Opinião

Função social do nome de domínio: uma nova função social da propriedade

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27 de maio de 2022, 15h02

Na internet, um domínio é o que existe entre o protocolo de comunicação (http://) e a última barra em um URL, ou seja, um endereço da Web. O domínio se estrutura em três partes que se distinguem por sua hierarquia: [domínios de terceiro nível (por exemplo, www)], [domínios de segundo nível (por exemplo, conjur)] e [domínios de nível superior (por exemplo, .com.br)], isto é, "www.conjur.com.br".

Geralmente, o domínio de segundo nível, que é entendido como "nome de domínio", é um indicativo do produto ou serviço veiculado, o que acaba por relacionar à proteção de marcas. Esse potencial significado pode lhes dar um valor no mercado de nomes de domínio, além de sua utilidade funcional. Como resultado, há titulares de marcas litigando contra proprietários de nomes de domínio que façam referência às suas marcas.

No Brasil, o registro de nomes de domínio na Internet é regido pelo princípio "first come, first served", segundo o qual é concedido o domínio ao primeiro requerente que satisfizer as exigências para o registro e independe da análise mais aprofundada acerca da eventual colisão com marcas ou nomes comerciais registrados anteriormente em outros órgãos, como no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

Todavia, é possível que um titular de signo distintivo (nome empresarial ou marca) conteste o nome de domínio conflitante (similar ou idêntico). Pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o nome de domínio só pode ser cancelado ou transferido se ficar comprovada a má-fé de seu titular no caso concreto, mediante atos antiéticos, oportunistas, direcionados a causar confusão nos consumidores, desvio de clientela, aproveitamento parasitário ou diluição da marca (concorrência desleal) [1].

Fato é que a propriedade do nome de domínio é caraterizada como uma propriedade privada. De forma clássica, a teoria da propriedade privada encontra suporte em Locke, que diz que o ser humano tem o direito de possuir o produto de seu próprio trabalho [2]. No entanto, Aristóteles já se atentava para uma noção social de propriedade, que significa que a propriedade individual é voltada para o uso comum, ou seja, cada cidadão-proprietário deveria se esforçar para estabelecer um uso comum de sua propriedade privada [3].

A teoria de Locke sobre a propriedade pode ser vista como uma expansão da noção social de Aristóteles em relação à propriedade privada. Locke argumentou que os indivíduos poderiam adquirir direitos de propriedade total sobre partes móveis e imóveis [4]. Os termos "móveis" e "imóveis" representam ideias tangíveis e intangíveis (por exemplo, noções, inovações, pensamentos e criações intelectuais), o que acabaria por incluir, contemporaneamente, nomes de domínio.

No entanto, ao contrário de Locke, Aristóteles argumentou que os proprietários de propriedade privada deveriam compartilhá-la [5]. Locke revisou as ideias de Aristóteles sobre compartilhamento e argumentou que os indivíduos deveriam adquirir apenas a propriedade necessária à sua vivência e não deveriam adquirir propriedade de maneira infinita. Assim, Locke aprimorou o conceito de propriedade de Aristóteles e forneceu justificativas para a aplicação do princípio da propriedade privada dos bens aos empreendimentos criativos.

A partir dessa base ideológica, toma forma a "função social da propriedade", termo cunhado pelo jurista francês Léon Duguit, que traduz o comportamento regular do proprietário, exigindo que ele atue numa dimensão na qual realize interesses sociais, sem a eliminação do direito privado do bem que lhe assegure as faculdades de uso, gozo e disposição [6]. Vale dizer que a propriedade mantém-se privada e livremente transmissível, porém detendo finalidade socioeconômica.

Cabe notar que, atualmente, há compra de nomes de domínio apenas para especulação ou para posterior revenda aos verdadeiros titulares da marca, prática que se convencionou chamar de "cibergrilagem" (cybersquatting). Ora, se há um nome de domínio sendo precariamente utilizado, ou seja, não cumprindo sua função social de promoção dos interesses sociais, caberá a desapropriação em prol daqueles que realmente beneficiarão da finalidade socioeconômica do nome de domínio.

Portanto, identifica-se que há uma função social aplicada aos nomes de domínio, uma vez que também há o atendimento do direito coletivo de acesso à informação, o que se traduz no correto direcionamento do usuário ao conteúdo que ele procura. Defende-se que a obrigatoriedade de o nome de domínio deve atender a uma função social que trespassaria o direito de propriedade, já que o nome de domínio registrado seria afetado pelo exercício de sua função social.

Dessa forma, o direito de propriedade do nome de domínio sofreria o escrutínio do artigo 5º, XXIX, da Constituição Federal de 1988, que garante a proteção à propriedade das marcas tendo em vista o interesse social, e do artigo 2º da Lei nº 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial  LPI), que assegura a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social [7].

Nessa lógica, a função social do nome de domínio implica a vedação ao "proprietário do nome de domínio não titular" da marca aludida do exercício de determinadas faculdades, passando a ser obrigado a exercer determinados direitos elementares da propriedade intelectual.  O mesmo raciocínio pode ser usado também para casos de nomes de usuários de redes sociais que foram registrados por pessoas físicas ou jurídicas não detentoras do direito marcário ou autoral. Sabiamente, as redes sociais já contam com ferramentas de verificação da titularidade da conta para mitigar condutas de má-fé de especulação e "cibergrilagem".  

Por fim, conclui-se que a função social dos nomes de domínio 1) fomentaria a proteção e o desenvolvimento do patrimônio intelectual dos devidos titulares de determinada marca, e 2) promoveria a segurança jurídica para a criação de novas marcas, assegurando-lhes a disponibilidade de promoção delas na Internet via nomes de domínio.

[1] Cf. REsp nº 594.404/DF, REsp nº 658.789/RS, REsp 1.238.041/SC, REsp 1.466.212/SP, REsp 1.571.241/MT e REsp 1.804.035/DF.

[2] LOCKE, John. Second Treatise of Government. Hackett Publishing Company, Inc., pp. 16-17, 1980.

[3] KOUTRAS, Nikos. The Concept of Intellectual Property: From Plato's Views to Current Copyright Protection in the Light of Open Access. Journal of the Intellectual and Industrial Property Society of Australia and New Zealand, pp.43-53, 2016.

[4] AZIZOVA, Dilyara. Locke and Hume on Property: A Comparative Study. Liberal Düşünce Dergisi, v. 23, n. 90, p. 100, 2018.

[5] MILLER JR, Fred D. Aristotle on Property Rights. The Society for Ancient Greek Philosophy Newsletter, p. 13, 1986.

[6] BABIE, Paul; VIVEN-WILKSCH, Jessica. Léon Duguit and the Propriété Function Sociale. In: BABIE, Paul; VIVEN-WILKSCH, Jessica. Léon Duguit and the Social Obligation Norm of Property. Singapura: Springer, p. 1-32, 2019.

[7] CASTRO, Carla F. et al. Nomes de Domínio e Propriedade Intelectual: Reflexões sobre Resolução de Controvérsias a partir da Análise Econômica do Direito. Revista Direito GV, v. 18, pp. 10-11, 2022.

Autores

  • é graduando em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) e da Câmara dos Deputados.

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