Controvérsias Jurídicas

A inelegilibidade e a Lei Complementar 135/10

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

19 de maio de 2022, 10h41

Objetivando proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício de mandatos eletivos, foi aprovada, em 2010, a Lei Complementar 135, a qual teve por escopo alterar a LC 64/90, com novas hipóteses de inelegibilidades. Resultado de forte mobilização popular, a LC 135, também chamada de "Lei da Ficha Limpa", arrecadou mais de 1,3 milhões de assinaturas de cidadãos brasileiros para que fosse possível a apresentação do projeto de lei perante o Congresso.

Uma das alterações mais relevantes foi a ampliação, de três para oito anos, do prazo de inelegibilidade para o condenado por abuso de poder político ou econômico. Dessa maneira, o texto do artigo 1º, I, "d", assim passou a vigorar: "os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso de poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarão nos 8 anos seguintes".

O aumento do período de inelegibilidade também alterou o artigo 22, XIV: "Julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos oito anos da eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para a instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar".

A reprimenda mais gravosa suscitou debate jurídico acerca dos efeitos da mudança legislativa para os casos já transitados em julgado ainda sob a égide da legislação revogada (LC 64/90), porém, em lapso temporal inferior a oito anos, correspondente ao novo prazo de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa.

No caso hipotético de um político condenado, em 2009, por abuso do poder econômico, seu prazo de inelegibilidade seria de três anos. Nas eleições de 2014, acreditando estar apto ao pleito de prefeito de sua cidade, após apresentar o registro de sua candidatura, descobriu que o Ministério Público Eleitoral ajuizou contra ele Ação de Impugnação de Candidatura, alegando que ainda que a Lei da Ficha Limpa tenha entrado em vigor após os atos causadores de sua condenação, a LC 135/10 teria efeito retroativo, atingindo fatos pretéritos. Desta feita, o período de inelegibilidade que antes se imaginava findar em 2012, passaria para 2017. 

Como não poderia deixar de ser, recaía a controvérsia acerca da impossibilidade de aplicação retroativa de lei com sanção mais gravosa (CF, artigo 5º, XXXVI) e do desrespeito à coisa julgada, tendo em vista que o candidato teve contra si uma nova sentença condenatória que rompeu com a imutabilidade da decisão transitada em julgado.

Ao analisar a questão, decidiu o STF ser possível a aplicação retroativa da LC 135/10, com a consequente extensão do período de inelegibilidade de três para oito anos, às condenações por abuso do poder político e econômico, não apenas aos casos pendentes de análise recursal, como para todos aqueles com trânsito em julgado inferior a oito anos. Sustentou a Corte que o fato de a condenação por abuso do poder político e econômico já ter transitado em julgado, até mesmo com o transcurso completo da sanção anteriormente prevista (três anos), não afastaria a incidência do artigo 1º, I, "d" da LC 135/10, o qual estabeleceu novo prazo de impossibilidade de candidatura.

Acerca da questão, assim firmou o STF a tese com repercussão geral:
"A condenação por abuso de poder econômico e político em ação de investigação judicial eleitoral, transitada em julgado, ex vi do artigo 22, inciso XIV, da Lei Complementar 64/90, em sua redação primitiva, é apta a atrair a incidência da inelegibilidade do artigo 1º, inciso I, alínea 'd', na redação dada pela Lei Complementar 135/10, aplicando-se a todos os processos de registro de candidatura em trâmite".

Para que fosse possível se firmar o entendimento, debruçou-se a Corte sobre a natureza jurídica da inelegibilidade e o alcance da coisa julgada na Justiça Eleitoral. Primeiramente, foi fixado o entendimento de que a inelegibilidade não é uma sanção, mas um requisito estabelecido pela lei. O afastamento do caráter meramente sancionatório pode ser aferido, por exemplo, na inelegibilidade de pessoas não alfabetizadas, conforme preceitua o artigo 14, §4º da Constituição Federal. Assim, ostenta natureza jurídica de "requisito negativo de adequação do indivíduo ao regime jurídico do processo eleitoral", sendo que ao cidadão condenado por abuso de poder político e econômico, em tempo inferior a oito anos entre a decisão e o registro da candidatura, será vedado o direito de pleitear mandato eletivo, pelo não preenchimento de pressuposto necessário para tornar-se elegível.

Desta forma, conclui-se que as hipóteses de inelegibilidade trazidas pela LC 64/90 e 135/10, não possuem caráter repressivo, não havendo que se falar em inelegibilidade-sanção no ordenamento jurídico pátrio.
Por fim, no que tange à ofensa da imutabilidade das decisões transitadas em julgado, decidiu a Suprema Corte que a imposição de prazo de inelegibilidade configura uma relação de continuidade, operando a coisa julgada sob o princípio do rebus sic stantibus. Deste modo, a inelegibilidade somente produzirá efeitos jurídicos concretos se o cidadão vier a registrar candidatura para cargo eletivo, restringindo-se à esfera jurídico-eleitoral.

Pelo fato de se formalizar apenas com o registro da candidatura, prevalece o entendimento de que o legislador pode estabelecer novos prazos para que o candidato condenado por conduta econômica ou politicamente abusiva fique inelegível por mais anos, sem que tal modificação implique em rompimento da coisa julgada.

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