Embargos Culturais

José Cretella Júnior, o jurista viajante

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

22 de maio de 2022, 8h00

O jurista sorocabano José Cretella Júnior (1920-2015) deixou-nos extensa e qualificada obra. Talvez mais conhecido por seus livros de Direito Administrativo, que são ótimos, marcou-me muito com um curso de Direito romano, que foi o livro que mais vezes li seguidamente, no meu primeiro ano de faculdade. Que saudade desse tempo!

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Cretella Júnior era um humanista. Formado em Letras Clássicas e depois em Direito, escreveu livros que cobriram vários campos do Direito e das humanidades. No conjunto de sua obra, encanta-me muito também um livro de viagens, publicado pelo Círculo do Livro, tema dos Embargos Culturais desta semana.

Trata-se de "Viagem pela Europa e pelo Mundo", um livro singular, diferente, repleto de informações e de inteligentes observações pessoais. Cretella Júnior dedicou o livro à esposa, Agnes, que teria tornado mais bela as viagens que fizeram, como se lê na bela dedicatória. Tenho comigo uma edição de 1988.

Trata-se de um livro de viagens escrito por um erudito, lembrando-nos os livros de viagens de Silveira Bueno, que Cretella Júnior indica como uma referência. Há sessão introdutória sobre os encantos das viagens, o que nos revela um mundo mais tranquilo do que o mundo atual. Parece-me que era mais glamoroso viajarmos antigamente. Quanto às viagens aéreas, vestíamos nossas melhores roupas, o serviço de bordo era impressionante, mesmo para quem viajava na classe econômica (era o meu caso).

Para o autor, logo no primeiro capítulo, há três grandes prazeres na vida: amar, ler e viajar. Cretella Júnior imaginava um ex-libris com essas três palavras (amar, ler, viajar), com os quais celebrava a vida, e com as quais ornamentaria as folhas de rosto dos livros de sua biblioteca, que devia (imagino) ser muito vasta.

O primeiro capítulo de "Viagem pela Europa e pelo Mundo" é um manual para viajantes. Trata um pouco sobre as viagens no Brasil, destacando a incipiente infraestrutura que, em linhas gerais, permanece a mesma. Esse primeiro capítulo trata de temas tão presentes em quem viaja: encomendas de amigos, épocas do ano nas quais se viaja com mais tranquilidade, o que ver, como ver; refere-se, inclusive, a cemitérios interessantes.

Descreve em seguida o que denominava de os pequenos países da Europa: Andorra, Mônaco, Luxemburgo, Liechtenstein, San Marino, Gibraltar e Malta. No passo sobre Malta, lembramo-nos de Eça de Queiróz, também um grande memorialista de viagens, que esteve no Oriente ao ensejo da inauguração do Canal de Suez, passando por Malta, depois de ter andado por Cádiz e Gibraltar, e que também viajou pelo Egito e pela Palestina. Eça colheu material que usou em sua obra-prima, "A relíquia" (minha opinião).

Cretella Júnior parecia ser fascinado por ilhas. Justificava o interesse, registrando que uma ilha pode ser conhecida em toda sua extensão, com possibilidade de que se compreendesse seus pormenores mais pitorescos. Ilhas são geralmente muito pitorescas. Para Cretella Júnior, "viajar pela ilha é paixão, febre, mania. Pode-se ver tudo e de tudo, em pouco tempo. Em volta, o mar; dentro, uma civilização, uma cultura preservada, não obstante a luta perene da terra contra o oceano, contra os invasores e os piratas, contra o mal, o perigo".

Em seguida, descreveu as Ilhas Canárias, as Ilhas Baleares, a Sicília, a Córsega, a Sardenha, a Ilha de Wight, as Ilhas Gregas, o Havaí, as Ilhas Japonesas (inclusive comentando Tóquio), Hong Kong, Macau e Nauru.

Para o autor, as capitais formam um mundo à parte. No entanto, insistiu, quem visita Lisboa não conhece necessariamente Portugal, ou quem visita Londres ou Paris não conhece necessariamente a Inglaterra ou França. Evocou Portugal, tratando de nossas origens em um território que definia como um "jardim à beira-mar plantado". Nesse ponto o autor mencionou Marcelo Caetano, administrativista e homem público português, de quem era particular amigo, e que veio para o Brasil com a queda do regime de Salazar, com o qual o jurista português colaborou. A viva descrição de Portugal vale a leitura desse livro de viagens.

Cretella Júnior também visitou e descreveu demais países europeus. Tenho a impressão de que Espanha, França e Itália deixaram uma impressão mais forte no autor, o que talvez reflita sua intimidade com a cultura clássica, o que incluía o latim. Lembro-me ainda menino tentando estudar latim com um livro de Cretella Júnior, cujo título era "Latim para o Ginásio".

Os capítulos de "Viagem pela Europa e pelo Mundo" são divididos com relação à convergência topográfica e cultural: Inglaterra, Alemanha e Áustria; depois, Suíça, Bélgica e Holanda; em seguida, os países nórdicos e os países do Leste Europeu. Cretella Júnior também descreveu a Grécia, a Turquia, Israel, Tunísia, Senegal, Marrocos, o Quênia, a África do Sul e muitos outros, chegando à China.

O livro de viagens de Cretella Júnior é um retrato de época, e das épocas nas quais viajou e estudou esses países. Livros de viagens (cuja tradição remonta a Heródoto e a Marco Polo) são registros vivos de lugares e tempos. Os olhares refletem os viajantes, e é o que pensamos quando lemos Humboldt ou Richard Francis Burton ou o estranho Gobineau ou a interessante Carmem Prudente, ou autores mais contemporâneos, como Airton Ortiz, cujas crônicas de viagem são deliciosas, ou ainda Hermés Galvão, um jornalista que escreve também interessantemente sobre viagens. Um gênero à parte, o relato de viagem persiste forte, ainda que simplificado com rápidas intervenções de blogueiros e youtubers que há na rede mundial de computadores.

Nesse livro de Cretella Júnior, "Viagem pela Europa e pelo Mundo", descortinamos uma perspectiva diferente e fascinante de um jurista viajante, ou de um viajante jurista; antes de tudo, no entanto, um humanista. E retomamos também um mundo que se foi, mas que era interessante, tinha seus encantos, seus problemas, dos quais nos lembramos hoje com uma intrigante nostalgia.

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