolosos: a) aqueles punidos com reclusão; b) ou com detenção, sendo o indiciado vadio ou sobre cuja identidade pairassem dúvidas; c) tratando-se de réu condenado em crime doloso com sentença transitada em julgado, observando-se prazo a justificar a reincidência.

Às originais circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva somou-se a da garantia da ordem econômica, introduzida pela lei nº 8.884/94. E às hipóteses de decretação então vigentes, acresceu-se através da lei nº 11.340/2006 a de violência doméstica e familiar contra a mulher e crime correspondente praticado nesse contexto, como forma de assegurar a execução de medidas protetivas de urgência.

Permita-se breve intervenção acerca da prisão em flagrante e na sua versão primeira do artigo 310, do CPP. Interessa observar que o agente , fora os casos de incidência de excludentes de criminalidade (equivalência à exclusão de ilicitude) ou sendo opção de crime afiançável, era presumivelmente culpado e, em regra, mantido preso cautelarmente durante toda a ação penal, conjuntura essa mitigada parcialmente e por ocasião da vigência de dispositivo que previa fosse observada pelo juiz a não ocorrência de circunstâncias e hipóteses que autorizariam a decretação de prisão preventiva, conforme lei nº 6.416/77, situação que foi sensivelmente melhorada pela lei nº 12.403/2011 ao estabelecer uma nova ordem dirigida a reestruturar o Título IX  Da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória , o que, a partir da remoçada redação do artigo 310, propiciou ao juiz, diante do auto de prisão em flagrante, opções de: relaxar a prisão, se ilegal; convertê-la em preventiva, se cabível qualquer das circunstâncias e hipóteses aptas a sustentar sua decretação e desde que não caibam outras medidas cautelares diversas da prisão; concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança.

Nascidos assim da lei nº 12.403/2011  que no artigo 311, expandiu a possibilidade de se decretar a preventiva para além da instrução criminal, alcançando o processo penal , os incisos I a III do artigo 313 trouxeram novas hipóteses de decretação da prisão preventiva. E cobra-se aqui destaque ao inciso I ao admiti-la nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos  disposição vocacionada a espécie de regra geral dentro das alternativas daquele artigo, e que tem exposto sua face aparentemente mais vulnerável a sucumbir a decisões capazes de atropelar regras ou tropeçar na busca de um processo penal que se deseja essencialmente democrático , quando, por exemplo, impõe-se segregação cautelar a agentes de crimes culposos, mormente aqueles previstos no Código de Trânsito Brasileiro e observada presença de embriaguez ou de outras substâncias de efeito equivalente; ou a crimes que não excedam o prazo máximo de quatro anos previsto em abstrato, encontrando corriqueiramente na garantia da ordem pública albergue para justificação nas situações ora descritas. Os demais incisos cuidam, respectivamente, de condenado por crime doloso cuja sentença tenha transitado em julgado (com atenção ao prazo caracterizador de reincidência) e, crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, privilegiando aos vulneráveis a garantia de execução de medidas protetivas.

Adequação e necessidade, vinculados à proporcionalidade (ou razoabilidade) ou dela decorrentes, brotaram igualmente da lei nº 12.403/2011 como vetores gerais previstos no artigo 282 do CPP e que, conjugados aos artigos 311 a 313, promoveram avanços significativos ao se projetar desse modo um processo penal, ao menos em tese, que pudesse firmar posição mais ajustada a valores constitucionais como presunção de inocência, ampla defesa, contraditório e ungidos pelo devido processo legal.

As alterações promovidas pela lei nº 13.964/2019, que mantiveram incólumes as circunstâncias e hipóteses de decretação da prisão preventiva estabelecidas pela lei nº 12.403/2011, produziram outras tantas balizas ou fortaleceram as existentes, como: a positivação e consagração da audiência de custódia  introduzida inicialmente e por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça através de sua Resolução nº 213/2015 ; cuidado com a escorreita fundamentação das decisões; da contemporaneidade como elemento cognitivo e condição; da aferição do suposto perigo provocado ao processo pelo estado de liberdade do agente; do não cabimento de atuação ex officio do juiz  fator intrínseco ao artigo 3-A e em cujo conteúdo se consolida a estrutura acusatória do processo penal, cuja eficácia permanece suspensa por decisão do ministro Luiz Fux , dentre outras.

O ajustamento mencionado, orientado a se harmonizar com dispositivos e princípios constitucionais, tem seguido a conta gotas, guiado por esparsas, segmentadas atualizações legislativas, não tendo havido espaço ao longo de mais de três décadas desde a promulgação da Constituição para alimentar-se a ilusão de que coubesse mudar idealmente uma chave seletora imaginária para o modo garantista, simplesmente. E convém lembrar o que revela a prática: as tantas demandas que cobraram recursos nas esferas superiores e a pressionar, diretamente ou não, por mencionadas modificações na legislação processual penal que pudessem açambarcar e fazer eco, reverberar sua força contrária face à rotina de recursos em profusão, em especial reproduzidos em habeas corpus.

E não por acaso, é oportuno citar a iniciativa da Defensoria Pública da União por meio da recente proposta de edição de Súmula Vinculante apresentada ao Supremo Tribunal Federal, conforme enunciado seguinte: "A manutenção da prisão preventiva é incompatível com a fixação de regime de início de cumprimento de pena menos severo que o fechado". E considerando que a jurisprudência do STF tem sido habitualmente desafiada, dentre outros fundamentos daquela argumentação, é mencionado que: "A resistência em aplicar o entendimento firmado no âmbito dessa Suprema Corte acarreta multiplicação de processos e recursos, em especial os habeas corpus, em busca de decisões alinhadas ao posicionamento adotado pelo STF".

Mantidos os pés no chão, ainda que percebido avanço através da atualização legislativa mencionada, sobretudo após 1988, os anseios por uma defesa ancorada em um processo penal democrático patinam na ladeira escorregadia da prática jurídica mencionada ao repercutir em um bom número de decisões judiciais os pensamentos mais afeitos à ideia punitivista, ao jus puniendi por vezes amplificado, que assim teimam em se estreitar a um formato minguado de aplicação do in dubio pro reo, da mesma sorte que flertam com a elasticidade franqueada ao juiz  inclua-se atuação ex officio  para assegurar a efetivação da justiça penal, da forma como introdutoriamente mencionou-se e assim o era no longínquo 1941.

São formatos inconciliáveis com o estado democrático de direito e refletem por si sós a própria exceção, o que, tratando-se de direito processual penal, em regra denota incidente peculiar da defesa. Ou seria apenas e mais uma mera exceção?

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