Opinião

A prova testemunhal no processo penal

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21 de maio de 2022, 6h03

– Há quanto tempo o senhor conhece o réu?
– Há mais de 20 anos.

A resposta credenciava a testemunha a discorrer sobre aspectos da personalidade do réu, seus antecedentes, conduta social, enfim, sua vida anteacta. Elementos de informação que ainda hoje deveriam ser relevantes para a formação da convicção do juiz não somente para fixação da pena (art. 59 do Código Penal), mas, também, para compreender o fato e muitas das condições humanas que poderiam ter levado o acusado ao cometimento do delito.

É no processo penal que a prova testemunhal está mais presente, sobretudo porque, também em relação ao fato principal, a percepção humana é rica fonte de detalhes para representação do objeto da apuração, ao contrário de outros ramos do direito em que os juízes partem de premissas estabelecidas pela prova documental e decidem o caso apenas sob o ponto de vista puramente jurídico.

Não raro, a ausência de prova testemunhal no processo penal constituía sério entrave ao decreto condenatório, a ponto de se construir conhecida jurisprudência sobre o especial valor da palavra da vítima em crimes de natureza sexual[1], geralmente cometidos às escondidas[2], entre quatro paredes[3], longe dos olhos de testemunhas.[4]

Expressão da amplitude do exercício do direito de defesa, uma vez arroladas testemunhas em número legal na oportunidade própria, impunha ao juiz ouvi-las, sob pena de nulidade por evidente cerceamento. Restaria apenas discutir, em audiência, a qualidade do depoimento, considerada a testemunha informante quando suspeita pela relação de amizade íntima, inimizade capital ou relação de parentesco, por exemplo, hipótese que não a proibiria de depor, mas apenas a desobrigava, salvo quando impossível obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias sem ela, dotando-se o seu depoimento de valor probante relativo.

A carente formação técnica de juízes, promotores de justiça e advogados no estudo da psicologia do depoimento de vítimas e testemunhas[5] tem levado à crescente desqualificação da prova oral[6], banalizando o ato praticado em audiência, algo enfadonho e previsível, especialmente quando as partes deixam de explorar todo potencial que um testemunho pode proporcionar ao humanizado julgamento, tornando a audiência de um processo penal mera formalidade da qual juízes e promotores se desincumbem, muitas vezes, com inescondível desinteresse.

De fato, sem rigor formal e destituída de técnica adequada, a contribuição de vítimas e testemunhas, fundamentais para o justo desfecho da persecução penal, pode constituir, ao contrário, elemento estéril ou tumultuário, capaz até de promover injustiça desde a fase de investigação.

É o caso, por exemplo, das inconsistências no reconhecimento fotográfico de pessoas. Segundo levantamento realizado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro[7], oito entre dez réus que, ao final, foram absolvidos por erros no reconhecimento fotográfico, chegaram a ter prisão provisória decretada. A constatação ajuda a entender o preconceito e a desconfiança contra a prova testemunhal, cuja falibilidade não justifica afastá-la, impondo-se a redução das chances de erro judiciário através da adoção de cientificidade e absoluta observância de fórmulas legais para o ato, do que vem cuidando importantíssima jurisprudência do STJ a respeito.[8]

Assim, a prova testemunhal, para muitos desde sempre a "prostituta das provas"[9], vem sendo relegada a plano cada vez mais secundário, posta em dúvida quando não explicitamente desdenhada pela impaciência de juízes que tratam testemunhas de antecedentes com ironia, denominando-as testemunhas de beatificação ou santificação[10] — perda de tempo —, desprezando quaisquer outros testemunhos que não sirvam ao viés confirmatório da denúncia, ou, sob desconfiado olhar, sejam capazes de infirmá-la.

Aos poucos, o simples direito de exigir que testemunhas sejam ouvidas em número legal, expressão do direito à ampla defesa, cede ao utilitarismo do processo seletivo e célere, que nunca foi capaz de reproduzir toda a verdade, dela se afastando ainda mais na medida em que se vai limitando o direito da defesa inquirir quem e por qualquer motivo quiser inquirir.

O artigo 222-A do CPP, introduzido pela Lei nº 11.900/2009, tratou de subordinar a expedição de carta rogatória à prévia demonstração de imprescindibilidade do depoimento da testemunha residente no exterior, mesmo quando se trate de crime transnacional.

Com o advento das Leis nº 11.689/2008 e nº 11.719/2008, as redações quase idênticas do §2º do artigo 411 e do §1º do artigo 400, ambos do CPP, consagraram a possibilidade do juiz indeferir as provas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias, discricionariedade que se estendeu de modo inimaginável, havendo quem entenda caber ao juiz indeferir testemunhas que simplesmente reputar irrelevantes, assim consideradas as que não se refiram ao fato principal, por exemplo, como se tudo o mais que a defesa pretendesse demonstrar fosse desnecessário, desprezível.[11]

Desde então, não tem sido incomum exigir da defesa justificativa prévia para inquirição de suas testemunhas, abrindo flanco para indeferimentos arbitrários de juízes com opinião formada e incapazes de admitir elementos de convicção que possam influir no julgamento, ainda que indiretamente.

Não é novidade que o processo penal historicamente atribuiu tratamento normativo distinto à prova testemunhal[12]. A legislação processual civil brasileira, por exemplo, é bem mais restritiva quanto à admissibilidade probatória, porquanto proíbe, conforme dispõe o artigo 447, pessoas incapazes, impedidas ou suspeitas de depor; as mesmas testemunhas que pelo CPP seriam apenas desobrigadas de fazê-lo, sendo grave e legalmente inadmissível a invocação da Lei processual civil para vetar testemunhas contra expressa disposição do Código de Processo Penal, ou aceitar a mesma restrição a quaisquer outros processos com finalidade punitiva.

Assim ocorre com o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos sentidos que lhes faltam — insidioso preconceito que os tem, desde logo, incapazes para o fim de testemunhar com os sentidos de que dispõem.

Como impedidos, o cônjuge, o companheiro, o ascendente e o descendente em qualquer grau e o colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consanguinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito, tornando irrelevantes determinadas informações que somente em razão daquela convivência a testemunha seria capaz de oferecer. Ou ainda, a vedação a testemunhas suspeitas como o inimigo da parte ou o seu amigo íntimo, os quais, com a ressalva devida, poderiam ser fonte relevante para a representação da vida real.

É bem verdade que o artigo 447 do CPC excetua, no § 4º, a possibilidade do juiz ouvir tais testemunhas se entender necessário, hipótese remotíssima dado o caráter utilitário emprestado aos processos em geral, tomados pela função meramente instrumental e cada vez mais sujeitos a presunções capazes de causar arrepios no processo penal.

Com efeito, o CPC fez uma distinção aparentemente sutil ao proibir testemunhas que o atual CPP admite, mas essa distinção é drástica sob o ponto de vista do direito da parte, legalmente impedida de lançar mão de tais meios para produção de informações que, bem ou mal, poderiam ser úteis ao desfecho da causa, não só em relação ao fato principal, mas também em relação às circunstâncias do fato e às pessoas envolvidas, solução que, portanto, não serve ao direito processual penal e processos afins.

Assim, é de todo indesejável que a regra do CPC seja exportada para o âmbito do processo penal a qualquer título. Afinal, se hoje a regra do CPP é ouvir tais testemunhas, atribuindo-se-lhes o valor que mereçam à luz de outros elementos de prova, a regra passaria a ser simplesmente proibir ouvi-las, excetuando-se a vedação legal apenas pela discricionária deliberação do juiz, cujo critério de necessidade inusitadamente precede o real conhecimento sobre o conteúdo das informações que a testemunha efetivamente pode vir a prestar.

De outro modo, o direito processual penal desbastará a prova a priori e afastará o juiz de relações sociais em que se situam o fenômeno criminal e o indivíduo que ele vai julgar, fazendo da atividade jurisdicional algo tão objetivo quanto desumano.


[1] Nesse sentido: “(…)3. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal consolidou-se no sentido de que, nos crimes sexuais, a palavra da vítima, em harmonia com os demais elementos de certeza dos autos, reveste-se de valor probante e autoriza a conclusão quanto à autoria e às circunstâncias do crime.” (Inq. 2563, Relatora para o acórdão: Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, publicado em 28.05.2010).

[2] STJ. AgRg no AREsp 1919117/DF, Rel. Des. Federal Convocado Olindo Menezes, Sexta Turma, julgado em 19.04.2022.

[3] TJPB. Autos n. 0000513-96.2015.8.15.0341, Câmara Especializada Criminal, Relator Des. Márcio Murilo da Cunha Ramos, julgado em 03.05.2018

[4] STJ. AgRg no REsp n. 1.774.080/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 07.02.2019.

[5] Sobre a psicologia do depoimento de vítimas e testemunhas: (STEIN, Lilian Milnitsky [Coord.]. Avanços científicos em Psicologia do Testemunho aplicados ao Reconhecimento Pessoal e aos Depoimentos Forenses. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos, 2015).

[6] Sobre a importância dos aspectos epistemológicos do testemunho: (RAMOS, Vitor de Paula. Prova testemunhal. São Paulo: RT, 2018, cap. 4, p. 119-139).

[7] Relatório completo sobre o reconhecimento fotográfico nos processos criminais no Rio de Janeiro. Disponível aqui.

[8]Dentre outros: STJ. HC 712.781/RJ, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15.03.2022. Do qual se extrai ainda importante alerta: “(…)12. Sob tal perspectiva, devem as agências estatais de investigação e persecução penal envidar esforços para rever hábitos e acomodações funcionais, de sorte a "utilizar instrumentos para maximizar as probabilidades de acerto na decisão probatória, em particular aqueles que visam a promover a formação de um conjunto probatório o mais rico possível, quantitativa e qualitativamente" (Ferrer-Beltrán)(…).”

[9]“Se no processo penal é a mais comum, encontradiça e alicerçada das provas e, ao mesmo tempo, representa a mais controvertida, ao ponto de receber o epíteto pejorativo de a ‘prostituta das provas’”. (ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no Processo Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 139).

[10] A utilização dos termos para qualificação de testemunhas não é incomum. Neste sentido: (TJSP. HC n. 0200138-03.2011.8.26.0000. Relator: Desembargador Breno Guimarães. 12ª Câmara de Direito Criminal., julgado em 14.12.2011); (TJMG. Apelação Criminal n. 1.0567.12.008843-8/001. Relator: Des. Flávio Batista Leite. 1ª Câmara Criminal. Belo Horizonte, julgado em 14.12.2021).

[11] A esse propósito: STJ. HC 180.249/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, julgado em 27.11.2012.

[12] Nesse sentido já anotava José Frederico Marques: “No processo penal, não há as limitações criadas pelo processo civil a respeito da prova testemunhal. Ao revés, de largo uso é essa prova, a qual, além disso, pode suprir a produção de outras mais adequadas para o caso, como se verifica, verbi gratia, nas hipóteses previstas nos arts. 167 e 168, §3º, respectivamente, do Cód de Proc. Penal.” In: Elementos de Direito Processual Penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense: Rio de Janeiro, 1961. Vol. II, p.336.

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