Opinião

O peso tributário da pensão alimentícia

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18 de maio de 2022, 16h02

A entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 64/2010 enquadrou os alimentos como direito social, sendo assim previsto no artigo 6º da Constituição Federal. A adoção da medida se deu durante o Congresso Internacional sobre Alimentos, no qual foi alcançado o entendimento comum de que não seria possível "garantir um mundo democrático enquanto a fome e a desnutrição continuassem a afligir milhões de pessoas" [1].

Desde a primeira abordagem, os alimentos se mantiveram intrinsecamente relacionados à dignidade da pessoa humana, como um princípio de preservação da dignidade. Carlos Roberto Gonçalves, citando Yussef Cahali explana que os alimentos são "uma modalidade de assistência imposta por lei, de ministrar os recursos necessários à subsistência, à conservação da vida, tanto física como moral e social do indivíduo" [2].

A prestação dos alimentos no âmbito do Direito das Famílias se pauta no princípio da solidariedade: os parentes têm entre si a obrigação moral e jurídica de prover a subsistência daqueles que não dispõem de condições suficientes para tanto. Tendo como objetivo a garantia da subsistência, a fixação dos alimentos possui parâmetros bem definidos no ordenamento jurídico brasileiro.

Como está atrelado a uma questão social, além de moral, no Direito das Famílias, os alimentos são indispensáveis para a garantia da subsistência e para a preservação do mesmo padrão e status social do alimentante. A doutrina divide as espécies, respectivamente, em alimentos naturais e civis.

É que o simples fato de a família ter se rompido não deve bastar para que a qualidade de vida mude drasticamente, desde que o alimentante tenha condições de continuar provendo. Como leciona a renomada jurista Maria Berenice Dias "todos os beneficiários — filhos, pais, parentes, cônjuges e companheiros — têm assegurado o padrão de vida de que sempre desfrutaram" [3].

É com base nessas premissas e finalidade que a fixação dos alimentos se dá com base em três pilares: a necessidade do alimentando, a possibilidade de pagamento do alimentante e a razoabilidade, para que não se afaste do caráter assistencial.

A compreensão que se deve ter com muita clareza é que o recebimento da pensão alimentícia não representa uma vantagem econômica ao alimentando, afinal, o valor atrelado será destinado à manutenção da vida digna e em consonância com o padrão social que desfrutava antes, por exemplo, da separação ou dissolução da união estável.

Mesmo sendo evidente o caráter alimentar, o legislador entendeu que o recebimento da pensão alimentícia deve ser tributado pelo imposto de renda. O panorama está na iminência de ser alterado, graças a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), em 2015. A análise da (in) constitucionalidade da medida, pressupõe a necessidade de enfrentamento de questões jurídicas e sociais, a partir da compreensão do conceito técnico envolvendo a tributação e da natureza jurídica dos alimentos.

O artigo 43, do Código Tributário Nacional (CTN), prevê que o fato gerador do imposto de renda é a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica sobre a renda e os proventos de qualquer natureza, e define como renda o acréscimo patrimonial decorrente do capital, do trabalho ou de ambos, enquanto os proventos têm natureza residual, ou seja, são definidos como os acréscimos patrimoniais que não se enquadrem como renda.

Pelas considerações feitas, é possível entender que os alimentos não constituem renda, uma vez que não são fruto do trabalho, nem do capital, de quem os recebe. A lei complementar (o CTN), ao exercer a sua função de editar normas gerais sobre o direito tributário, estabeleceu que a materialidade do imposto de renda pressupõe o acréscimo patrimonial. Por óbvio, esse ditame deve ser respeitado pelo legislador ordinário, que não pode prever tributação sobre algo que não seja renda, isto é, que não represente acréscimo patrimonial para o contribuinte.

Justamente por esse motivo é que não incide imposto de renda sobre as indenizações, por exemplo, pois não implicam em acréscimo patrimonial, mas tão somente visam reparar uma perda patrimonial, configurando, portanto, uma recomposição do patrimônio.

A não incidência do imposto de renda sobre os alimentos segue raciocínio semelhante, porque o recebimento de alimentos não representa acréscimo patrimonial. Em suas lições, Hugo de Brito Machado destaca que "ninguém consegue subsistir sem dispor de uma quantia necessária para sua alimentação, vestimenta, moradia e outros gastos indispensáveis", defendendo que "a necessidade de se excluir o mínimo existencial da incidência do imposto de renda" [4].

Os tributos devem obediência aos princípios tributários, especialmente ao princípio da igualdade tributária (artigo 150, II, da CF), que veda o tratamento desigual entre os contribuintes que se encontrem em situação equivalente e, pelo mesmo motivo, autoriza a criação de discriminações lícitas, sempre com fundamento constitucional, para que os desiguais possam estar em patamar de igualdade com os outros, embora não estejam em situação equivalente.

Atualmente, os alimentos são considerados como despesa para o alimentante, o que possibilita a sua dedução da base de cálculo do imposto de renda (artigo 25, §1º, d, da Lei nº 7.713/1988). Em contrapartida, para o alimentando, a pensão alimentícia é tida como rendimento, uma vez que o §1º, do artigo 3º, da Lei nº 7.713/1988, estabelece que o imposto incide sobre o rendimento bruto, que é entendido como "o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza […]".

Do mesmo modo, o artigo 46, do Regulamento de Imposto de Renda (Decreto nº 9.580/2018), prevê que "são tributáveis os valores percebidos, em dinheiro, a título de alimentos ou de pensões, em cumprimento de decisão judicial, de acordo homologado judicialmente ou de escritura pública registrada em cartório, inclusive a prestação de alimentos provisionais". No caso de incapacidade civil do credor dos alimentos, a norma ainda estabelece que "a tributação será feita em seu nome pelo tutor, pelo curador ou pelo responsável por sua guarda" (artigo 4º).

Assim, o que se percebe é que o legislador submeteu à tributação algo (a pensão alimentícia) que não está abrangido pela materialidade do imposto de renda (renda e proventos), contrariando disposição constitucional, sobretudo o princípio da legalidade tributária.

Diversos juristas se posicionam no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade da tributação da pensão alimentícia. Rolf Madaleno [5], por exemplo, defende a intributabilidade dos alimentos, e destaca que "a renda familiar só pode ser tributada uma vez", mas, hoje, há dupla tributação. Para ele, "não importa se o casal está separado, a renda é uma só: do provedor, que já paga imposto de renda quando recebe o salário. Só porque está divorciado ou separado não deixou de constituir uma família. Os filhos não deixaram de ser seus dependentes".

A ADI nº 5422, proposta pelo IBDFAM, se pauta nessa tese e objetiva ver declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizam a tributação da pensão alimentícia. Em sua terceira inclusão no plenário virtual, o STF havia formado maioria para a declaração da inconstitucionalidade da tributação dos alimentos. O relator, o ministro Dias Toffoli, votou pelo afastamento da incidência do imposto de renda sobre os alimentos ou a pensão alimentícia.

O ministro Luís Roberto Barroso seguiu o voto do relator, defendendo que considerar os alimentos como acréscimo patrimonial é incompatível com a Constituição Federal, porque eles se destinam ao sustento do alimentando. Após, o ministro Alexandre de Moraes argumentou que o que justifica a isenção do imposto é a finalidade constitucional da pensão alimentícia, que é a garantia do mínimo existencial do indivíduo que não possui capacidade econômica para tanto. Os ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber também foram favoráveis à tese.

Contudo, o ministro Gilmar Mendes apresentou pedido de destaque e, por isso, o julgamento da ADI foi interrompido no dia 16/02/2022 e retirado do plenário virtual. Assim, a ADI deve ser incluída posteriormente em plenário físico e a votação é zerada.

Por fim, mas não menos importante, é preciso chamar atenção para o fato de a tributação dos alimentos revelar um viés implícito da desigualdade de gênero. Dados do IBGE [6] indicam que, em 2019, nos divórcios deferidos em 1ª instância a casais com filhos menores de idade, em 62,4% dos casos a guarda ficou com a mulher, em 26,8% dos casos a guarda foi compartilhada, e em apenas 4% dos casos a guarda foi concedida ao homem.

Os dados demonstram que, na maioria dos casos (62,4%), a pensão alimentícia será paga pelo homem, e a mãe será a responsável pela guarda do filho menor de idade (alimentando). Então, pelas regras vigentes, o pai poderá deduzir isso do seu imposto de renda, já a mãe terá que submeter os alimentos à tributação, como se representasse acréscimo patrimonial. Consequentemente, será reduzida a quantia que é (i) destinada à manutenção da subsistência e status social, e (ii) fixada pelos critérios da razoabilidade, necessidade do alimentando e possibilidade de pagamento do alimentante, de modo a não oportunizar o enriquecimento sem causa.

A esse respeito, Tathiane Piscitelli [7] destaca a diferença gritante que existe, pois, ainda hoje, as mulheres se ocupam mais com os cuidados relacionados aos filhos do que os homens, estando incluídos a compra de bens de consumo básico, como roupas e medicamentos. Além disso, lembra que as mulheres são as responsáveis, na maioria dos casos, pelo exercício desse trabalho não remunerado, independente do estado civil ou empregatício, uma vez que as mulheres dedicam o dobro de horas em relação aos homens, e têm salários 77,7% menores do que os homens, como revelam os dados do IBGE.

Os Grandes Números do Imposto de Renda das Pessoas Físicas [8] demonstram que, em 2020, os homens deduziram R$15,28 bilhões à título de pensão alimentícia, enquanto as mulheres deduziram apenas R$390 milhões.

Assim, observa-se que a mãe só pode deduzir um valor fixo por dependente, que, em 2019, era R$ 486,38 por mês (incluindo os gastos com educação), e ainda tem que pagar imposto de renda sobre a pensão alimentícia, que se destina ao sustento do filho, além de ter que arcar com outros custos básicos e se preocupar com cuidar, educar e assistir os filhos. Portanto, a tributação da pensão alimentícia é uma regra discriminatória que não encontra fundamento constitucional e, por isso, viola o princípio da isonomia.

A tributação da pensão alimentícia, nos moldes atuais, acentua a desigualdade de gênero em nosso país, contribuindo para que a mãe, além de tudo, permaneça em situação desprivilegiada em relação ao pai. Mas a tributação não deve favorecer isso. O Estado não deve (e não pode) onerar a mãe por exercer a guarda dos filhos. Pelo contrário, a tributação é um excelente mecanismo para reduzir distorções sociais, e não seria diferente com a desigualdade de gênero.

Referências


[1] NETO, Othoniel Pinheiro. Os efeitos da Emenda Constitucional nº 64/2010 no Direito de Família, 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21495/os-efeitos-da-emenda-constitucional-n-64-2010-no-direito-de-familia

[2] GONÇALVES, Carlos Roberto; Direito Civil Brasileiro, Vol. 6, 12ª edição. Saraiva, 2016. P. 336

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11ª ed. Revista dos Tribunais, 2016. P. 549

[4] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 321-322

[5] Disponível aqui.

[7] Tathiane Piscitelli, Tributação, desigualdade de gênero e as pensões alimentícias, de 22/03/2021, Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2021/03/tributacao-desigualdadede-genero-e-as-pensoes-alimenticias.ghtml.

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