Opinião

Lei 14.331 promove mudança no benefício previdenciário por incapacidade

Autor

  • Igor Mendonça Cardoso Gomes

    é procurador federal mestre em Cultura Jurídica: Segurança Justiça e Direito pela Universitat de Girona na Espanha especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera e professor de Direito Previdenciário na Faculdade Independente do Nordeste (Fainor).

16 de maio de 2022, 20h29

A recente Lei nº 14.331, de 4 maio de 2002, promoveu importantes alterações processuais nos feitos envolvendo benefícios previdenciários por incapacidade, através da inclusão do artigo 129-A na Lei 8.213/1991 (Lei do Plano de Benefícios do Regime Geral de Previdência Social).

O novo dispositivo legal será objeto das considerações seguintes, através das quais se busca o entendimento das alterações feitas no processo previdenciário, além da análise dessas mudanças à luz do princípio processual da adequação [1].

1) Requisitos da petição inicial
Nas causas que versem sobre benefícios por incapacidade (auxílio por incapacidade temporária, ou auxílio-doença; aposentadoria por incapacidade permanente, ou aposentadoria por invalidez) e auxílio-acidente cujos fundamentos incluam a discussão sobre ato praticado pela perícia médica federal, a Lei nº 14.331/2022 estabeleceu novos requisitos complementares aos artigos 319 e 320 do Código de Processo Civil.

Percebe-se que as alíneas "a" a "c" do inciso I do dispositivo comentado dizem respeito a tópicos que constituem uma descrição pormenorizada da causa de pedir (artigo 319, III, do CPC). Fica agora expresso que o autor da ação previdenciária deve descrever claramente a patologia, indicar a extensão da incapacidade laborativa resultante, e, ainda, apontar as "possíveis inconsistências" da perícia médica que fundamentou o indeferimento do benefício previdenciário (ou seja, impugnar especificamente a perícia médica cujo resultado está sendo questionado). Talvez essa impugnação específica do laudo administrativo seja o requisito de mais difícil cumprimento, devendo-se interpretar a exigência de modo a evitar um ônus desproporcional à condição de hipossuficiência técnica da parte autora.

Por sua vez, a alínea "d" do dispositivo comentado estabelece o ônus de declarar a inexistência de demanda idêntica anterior ou, no caso contrário, a argumentar, por prolepse, pela inocorrência de litispendência ou coisa julgada (matéria típica de defesa, nos termos do artigo 337, VI e VII, e §1º, todos do CPC). A medida evita o prolongamento desnecessário do processo na presença de demandas idênticas anteriores, caso em que se deve intimar a parte autora para manifestar-se sobre esse ponto (artigo 9º, caput, do CPC) antes de extinguir o feito sem resolução do mérito (artigo 485, V, do CPC).

2) Documentos indispensáveis ao ajuizamento
2.1) Prova do indeferimento do benefício ou de sua não prorrogação (inciso II, alínea "a")
A exigência documental a que se refere a alínea "a" do inciso II do artigo 129-A vem a reboque da jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal (Tese firmada no Tema 350, com repercussão geral) e do Superior Tribunal de Justiça (Tese firmada no Tema Repetitivo nº 660), que exigem prévio requerimento administrativo do interessado para que fique caracterizada a ameaça ou lesão a direito.

Não havendo indeferimento do requerimento ou transcurso in albis do prazo para decisão administrativa [2], a parte autora carece de interesse de agir (vertente necessidade do provimento final almejado). Porém, a partir da modificação legislativa em análise, a extinção do processo pode ocorrer por simples indeferimento da inicial (artigo 485, I, c/c o artigo 321, parágrafo único, do CPC), não sem antes oportunizar à parte autora a correção do vício, no prazo de 15 dias, de acordo com o caput do artigo 321 do CPC.

Note-se que "prévio requerimento" não se confunde com exaurimento da via administrativa. Não se exige que o interessado recorra administrativamente do indeferimento e muito menos que esgote os recursos administrativos disponíveis.

A ressalva legal existente no inciso II, alínea a ("comprovante de indeferimento do benefício ou de sua não prorrogação, quando for o caso") resguarda as situações em que a jurisprudência do STF [3] dispensa o prévio requerimento como pressuposto do ingresso em juízo, quais sejam: 1) quando a tese jurídica cuja aplicação é pretendida pela parte autora é notória e reiteradamente rejeitada pelo ente previdenciário e 2) quando a pretensão de revisão, restabelecimento ou manutenção de benefício anteriormente concedido, salvo quando depender da análise de matéria de fato ainda não levada ao conhecimento da Administração.

Apesar de algumas hipóteses de dispensa do prévio requerimento terem sido previstas pelo STF apenas como regras de transição (para as ações ajuizadas até 03/09/2014), há fortes razões para sua manutenção como exceções à obrigatoriedade de prévio requerimento, mesmo diante do novo regramento. São elas: 1) quando o INSS apresenta contestação de mérito [4] e 2) nas ações ajuizadas perante os juizados itinerantes.

Nas ações ajuizadas perante os juizados itinerantes (Constituição Federal, artigos 107, §2º, 115, §1º e 125, §7º) que forem instalados para prestar o serviço jurisdicional a segurados residentes em localidade onde não haja sede de Agência da Previdência Social, é bastante defensável a tese da inexigência de requerimento administrativo prévio porque se trata, a rigor, de hipótese em que se configura um inadimplemento ainda mais profundo do Poder Público em face de direitos fundamentais do interessado, haja vista que a "universalidade da cobertura e do atendimento" é um dos objetivos (ou, de acordo com a doutrina previdenciarista [5], um dos princípios) da seguridade social (v. artigo 194, parágrafo único, I, e artigo 6º, ambos da Constituição Federal).

Sobre a hipótese de negativa de prorrogação do benefício por incapacidade temporária (auxílio-doença) é necessária uma observação.

O artigo 60, §8º, da Lei 8.8213/91, estabelece a obrigatoriedade, sempre que possível, de fixação do prazo de duração desse benefício, seja concedido na via administrativa ou judicial. Por sua vez, o §9º do mesmo artigo estabelece que a cessação do benefício, na hipótese de não ter sido fixado um prazo de duração, ocorrerá em 120 dias contados da data do ato de concessão ou reativação, exceto se o interessado solicitar a prorrogação do benefício perante o INSS, nos termos do regulamento. Dessa forma, se o interessado deixar transcorrer o prazo regulamentar [6] para o pedido de prorrogação, não terá interesse de agir para ingressar em juízo. Nesse caso, a cessação do benefício terá ocorrido em decorrência de omissão do próprio interessado. Consequentemente, a situação em foco deve ser diferenciada daquela em que a prorrogação é efetivamente indeferida pelo INSS.

2.2) Prova da ocorrência do acidente de qualquer natureza
O artigo 129 da redação original da Lei 8.213/91 já exigia que as petições iniciais das ações acidentárias (ajuizadas na Justiça Estadual por força do artigo 109, I, da Constituição Federal) fossem instruídas "pela prova de efetiva notificação do evento à Previdência Social, através da Comunicação de Acidente de Trabalho  CAT". Contudo, o novo artigo 129-A é mais amplo para os casos de acidente de trabalho (pois abre a possibilidade de instrução da inicial com provas diversas da CAT [7]) e mais restrito para os casos de acidentes "de qualquer natureza" [8] (pois institui uma exigência documental antes inexistente).

Assim, não só a CAT, mas qualquer outro documento comprobatório da ocorrência de acidente do trabalho (típico, equiparado ou doença ocupacional) pode ser apresentado juntamente com a peça exordial.

2.3) Documentação médica de que dispuser relativa à doença
A exigência de documentação médica tem o duplo objetivo de evitar lides temerárias (nas quais a parte autora não possui documentação médica, "aventurando" a constatação da incapacidade na perícia médica judicial) e de melhor fixar o objeto do processo (na medida em que é a doença discutida na via administrativa, e não outra, que deverá ser, posteriormente, objeto de prova técnica).

3) Disposições sobre a perícia médica judicial
O artigo 473 do Código de Processo Civil exige que o conteúdo do laudo pericial contemple, entre outros requisitos, "a análise técnica ou científica realizada pelo perito" e "a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou". No caso de existência de perícia médica oficial anterior, dotada de presunção de legitimidade [9], já seria esperado que o perito judicial fundamentasse informe com as razões técnicas ou científicas da divergência com as conclusões administrativas (se existente). Entretanto, em matéria previdenciária, não é rara a simples reprodução, nos laudos judiciais, do conteúdo de relatórios lavrados pelos médicos assistentes do autor. Ocorre que mesmo a simplicidade do rito sumariíssimo dos Juizados Especiais Federais não parece permitir que a prova pericial ali produzida se resuma à simples homologação de laudos particulares, como se não houvesse um ato administrativo prévio fundamentado em exame feito por um experto habilitado.

O §1º do dispositivo estudado pretende coibir esse tipo de prática, reforçando a obrigação de fundamentação do experto nomeado pelo juízo, o qual deverá fazer menção às conclusões do laudo administrativo (se disponível) e colocar o dissenso em termos técnicos e científicos [10].

Por sua vez, a leitura cuidadosa e conjunta dos parágrafos §2º e 3º, demonstra que tais dispositivos incluem na lei uma possibilidade de inversão do rito processual que foi objeto de recomendação conjunta do CNJ, da AGU e do Ministério do Trabalho e Previdência Social [11]. Trata-se da possibilidade de determinar a realização da prova pericial médica já no despacho inicial das ações previdenciárias  ou seja, antes da citação da parte ré  nos casos de postulação de benefícios por incapacidade. Isso fica claro quando se interpreta a contrario sensu o §3º do artigo 129-A: o juízo não dará seguimento ao processo com a citação do réu se não houver controvérsia sobre outros pontos além do que exige exame médico.

Logo, se o único thema probandum for a incapacidade laboral e o juiz determinar a perícia antes da citação, a Autarquia só deverá ser citada se a prova técnica contrariar as conclusões do laudo administrativo. Por outro lado, na hipótese de confirmação dessas conclusões, "poderá o juízo, após a oitiva da parte autora, julgar improcedente o pedido", situação na qual a Autarquia deverá ser intimada da sentença de improcedência, se não houver recurso da parte autora, ou citada para apresentar contrarrazões, se houver recurso [12].

4) Conclusão
Pode-se dizer que a Lei nº 14.331, de 4 de maio de 2022, veio proporcionar um rito mais adequado ao direito material posto em discussão nas demandas previdenciárias que versam sobre benefícios por incapacidade, através das medidas seguintes:

1) incremento dos requisitos da petição inicial;
2) instituição do ônus, para o autor, de declarar a inexistência de processos anteriores com o mesmo objeto ou de impugnar antecipadamente a existência de litispendência ou coisa julgada;
3) especificação dos documentos indispensáveis à propositura da ação;
4) adoção da possibilidade de inversão do rito processual, com a produção da perícia médica judicial antes da citação da parte ré;
5) previsão do julgamento imediato de improcedência, quando o objeto litigioso do processo se resumir à questão médica e a prova técnica judicial confirmar as conclusões da perícia médica do INSS.

Não parece que as exigências impostas aos autores das ações previdenciárias afetem negativamente seu direito de acesso à Justiça. Deveras, as mudanças legais buscam obrigar que se leve a sério a perícia administrativa (mesmo quando incorreta), abreviar a duração do processo previdenciário e melhorar a qualidade técnica da prova pericial.

Bibliografia
DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 17º ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Prueba Científica. Un Mapa de Retos. In Estándares de Prueba y Prueba Científica
 Ensayos de epistemología jurídica. Carmen Vázquez (ed.). Marcial Pons: 2013.
LAZZARI, João B.; CASTRO, Carlos Alberto Pereira D. Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. 9788530990756. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530990756/. Acesso em: 05 mai. 2022.


[1] Trata-se aqui da dimensão legislativa do princípio da adequação, ou seja, como informador da produção legislativa das regras processuais (v. DIDIER, 2015: p. 114).

[2] Acordo firmado entre o INSS, a União, o MPF, a DPU e o Ministério da Cidadania, homologado pelo STF, estabelece os seguintes prazos: para auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, 45 dias; para auxílio-acidente, 60 (sessenta) dias (v. https://www.gov.br/inss/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/outras/minuta-final-do-acordo.pdf).

[3] Acórdão no RE 631240-MG. Tribunal Pleno. Relator ministro Roberto Barroso. Julgado em 03/09/2014, publicado em 10/11/2014.

[4] Nesse sentido já decidiu o TRF da 1ª Região (AC 0028022-58.2017.4.01.9199, Rel. Juiz Federal, TRF1  1ª, Câmara Regional Previdenciária de Minas Gerais, e-DJF1 24/06/2020).

[5] V., por todos, LAZZARI, 2022: p. 70.

[6] V. artigo 339 da Instrução Normativa INSS/PRES Nº 128 DE 28/03/2022, que prevê o prazo de 15 dias que antecedem a data de cessação do benefício, para solicitar sua prorrogação.

[7] Parece-nos, desse modo, que a antiga regra perdeu vigência, por aplicação do critério cronológico (lex posterior derogat legi priori), embora fosse de melhor técnica legislativa a revogação expressa.

[8] Eventos acidentários excluídos das definições de acidentes de trabalho dos artigos 19-21 da Lei 8.213/91.

[9] V., por todos, AG 1030673-56.2021.4.01.0000, Relator desembargador Federal João Luiz de Sousa, TRF1, 2ª Turma, PJe 11/03/2022.

[10] De acordo com Marina Gascón Abellán (GASCÓN ABELLAN, 2013), o desenvolvimento científico e técnico dos últimos anos teve um profundo impacto no âmbito da prova. Esse desenvolvimento tem um papel cada vez mais relevante em todos os processos. Porém, a importância das provas científicas na prática processual não foi acompanhada de um processo paralelo de cautelas e controles em relação às mesmas. Existe uma crença cega na validade e valor das provas científicas que chama atenção, principalmente quando se percebe que não há nada menos "científico" do que assumir como válido um conhecimento sem um prévio controle de seus postulados ajustado a uma metodologia científica.

[11] Recomendação Conjunta Nº 1 de 15/12/2015.

[12] Artigo 332, §4º, do CPC, aplicado analogicamente.

Autores

  • é procurador federal, mestre em Cultura Jurídica: Segurança, Justiça e Direito pela Universitat de Girona na Espanha, especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera e professor de Direito Previdenciário na Faculdade Independente do Nordeste (Fainor).

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