Opinião

Responsabilidade civil extracontratual da União pela morte causada pela PRF

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27 de maio de 2022, 13h01

"Homem morto em 'câmara de gás' pela PRF foi asfixiado"[1] é a notícia mais debatida nos grandes jornais em circulação.

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A dúvida que fica é: quem deve responder civilmente pelo fato acima mencionado? Quem deve indenizar a família da vítima que tinha uma esposa e um filho? É o que se pretende responder no presente artigo por meio de uma metodologia descritiva e exploratória.

Da responsabilidade extracontratual do Estado
A responsabilidade extracontratual da Administração Pública é aquela que não decorre de um contrato público, tal como o caso mencionado na introdução, onde uma pessoa foi morta em atos praticados por policiais rodoviários federais.

Quanto ao tema, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma:

"Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a obrigação que lhe incube de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos[2]."

Pelo conceito do autor supracitado, podemos perceber que o estudo da Responsabilidade Extracontratual se baseia na análise da responsabilização civil do Poder Público pelos danos decorrentes dos atos praticados pela Administração, sejam atos lícitos ou ilícitos, sejam atos omissivos ou comissivos.

Nesse sentido, a nossa Constituição atual, no parágrafo 6º do artigo 37, afirma:

§6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Assim, conforme o texto constitucional supra, as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos atos praticados pelos seus agentes no exercício da função, ao menos como regra, de forma objetiva, ou seja, independentemente da comprovação de dolo ou culpa,

Desta feita, os atos praticados pelo agente público no exercício da função devem ser imputados ao próprio Poder Público, seja em face da Teoria do Órgão[3], seja em face do princípio da impessoalidade[4], seja em face do princípio da imputação volitiva[5].

Desse modo, quando os policiais rodoviários colocaram uma pessoa com esquizofrenia na mala de um carro com gases e spray de pimenta, quem efetivamente colocou a pessoa da mala do carro foi o Poder Público, no caso, a União, pessoa jurídica de direito público da qual a Polícia Rodoviária Federal é apenas um órgão.

Mas como se dá a responsabilidade civil dos próprios policiais rodoviários? É o que analisaremos no próximo tópico.

Da responsabilidade civil dos policiais rodoviários
O mesmo parágrafo 6º do artigo 37 acima mencionado afirma que ficará "assegurado o direito do regresso nos casos de dolo ou culpa". Desta feita, o dispositivo acima adotou o entendimento de que o funcionário que praticou o ato não responderá de forma objetiva, e sim, tão-somente, se ficar comprovado que agiu com dolo ou culpa.

Desse modo, para que o agente causador do dano seja responsável civilmente urge a necessidade dos seguintes requisitos:

– Comprovação de que agiu com dolo ou culpa e que dessa ação foi gerado um dano;
– A condenação da Administração Pública ao pagamento dos prejuízos decorrentes do referido dano;
– O pagamento efetivo realizado pela Administração, uma vez que não há o que se falar em ressarcimento se não houve prejuízo por parte para essa última.

Assim, ao final, quem vai arcar com o valor da indenização é o autor do dano. Desse modo, surge uma outra indagação: poderia o lesado optar por entrar com a ação indenizatória diretamente contra o agente público que causou o dano?

O Supremo Tribunal Federal entende que não! Segundo nossa Suprema Corte, não seria possível a responsabilização per saltum do servidor público, devendo esse último responder apenas por meio de uma ação de regresso, devido ao fato do mencionado § 6º do artigo 37 da CF prever uma dupla garantia: uma para o lesado, de ser ressarcido e outra para o servidor, de só responder por meio de uma ação de regresso. (vide: Recurso Extraordinário nº 327.904).

Assim, após uma eventual responsabilização da União, os policiais rodoviários federais envolvidos deverão responder por meio de outra ação, onde eles poderão vir a ser condenados caso se comprove a existência de dolo e culpa por parte deles.

Assistindo ao vídeo do acontecido[6], parece claramente existir tanto a intenção como a falta de cuidado dos policiais envolvidos, uma vez que a imagem logo nos remete para uma câmara de gás igual às utilizadas pelos nazistas em Auschwitz para exterminar os judeus[7]. De qualquer forma, ainda assim os policiais envolvidos deverão ter o direito ao contraditório e à ampla defesa para provarem o contrário.

Por fim, frise-se que estamos analisando aqui a responsabilidade civil, devendo os agentes responsáveis responderam também na esfera penal e na esfera administrativa.

Conclusão
A Polícia Rodoviária Federal presta um serviço essencial para o país, porém a atividade da referida instituição deve ser realizada em conformidade com a Constituição, com as leis e com os princípios que regem a Administração Pública, como, por exemplo, o princípio da razoabilidade, da proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana.

O presente trabalho, no entanto, focou no estudo da responsabilidade civil extracontratual pela morte causada pela ação policial e concluiu que cabe à própria União arcar com os valores das indenizações devidas e, sem seguida, cobrar os valores regressivamente dos agentes públicos responsáveis.

A responsabilização do Poder Público e de seus agentes não é uma forma de voltar atrás dos acontecimentos, mas é uma forma de fazer com que eles não se repitam.

REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.


[1]Fonte: https://br.noticias.yahoo.com/homem-morto-em-camara-de-gas-pela-prf-foi-asfixiado-diz-laudo-do-iml-121432050.html

[2]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros. 2004. p.917.

[3]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.684.

[4]ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.71.

[5]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.13.

[6]Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=oOETDVAIJeA

[7]Fonte: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-funcionavam-as-camaras-de-gas-na-2a-guerra-mundial/

Autores

  • é defensor público federal e professor efetivo do IFPE (Instituto Federal de Pernambuco), mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga-Portugal. Especialista em Ciência Política pelo Instituto Prominas.

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