Opinião

Sobre a impossibilidade lógica da tipicidade material

Autor

19 de maio de 2022, 6h32

Quando discutimos o conceito analítico de crime, deparamo-nos com a construção teórica dada por Liszt e Beling, na qual o crime é toda conduta típica, antijurídica e culpável; analisando, para tanto, cada elemento integrador do conceito de crime, analiticamente, explorando à exaustão os limites normativos de cada elementar.

Em termos de tipicidade, imperioso se faz a estruturação elementar do fato típico, que se subdivide em conduta, nexo de causalidade, resultado e tipicidade. A tipicidade, por sua vez, é novamente subdividida em tipicidade formal, que seria uma espécie de adequação típica entre o fato e a norma penal, enquanto a tipicidade material seria a categoria responsável por analisar a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico penalmente protegido pela norma incriminadora.

É importante destacar, neste ponto, que o conceito de tipicidade material foi criado como uma tentativa de incluir a lesão ao bem jurídico no tipo penal, vez que o conceito analítico de crime como fato típico, antijurídico e culpável não abrangia o fundamento da lei penal, que é o  bem jurídico.

Sobre este ponto, nos explica Andreas Eisele que o conceito material do delito consiste em um desenvolvimento da proposta classificatória formulada a partir das considerações de Heinrich Luden, que fez referência a um aspecto "material" do delito relacionado a expressão objetiva do fato, embora o fizesse sem dissociar de forma específica o evento típico ou o resultado da afetação do bem jurídico.

Isso se dá, como explica Hassemer, especialmente porque o conteúdo do conceito de "bem jurídico" é pouco concreto, e por este motivo esta categoria não é adequada para a determinação objetiva e autônoma do objeto da tutela penal que, segundo Wolfgang Frisch, ao final, é o próprio legislador quem define o real objeto da tutela jurídico-penal.

Compreendendo o bem jurídico como um meta-conceito adaptado somente a cenários metajurídicos, compreendemos, também, que o uso do conceito de "bem jurídico" não é adequado para definir, no âmbito teórico, o conteúdo valorativo dos juízos políticos que determinam os objetos de tutela penal, e a legitimidade de cada norma deve ser realizada a partir de naturezas distintas, como a  natureza sociológica, política ou cultural.

Ultrapassando os limites da ambiguidade conceitual do que se entende por "bem jurídico", percebe-se que a proposta de trazê-lo à análise da tipicidade também é inviável, porque a tipicidade é uma categoria teórica absoluta, enquanto o bem jurídico é um objeto relativo de análise concreta.

A tipicidade enquanto categoria absoluta implica à análise objetiva de que determinado fato somente poderá ser típico ou atípico; enquanto a afetação ao bem jurídico, por sua vez, pode ser uma afetação maior ou menor, mais ou menos gravosa. Um objeto dimensionável, como o bem jurídico, não pode ser trabalhado em uma categoria absoluta, como é a tipicidade.

Na tipicidade não há graus de proporcionalidade, enquanto a afetação ao bem jurídico é dimensionável e relativa e não absoluta e objetiva; de modo que o furto de uma folha de papel não é menos típico que o furto de um automóvel, mas entre ambos existe uma diferença evidente da dimensão naturalisticamente determinada pela lesão do bem jurídico  e essa dimensão não pode ser classificada  na tipicidade.

A análise da afetação ou perigo de afetação do bem jurídico deve se dar em uma categoria em que o seu conteúdo relativo permita estabelecer uma relação de proporcionalidade entre a dimensão da afetação do bem jurídico e a gravidade do fato, mas a tipicidade não viabiliza essa adequação, por se tratar, como dito, de uma categoria absoluta.

Outro ponto que merece destaque para a desqualificação da categoria da "tipicidade material" é justamente o de que a classificação concreta deste conceito implicaria em contradições, tautologias e em uma análise contraproducente do conceito analítico de crime, onde um fato poderia vir a ser 'formalmente típico', mas não 'materialmente típico'. como ocorre com a incidência das bagatelas, em condutas com insignificância penal.

A análise da tipicidade restaria prejudicada pela ambiguidade do conceito de 'tipo material', de modo que apesar do tipo objetivo de furto definir a hipótese de subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel; quem furtasse um automóvel realizaria materialmente essa conduta; mas quem furtasse uma folha de papel, não. A ambiguidade é evidente: a mesma conduta é classificada de duas formas diferentes e contraditórias entre si. O mesmo fato (conduta) seria típico e atípico  e assim, furtar uma folha de papel não seria materialmente uma subtração para si ou para outrem, de uma coisa alheia móvel.

A tipicidade material não é uma categoria adequada para a classificação da afetação do bem jurídico por medida de lógica. A lesão ao bem jurídico não é um elemento do tipo; a tipicidade é uma categoria absoluta, enquanto a lesão ao bem jurídico é uma categoria relativa e a classificação do fato como formalmente típico e materialmente atípico é contraditória e contraproducente, incompatível com as exigências de racionalidade da lei penal em um Estado de Direito.

Referências
EISELE, Andreas. A Punibilidade no Conceito de Delito;
HASSEMER, Winfried. Strafen im Rechtsstaat.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!