Opinião

O hit "Coração Cachorro" e o plágio musical no Brasil

Autor

  • Tobias Pereira Klen

    é advogado sócio da Paulo Bornhausen Advocacia mestrando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) bacharel em Direito pela UFSC membro-pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Empresarial da UFSC (Gepde/UFSC) e membro-pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Propriedade Intelectual da UFSC (Nuppi/UFSC).

25 de maio de 2022, 9h02

Em um mundo cada vez mais globalizado e conectado, a transmissão de conteúdos virais passa a ser uma atividade recorrente no dia a dia da sociedade contemporânea. Por meio das redes sociais, músicas e coreografias são compartilhadas rapidamente e seu alcance atinge proporções surpreendentes.

Divulgação
O cantor Avine Vinny fez bastante sucesso com a música "Coração Cachorro"
Divulgação

Nesse contexto é preciso se atentar ao tipo de conteúdo produzido para que se evite a violação do direito de terceiros, fato que pode gerar punições e, consequentemente, prejuízos financeiros.

A propriedade intelectual (PI) é o ramo do Direito responsável por regulamentar as criações do intelecto humano, garantindo ao criador o respectivo reconhecimento e o benefício econômico por sua exploração. A PI divide-se em propriedade industrial e direitos autorais. Enquanto a propriedade industrial se propõe a proteger ativos ligados à atividade inventiva — com aplicação utilitária/técnica — (como marcas, patentes, desenhos indústrias, etc.), os direitos autorais — ou direito de autor — protegem as expressões intelectuais criativas, como obras literárias, artísticas e científicas.

No Brasil, a Constituição conferiu status de direito fundamental ao direito de autor. A legislação autoral nacional sofreu inúmeras alterações com o passar dos anos, até a promulgação da Lei nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais — LDA).

Diferentemente do que ocorre com os ativos da propriedade industrial, a proteção conferida pela LDA independe de registro. Isso significa que em caso de violação um autor terá seus direitos assegurados mesmo sem possuir qualquer tipo de certificação emitida por entidade competente.

O direito autoral é subdividido em dois segmentos indissociáveis: o direito moral e o direito patrimonial de autor. O direito moral consiste na possibilidade do autor reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra e de ser devidamente reconhecido como seu criador. Tais direitos são inalienáveis e irrenunciáveis, sendo que qualquer instrumento que verse sobre sua disposição será nulo. Por seu turno, o direito patrimonial corresponde ao direito de exploração econômica sobre determinada obra, tendo como característica possuir prerrogativas de caráter pecuniário.

O entendimento da sistemática de autoralidade é de suma importância para a compreensão de outra conceituação importante: autoria x titularidade. A autoria está diretamente ligada ao direito de "paternidade" do sobre determinada obra (direito moral). Por outro lado, a titularidade está associada à exploração econômica da obra (direito patrimonial). A LDA indica que ao autor é facultado utilizar, fruir e dispor de sua obra como bem entender, de modo que a propriedade sobre a obra e o respectivo direito de exploração sobre ela pode ser transferido a outrem. Portanto, pode-se dizer que titular é aquele com a capacidade de exercer os direitos de autor (nesse caso, direitos patrimoniais) como se autor fosse.

Por diversas vezes tanto a autoria como a titularidade sobre direitos autorais são motivos de conflito, especialmente no mercado da música. Recentemente o Brasil testemunhou o desenrolar de um caso emblemático nesse sentido.

No final de 2021 foi lançada a canção "Coração Cachorro", interpretada pelos cantores Avine Vinny e Matheus Fernandes [1]. O lançamento foi um sucesso e em pouco mais de um mês a faixa já era a mais tocada do Brasil e uma das mais tocadas no mundo.

Um dos elementos que mais chamou a atenção na música foi um "uivo" que facilmente remetia o ouvinte ao hit "Same Mistake", do britânico James Blunt, lançado em 2007. O alcance de "Coração Cachorro" foi tão grande que não demorou muito para chegar até o próprio James Blunt, que divulgou um vídeo em suas redes sociais curtindo o som brasileiro.

Logo depois da divulgação do referido vídeo, Avine chegou a admitir em entrevista veiculada nacionalmente que, de fato, a música havia sido inspirada na obra de Blunt [2]. Todavia, o cantor indicou que a música não carregava qualquer tipo de plágio (usurpação de autoria), indicando que: "Juridicamente não é plagio. Para ser plágio é preciso 8 compassos para frente. […]". No mesmo sentido se posicionaram Daniel dos Versos, um dos compositores, e a Sony Brasil, editora da música [3].

Ocorre que James Blunt reivindicou formalmente a autoria (e consequentemente a titularidade) da música. A requisição do inglês culminou na celebração de acordo extrajudicial, no qual estabeleceu-se que 20% da autoria da canção (e os respectivos retornos financeiros) seriam de Blunt.

É sabido que o plágio prejudica o autor nos âmbitos moral e patrimonial. Contudo, importa apontar que o conceito de plágio não encontra definição expressa no ordenamento jurídico brasileiro.

Uma vez que não se encontra conceituação legal específica sobre plágio, tal função acabou recaindo para a doutrina e para a jurisprudência. Para especialistas, plagiador é aquele que se apodera do que está sob a proteção da lei autoral, fazendo uso de toda ou apenas fração da obra como se sua fosse.

Por mais que existam diversas discordâncias conceituais entre autores e magistrados, o que parece ser um entendimento comum é o fato de que a identificação de violação de direitos autorais na música não poder ser baseada em elementos objetivos.

Assim sendo, a "regra dos oito compassos" [4] — entendimento popular, do senso comum, e de alguns peritos — que diz que uma música pode ter até oito compassos iguais aos de outra sem que isso configure plágio, não merece (e nem deve) prosperar, pois além de prejudicar o combate a outros diversos tipos de obras oriundas de plágio também pode criar uma barreira criativa, dificultando o surgimento de novas obras.

Para que uma obra seja considerada plágio e, portanto, passível de punição pelos artigo 29 da LDA e 184 do Código Penal, esta precisa carecer de originalidade — sem prejuízo das chamadas obras derivadas (que demandam autorização prévia do autor). Para a doutrina especializada as obras que se utilizam de plágio normalmente usurpam algum trecho marcante da música, um elemento distintivo, como refrão, melodia ou harmonia.

No âmbito do judiciário brasileiro as decisões que tratam da questão normalmente se baseiam em análises periciais, as quais costumam tratar de conceitos técnicos, subjetivos e complexos, fugindo de interpretações objetivas. Dentre as técnicas utilizadas em processos dessa natureza destacam-se: Similaridade e acesso; Testes intrínsecos (como análise opinativa de jurados leigos) e extrínsecos; Teste de paternidade; Teste de abstração; Teste de filtração; e Análise da música como um todo.

Logo, percebe-se que a discricionariedade concedida aos magistrados pela legislação autoral brasileira se mostra positiva e interessante, pois uma vez que existem várias formas de se apurar a ocorrência de plágio em músicas é possível chegar a solução mais adequada para a solução de cada caso.

Entretanto, cumpre ressaltar que as controvérsias envolvendo o tema são complexas e demandam uma análise particular e atenta. Além disso, infelizmente, o Poder Judiciário nacional não possui varas especializadas em PI para lidar com disputas entre particulares. Ainda, a via arbitral costuma ser muito onerosa.

Dessa maneira, nota-se que por vezes a melhor opção para a resolução de divergências envolvendo a matéria consiste na autocomposição, como ocorreu no caso da música "Coração Cachorro", que permite não apenas a preservação do ativo em questão, mas também gera economia de tempo e de recursos às partes ao evitar eventual condenação.


[1] A canção foi escrita por Breno Lucena; Daniel dos Versos; Felipe Love; Fellipe Panda; PG do Carmo; e Riquinho da Firma e produzida por Igor Costa.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RY8YKKBQwVk. Acesso em 10/5/2022.

[4] Compasso consiste na divisão de trechos musicais em séries regulares.

Autores

  • é advogado no escritório Paulo Bornhausen Advocacia, pesquisador na área de Direito Empresarial da UFSC/CNPq, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Empresarial da UFSC (GEPDE/UFSC) e membro do Núcleo de Pesquisa em Propriedade Intelectual da UFSC (NUPPI/UFSC).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!