Opinião

Federação partidária e fidelidade partidária: uma discussão necessária

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  • é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) mestre em Direito Público pela Unisinos-RS pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.) graduado em Direito pela Urcamp-RS membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF e professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) advogado e sócio-fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília).

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12 de maio de 2022, 13h11

Spacca
A reforma eleitoral introduzida pela Lei nº 14.208/21 acabou por prever um novo instituto, qual seja a federação partidária. A federação partidária é formada por dois ou mais partidos com afinidades programáticas que, por livre e espontânea vontade, se unem como uma só agremiação pelo prazo mínimo de quatro anos, isto é, por uma legislatura.

Ocorre que a união, que, ao contrário das coligações, é de caráter duradouro, possui caráter nacional, funcionando como uma espécie de avant première para a fusão ou incorporação. Sendo de caráter duradouro e nacional, não há como negar os reflexos da formação de uma federação para além das agremiações em nível federal, trazendo profundas consequências nas esferas estadual e municipal, inclusive para as eleições municipais, afinal, elas se dão no meio dos mandatos federais e estaduais. Na esfera eleitoral, a figura da federação partidária é regulamentada pela Resolução TSE nº 23.670, aprovada pelo Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na sessão de 14 de dezembro de 2021.

A rigor, dois ou mais partidos com registro definitivo no TSE poderão reunir-se em federação, com abrangência nacional, e requerer o respectivo registro junto ao mesmo tribunal. A federação deverá ser previamente constituída sob a forma de associação, devidamente registrada no cartório competente do Registro Civil das Pessoas Jurídicas do local de sua sede. Adquirida sua personalidade jurídica, a federação apresentará seu pedido de registro ao TSE, acompanhado do rol de documentos constante do artigo 11-A, §6º, da Lei nº 9.096/95.

Dentre os documentos arrolados no texto legal, eis o detalhe importante, estão: exemplar autenticado do inteiro teor do programa e do estatuto comuns da federação constituída, inscritos no cartório competente do registro civil das pessoas jurídicas e; ata de eleição do órgão de direção nacional da federação. Note-se, portanto, que a federação, considerada a união de dois ou mais partidos, representa, na concretude da dinâmica da vida política, verdadeira criação temporária de um novo partido, com novo estatuto e órgão de direção, ainda que os partidos mantenham alguns gatilhos das respectivas autonomias, além dos deveres inerentes ao funcionamento, como o de prestar contas. Tanto é assim, por oportuno, que o estatuto deverá conter regras para a composição de listas para as eleições proporcionais, que vinculará a escolha de candidatos da federação em todos os níveis.

Deferido o registro da federação por decisão do TSE, serão anotadas no Sistema de Gestão de Informações Partidárias (SGIP): a informação, no registro de todos os partidos políticos que compõem a federação, da data em que passaram a integrá-la; e a composição do órgão de direção nacional da federação. A partir daí os partidos que compõem a federação passarão a atuar, em todos os níveis, de forma unificada.

A fim de assegurar a isonomia com os partidos políticos, a participação da federação nas eleições somente será possível se o deferimento de seu registro no TSE ocorrer até seis meses antes das eleições, observadas as demais disposições aplicáveis da resolução que tratar do registro de candidatura. Aqui há uma ressalva quanto ao prazo de constituição, qual seja a decisão do STF nos autos da ADI nº 7.021, relator ministro Roberto Barroso, que, além de ter validado constitucionalmente a federação, estipulou, especialmente para 2022, o prazo de 31 de maio do mesmo ano para que os partidos pudessem constituir a federação.

Fidelidade partidária no sistema proporcional brasileiro
A filiação partidária estabelece um vínculo jurídico entre o cidadão e a entidade partidária. É regulada nos artigos 16 a 22-A da Lei nº 9.096/95 (LOPP), bem como no estatuto da agremiação. Só pode filiar-se a um partido quem estiver no pleno gozo de seus direitos políticos e atenda aos requisitos postos na lei e em seu estatuto. O princípio da autonomia partidária assegura à agremiação o poder de definir as regras e os critérios que entender pertinentes para a admissão e o regime de continuidade dos filiados, o que deve ser fixado no estatuto, sendo assegurada a igualdade de direitos e deveres (LOPP, artigo 4º).

Por sua vez, o mandato representativo é outorgado pelos eleitores, dentro de uma circunscrição eleitoral, conferindo e atribuindo ao mandatário o direito e dever de representa-lo. Diferentemente do mandato imperativo ou até mesmo do responsivo. Na democracia representativa o povo concede um mandato a alguns cidadãos, para, na condição de representantes, externarem a vontade popular e tomarem decisões em seu nome, como se o próprio povo estivesse governando [1].

Já o sistema proporcional impõe que, para conhecermos os deputados e vereadores que vão compor o Poder Legislativo, "deve-se, antes, saber quais foram os partidos políticos vitoriosos para, depois, dentro de cada agremiação partidária que conseguiu um número mínimo de votos, observar quais são os mais votados. Encontram-se, então, os eleitos. Esse, inclusive, é um dos motivos de se atribuir o mandato ao partido e não ao político".

De maneira mais clara, mas não menos objetiva, funciona assim o sistema proporcional: para se chegar ao resultado, "aplicam-se os chamados quocientes eleitoral (QE) e partidário (QP)". O quociente eleitoral é definido pela soma do número de votos válidos (= votos de legenda e votos nominais, excluindo-se os brancos e os nulos), dividida pelo número de cadeiras em disputa. Apenas partidos isolados que atingem o quociente eleitoral têm direito a alguma vaga. A partir daí, analisa-se o quociente partidário, que é o resultado do número de votos válidos obtidos, dividido pelo quociente eleitoral. O saldo da conta corresponde ao número de cadeiras a serem ocupadas [2].

O mandato se diz político-representativo pois constitui uma situação jurídico-política com base na qual alguém, designado por via eleitoral, desempenha uma função política na democracia representativa. É denominado mandato representativo para distinguir-se do mandato de direito privado e do mandato imperativo [3].

O tema da fidelidade partidária não veio à tona para tutelar os partidos políticos, mas para tutelar a vontade popular, a vontade do eleitor sufragada nas urnas. E isso, diga-se de passagem, permeou toda esta discussão, desde o seu nascedouro nos autos da Consulta TSE n° 1398. O instituto da fidelidade partidária veio à tona justamente para preservar o sistema proporcional e dar concretude à vontade popular.

Hipótese de mudança substancial do programa partidário
Dentre as hipóteses de justa causa para a desfiliação partidária, isto é, fatos autorizativos da mudança de partido sem que o parlamentar perca a cadeira ocupada, se encontra a mudança substancial do programa partidário.

O programa partidário, a seu turno, se encontra disposto no estatuto da agremiação política, isto é, no documento de constituição da grei, ocasião na qual ficam dispostos os objetivos, diretrizes, finalidades, enfim, o lugar no mundo ocupado pela entidade representativa que, apesar de constituída como pessoa jurídica de direito privado, possui, por óbvio, feição pública ou de profundo interesse público. Quem sou eu? No caso dos partidos, o estatuto vai determinar.

A esse respeito, importante anotar que a qualificadora da mudança, ou seja, o caráter substancial dela, não representa mera divergência para com eventuais escolhas do partido. Ou mesmo discussões acerca da representatividade do filiado dentro da agremiação. Isso faz parte do jogo político. E está em todos os partidos. Deve ser assim, aliás, afinal, se tudo isso faz parte da arena democrática, o debate e a divergência são salutares para a própria saúde da democracia, em geral, e dos partidos, especificamente. Logo, a mera divergência entre filiados com propósito de ser alcançada projeção política não constitui justa causa para a desfiliação (Pet. 2.756/DF, relator ministro José Delgado, DJ de 5.5.2008). "[…]. 8. A mudança substancial do programa partidário também não foi evidenciada, porquanto a alteração de posicionamento do partido em relação a matéria polêmica dentro da própria agremiação não constitui, isoladamente, justa causa para desfiliação partidária. […]" (Ac. de 25.8.2010 na Pet nº 3019, relator ministro Aldir Passarinho Junior). Substancial é algo profundo. Trata-se, noutras palavras, de um giro considerável na programática proposta pela agremiação em seu estatuto e no seu caminhar.

É aí, por exemplo, que, em decisões recentes, o TSE passou a considerar como mudança substancial do programa partidário a "[…] a incorporação de um partido em outro fulmina toda ou, quando menos, substancialmente, a ideologia da agremiação incorporada que, afinal, deixa de existir. […]" (Ac.-TSE, de 25.11.2021, no AgR-PetCiv nº 060002790). Fusão ou incorporação representam, portanto, justa causa para a desfiliação, considerada a modificação profunda do programa. E há, nesse caminho, um adicional: no caso da fusão, o partido pelo qual o filiado se elegeu não existe mais. E, no caso da incorporação, o partido incorporado, pelo qual o filiado se elegeu, também não existe mais, tendo sido absorvido por outro. Além da mudança substancial do programa partidário, a hipótese do caput do artigo 22-A da LPP estaria posta (perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa, do partido pelo qual foi eleito).

Formação da federação partidária
Nada impede a desfiliação partidária por parte do parlamentar. Ou seja: o parlamentar, que se elegeu por um determinado partido, pode dele se desfiliar. Se não desejar perder o posto ocupado, todavia, deve estar presente uma hipótese de justa causa para tanto. Dentre elas, estão: mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, discriminação ou perseguições pessoais ou políticas, janela partidária e, ainda, a hipótese de o partido fornecer carta de anuência.

A pergunta que o texto coloca é: a formação de uma federação partidária poderia ser considerada como mudança substancial do programa partidário para fins de configuração de justa causa apta à desfiliação, sem que haja, por via de consequência, a perda da cadeira por parte do parlamentar?

A resposta, a seu turno, é: sim.

Com efeito, apesar de, ao contrário da fusão ou da incorporação, a federação partidária não ter caráter permanente ou definitivo, é incontroverso que ela, pelo prazo mínimo de quatro anos, traz profundas modificações na conformação dos partidos componentes. A começar pelo próprio prazo mínimo de duração — uma legislatura. Os efeitos, inclusive, são nacionais, passando, observado o prazo mínimo de quatro anos, por uma eleição municipal no interregno, sendo que os partidos locais precisarão seguir o modelo, inobstante os interesses específicos.

Mas há mais. A federação, considerada a união de dois ou mais partidos, possuirá programa e estatuto comuns, ou seja, novo programa estatutário. E há constituição de órgão de direção nacional, com eleição dos dirigentes, ainda que os partidos conservem componentes identitários, como nome, número e afins. Não há como negar, portanto, que, na hipótese de constituição de federação, haverá, no seio dos partidos componentes, profundas alterações no programa político-partidário. A necessidade de formação de estatuto e programa comuns confessa a alteração substancial.

O próprio estatuto deverá conter regras para a composição de listas para as eleições proporcionais, que vinculará a escolha de candidatos da federação em todos os níveis. A federação, por si, vincula todos os órgãos em todos os níveis.

A federação partidária se projeta no tempo pelo prazo mínimo de quatro anos. Há penalidades para o partido que procurar se desvencilhar dela antes do prazo. Há constituição de estatuto e programa comuns. Há constituição de órgãos de direção nacional, facultando-se os demais. Recursos são somados. Deveres são impostos. A federação impõe efeitos nas eleições locais. Há regras de escolha de candidaturas. Os quocientes são contados de acordo com os votos obtidos pela federação. Trata-se, então, de um novo partido, ainda que temporário ou não definitivo e ainda que haja a conservação de algumas notas de personalismo, como nome, número e afins, assim como alguns deveres individuais, como a prestação de contas.

Considerando, então, todas essas nuances, é que a constituição da federação partidária, para fins de desfiliação, deve ser vista como justa causa apta a sustentar a fuga de um parlamentar, tendo em vista, pois, a induvidosa mudança substancial do programa partidário, tanto que há novo programa a ser compartilhado entre os partidos federados.

Logo, é que a constituição da federação partidária, para fins de desfiliação, deve ser vista como justa causa apta a sustentar a fuga de um parlamentar que se elegeu por um dos partidos componentes. Há, pois, induvidosa mudança substancial do programa partidário, tanto que há novo programa a ser compartilhado entre os partidos federados, direitos e deveres compartilhados, além de efeitos concretos despejados em todos os níveis de direção (nacional, estadual e municipal).


[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 30ª Ed. Saraiva. São Paulo, 2011, p. 157.

[3] SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito constitucional positivo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 407.

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  • é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF), mestre em Direito Público pela Unisinos-RS, pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.), graduado em Direito pela Urcamp/RS, membro fundador da Abradep, membro da comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF, professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), advogado e sócio fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília-DF).

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