Opinião

Incidência de duas ou mais circunstâncias qualificadoras no tipo penal de homicídio

Autor

  • Natan do Prado Zabotto

    é especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas campus de Poços de Caldas) advogado criminalista e professor de Direito nas disciplinas de Processo Penal e Ética e Estatuto da OAB.

10 de maio de 2022, 6h49

Na hipótese de incidência de duas ou mais circunstâncias qualificadoras no tipo penal de homicídio, a(s) excedente(s) não pode(m) ser usada(s) para agravar o crime na segunda fase da dosimetria da pena.

Como é sabido, o STF tem jurisprudência firmada no sentido de que, "na hipótese de concorrência de qualificadoras num mesmo tipo penal, uma delas deve ser utilizada para qualificar o crime e as demais devem ser consideradas como circunstâncias agravantes genéricas, se cabíveis, ou, residualmente, como circunstâncias judiciais" [1].

No mesmo tom é a atual posição do STJ sobre o assunto:

"[…] reconhecida a incidência de duas ou mais qualificadoras, uma delas poderá ser utilizada para tipificar a conduta como delito qualificado, promovendo a alteração do quantum de pena abstratamente previsto, sendo que as demais poderão ser valoradas na segunda fase da dosimetria, caso correspondam a uma das agravantes, ou com circunstância judicial, na primeira fase da etapa do critério trifásico, se não for prevista como agravante" [2].

Entretanto, respeitadas compreensões em sentido diverso, tal magistério jurisprudencial nos parece equivocado do ponto de vista jurídico.

Com efeito, de uma análise superficial do artigo 61 do Código Penal de fato é possível extrair que o aludido dispositivo, em seu inciso II, consagra como circunstâncias agravantes praticamente as mesmas hipóteses que, abstratamente, qualificam o crime de homicídio (§ 2º, do art. 121, do CP), o que, em um primeiro momento, pode nos levar a concluir pelo acerto dos julgados acima mencionados.

No entanto, o entendimento consagrado em tais decisões ignora que o próprio artigo 61, caput, in fine, do Código Penal afasta textualmente a possiblidade de se acolher como agravantes as qualificadoras excedentes (aquelas que não foram concretamente consideradas para tornar o homicídio qualificado), quando estas, no plano abstrato, também constituem ou qualificam o crime:

"Artigo 61 — São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: […]."

Note-se que a redação do referido dispositivo é bastante clara: as circunstâncias previstas em seus incisos e alíneas sempre agravam a pena, desde que não ostentem potencialidade para constituir ou qualificar o crime, ocasião em que não podem ser consideradas como agravantes.

É dizer: à luz do destacado dispositivo, se as hipóteses nele elencadas, concomitante e abstratamente, também constituem ou servem para qualificar o delito, elas não podem servir para agravá-lo na segunda fase da dosagem da reprimenda.

No caso do crime de homicídio, é certo que as qualificadoras estampadas no artigo 121, § 2º, do CP — que, abstratamente, constituem e qualificam o delito — estão igualmente inseridas no inciso II, do artigo 61, do CP, de modo que não é lícito que as qualificadoras residuais sejam levadas a efeito como circunstâncias agravantes, sob pena de franca ofensa ao artigo 61, caput, parte final, do CP e, consequentemente, ao princípio da reserva legal, que, na precisa lição de Nilo Batista, "além de assegurar a possibilidade do prévio conhecimento dos crimes e das penas, o princípio garante que o cidadão não será submetido a coerção penal distinta daquela predisposta em lei" [3].

Lado outro, provada a incidência de mais de uma qualificadora, nada impede que a remanescente seja levada a efeito como circunstância judicial desfavorável para fins de exasperação da pena base na primeira fase, nos moldes do art. 59 do Código Penal.

Nessa linha, antiga decisão do STJ:

"[…]. 4. 'No caso de incidência de duas qualificadoras, integrantes do tipo homicídio qualificado, não pode uma delas ser tomada como circunstância agravante, ainda que coincidente com uma das hipóteses descritas no art. 61 do Código Penal. A qualificadora deve ser considerada como circunstância judicial (art. 59 do Código Penal) na fixação da pena-base, porque o caput do art. 61 deste diploma é excludente da incidência da agravante genérica, quando diz 'são circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime'" [4].

Em direção contrária, o escólio de Ricardo Augusto Schmitt — citado por Eliseu Antônio da Silva Belo —, "o qual entende que, quando a parte final do caput do artigo 61 do Código Penal traz a expressão 'quando não constituem ou qualificam o crime', para ele 'tal fato não impede o reconhecimento das qualificadoras restantes como circunstâncias agravantes, uma vez que em nenhum momento serviram para qualificar o crime', dando a entender que essa vedação restringir-se-ia ao momento concreto de realização da dosimetria penal" [5].

Nos filiamos, todavia, à interpretação sustentada pelo segundo autor, pois nos parece mais acertada a conclusão no sentido de que a expressão acima destacada ("quando não constituem ou qualificam o crime") "é relativa ao papel que aquela circunstância desempenha na moldura abstrata do tipo penal, seja para constituí-lo, seja para qualificá-lo" [6].

Destarte, com essas singelas considerações, propomos a revisão do atual posicionamento jurisprudencial firmado em torno do tema aqui discutido, em homenagem ao princípio da reserva legal, pedra angular do sistema de justiça criminal e principal pilar sobre o qual se assenta do Estado democrático de Direito.


[1] HC 99.809, rel. min. DIAS TOFFOLI, 1ª TURMA, julgado em 23/8/2011.

[2] HC 308.331/RS, rel. min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª TURMA, julgado em 16/3/2017.

[3] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11ª edição, março de 2007, p. 67.

[4] RHC 7.176/MS, rel. min. FERNANDO GONÇALVES, 6ª TURMA, DJ 6/4/1998.

[5] BELO, Eliseu Antônio da Silva. Multiplicidade de qualificadoras e dosimetria da pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, nº 3.996, 10/6/2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28202. Acesso em: 3/5/2022.

[6] Artigo citado na nota de rodapé anterior.

Autores

  • é advogado criminalista, professor de Direito e especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Campus de Poços de Caldas - MG.

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