Opinião

Manejo da ação popular como ferramenta de preservação da Serra do Curral

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

26 de maio de 2022, 12h01

Apesar de adotar um regime econômico capitalista, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) também se ocupa em prescrever que tal ordem deve ser exercida com o objetivo de assegurar a existência digna aos cidadãos, conforme os ditames da justiça social e observados alguns princípios, tais como a função social da propriedade e a proteção do meio ambiente.

Partido Verde
Partido VerdeSerra do Curral, no entorno de BH

À vista disso, o presente artigo se propõe a levantar breve reflexão acerca do controle social (exercido notadamente pelo cidadão, a partir do manejo da ação popular) da atividade administrativa ambiental do Estado brasileiro, tomando como parâmetro a licença ambiental concedida pelo governo do Estado de Minas Gerais que libera a criação de complexo minerador na Serra do Curral, na região metropolitana de Belo Horizonte.

O aval do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) às atividades da Taquaril Mineração S.A (Tamisa) na Serra do Curral, ocorrido no final do mês de abril do corrente ano (através de uma reunião virtual e quando a sala já estava sem a presença de representantes da sociedade civil), é veementemente criticada por ambientalistas, urbanistas, professores, médicos e representantes de comunidades, os quais destacam que além de prejuízos ambientais, o empreendimento pode, também, impactar na saúde dos moradores do entorno da Serra do Curral e, principalmente, na Região Leste da capital do Estado (Belo Horizonte).

Desde então, a Justiça de Minas Gerais recebeu mais de uma dezena de ações populares questionando o aval do Copam à instalação do complexo minerário na Serra do Curral e pugnando pela suspensão dos efeitos da licença dada à Taquaril Mineração S.A. (Tamisa), responsável pelo empreendimento (PIRES, 2022).

O objetivo das ações, regra geral, é barrar a exploração de uma área com vegetação de Mata Atlântica e com tamanho correspondente a cerca de 1,2 mil campos de futebol. Dentre os argumentos que embasam a necessidade de proibir a mineração na Serra do Curral, encontra-se a necessidade de preservação da beleza histórica, riqueza ambiental, valores históricos, socioeconômicos, simbólicos, científicos, estéticos e sociais.

Sob essa ótica, argumenta-se que apesar da defesa de que o empreendimento seria apto a gerar desenvolvimento econômico da região e possibilitar a criação de milhares de postos de trabalho, não há como desconsiderar que a exploração minerária na região poderia também causar irremediável dano ao meio ambiente e ao patrimônio paisagístico.

Nesse sentido, a título de mera ilustração, cabe mencionar a ação popular interposta em face do Estado de Minas Gerais, Vale S/A e Mineração Taquaril S/A, pela vereadora de Belo Horizonte, Duda Salabert Rosa (autos 5020547-95.2002.8.13.0362, em tramite, perante a 5ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte), objetivando a concessão da medida liminar para que seja determinada a paralisação do citado licenciamento ambiental. Na ação, a autora além de apontar ameaça de lesão ao meio ambiente — em virtude da ausência de estudo ambiental suficiente —, ainda alega existência de ilegalidade/vício formal no procedimento de autorização para a instalação do empreendimento. De forma sintetizada, denuncia a autora ter havido condescendência estatal face a instalação de empreendimentos de extração de minério de ferro sem a apresentação de estudos ambientais hábeis a equacionar os riscos representados pelos eventos climáticos extremos, o que, segundo alega a impetrante, constituiria omissão gravíssima e reduziria o princípio da proteção ambiental a nível intolerável. No caso sob exame, inclusive, o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), chegou a conceder parecer favorável à pretensão liminar formulada pela vereadora, acrescentando ter ajuizado ação civil pública (nº 5052107-55.2022.8.13.0024), em virtude de também ter constatado vícios de ordem procedimental e material no procedimento administrativo.

Com isso, é de se notar que além de possibilitar a tutela de direitos metaindividuais, o manejo da ação popular — aliado à mobilização de diversas entidades e associações da sociedade civil — também acaba propiciando o amplo debate e discussão sobre a matéria, a qual, por certo, repercute na esfera jurídica de toda a comunidade local. A ação constitui, ainda, importante forma de controle social de um fenômeno difuso, viabilizando que o próprio cidadão esteja apto a questionar a legalidade e legitimidade de atos estatais que afetam a vida de um número considerável de pessoas.

Por oportuno, note-se que a ação popular constitui-se remédio constitucional, de caráter cívico, que possibilita à qualquer cidadão (indivíduo dotado de capacidade eleitoral ativa — nacional no gozo de seus direitos políticos) o controle da legalidade dos atos administrativos, objetivando, especificamente, conforme preceitua o artigo 5°, LXXIII, da CF/88, a anulação ou declaração de nulidade de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Com referência à cidadania ativa no Estado democrático de Direito, Mário Lúcio Quintão Soares (2017, p. 159) assinala que esta "pressupõe um cidadão político, capaz de influir concretamente na transformação da sociedade e apto a fazer valer suas reivindicações perante os governos".

Por derradeiro, há que se fazer referência, ainda que de forma sucinta, ao fato de que o desenvolvimento sustentável — que pressupõe o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente, em busca da sadia qualidade de vida a todos — encontra fundamento no artigo 170 da CF/88, o qual, de forma expressa, expõe que a ordem econômica deve observar o princípio da defesa do meio ambiente, o qual, frise-se, constitui objeto de tutela da ação constitucional acima mencionada.

Torna-se imperioso, pois, reconhecer a ação popular figura, inegavelmente, como importante instrumento de democracia direta e participação popular, nada obstante se reconheça que no contexto da modernidade prevaleça, nos grandes Estados, a democracia representativa, seja pela extensão dos seus territórios, seja pela imensidão e complexidade da sua população.

A despeito disso, assevera-se, desde logo, que embora se perceba que a política majoritária (conduzida por representantes eleitos) seja um componente vital para a democracia, esta não pode ser tratada apenas em sua dimensão formal, conforme pondera Barroso (2015, p. 4). É de se notar, pois, que seguindo a tendência contemporânea, consistente na busca por legitimidade normativa do poder constituinte (que se encontra intimamente relacionada à noção de democracia), encampada pelo espírito democrático de seu processo de elaboração, a Constituição brasileira, além de afirmar o pluralismo como um dos fundamentos do Estado, nasceu com o objetivo de ampliar a capacidade de participação do povo nas tomadas de decisão por parte deste, recuperando a noção de democracia direta, bem como com a finalidade de fortalecer a democracia representativa, sem se olvidar dos benefícios da democracia participativa.

Logo, em tal contexto, reconhece-se que sem prejuízo da atuação fiscalizatória estatal, tem-se a que a ação popular, também propicia, de forma direta, que o cidadão possa exercer o controle efetivo das políticas ambientais, revelando-se como mecanismo apto a enfrentar injustiças socioambientais e se contrapor à modelos desiguais de desenvolvimento inerentes das sociedades capitalistas.

Nessa vertente, a hipótese formalizada é de que a democracia não se satisfaz apenas com a escolha dos representantes, mas exige também que seja oportunizado ao cidadão o exercício do seu direito-dever de colaborar na fiscalização, monitoramento e controle dos atos administrativos, o que, além de conferir legitimidade aos processos decisórios e à ordem democrática, também contribui para alçar o indivíduo à condição de verdadeiro coautor do exercício do poder político.

REFERÊNCIAS:
BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Jurisdição política e constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 3-34.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Texto constitucional de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais. Diário Oficial da União, Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Acesso em: 15 set. 2021.

PIRES, Silvia. Serra do Curral: mais uma ação popular tenta suspender licença minerária. Jornal Estado de Minas, Meio ambiente, Belo Horizonte, 02 maio 2022. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2022/05/02/interna_gerais,1363646/serra-do-curral-mais-uma-acao-popular-tenta-suspender-licenca-mineraria.shtml>. Acesso em: 24 maio 2022.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da globalização. São Paulo: Atlas, 2008.

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