Opinião

Liberdade de expressão e propriedade intelectual

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9 de maio de 2022, 18h03

Uma visão preconcebida de matiz exclusivista dos direitos intelectuais poderia gerar uma compreensão sobre o paradoxo entre as manifestações comunicacionais e os direitos de propriedade intelectual (DPI). Sob o ponto de vista dogmático, os DPI passíveis de apropriação privada geram interdições a utência de uma criação humana durante determinado prazo. De outro norte, ainda em tal viés, a liberdade de expressão trafegaria sem maiores contenções desde que o interessado estivesse acorde aos pedágios (royalties) exigidos pelos titulares de DPI.

Entre as duas espécies de direitos intelectuais que mais aglutinam debates sobre liberdade de expressão do não proprietário, ganham destaque as (1) marcas [1] (criações de distintividade) e (2) os direitos de autor (iter estético). Com relação (1) às marcas, dois de seus aspectos delineiam a temática, qual seja a regra jurídica que delimita sua (a) incidência (especialidade) e (b) o campo da contribuição por aquele interessado no exercício dos direitos fundamentais à comunicação sem maiores amarras.

Quanto a (a) especialidade, afora o delicado caso das marcas de alto renome, parece tranquilo que quanto mais distante do nicho da exclusividade (ex: ioiôs vs. porcelanatos) menores as chances do proprietário se incomodar, ou mesmo fazer jus a qualquer interdição cessação de uso do signo. Afinal de contas, a marca é uma propriedade contextual [2] e fora de tal especialidade não há pretensões possessórias ou proprietárias cabíveis. De outra monta, se o uso do não proprietário for em um campo sem identidade da especialidade (ex: manteiga vs. manteiga), mas com alguma aproximação (ex: manteiga vs. maionese) é bem provável que o titular sênior arguirá proteção contra atos de associação (raio maior do que o da contrafação por confusão).

Por sua vez, no tocante (b) ao campo contributivo de quem exerce a liberdade de expressão, pela concisão do corpo místico sobre o qual incide o campo criativo das marcas [3], não é incógnita a crítica de que o ato da liberdade expressiva pode ser de uma pobreza contributiva. Em outras palavras, a pergunta formulada seria a seguinte: qual seria o benefício social do exercício de uma liberdade de expressão sobre um signo distintivo? Para responder a tal indagação, é necessário distinguir duas situações paradigmáticas: (b1) o caso da paródia/humor/sátira/comparação e (b2) o uso do signo, mas não como marca.

Um dos temas que mais gera litígio em tal vertente é o (b1) da publicidade comparativa [4]. Como forma de propor melhores qualidades informacionais aos destinatários (consumidores), através do fenômeno de contraste discursivo, um ator econômico pode (legal e legitimamente) distinguir seu produto e serviço daquele do concorrente, sem que haja a licença do titular para a utência do sinal distintivo. Se uma marca pode ser uma forma eficiente de diminuir custos de transação (pesquisa), o cotejo entre duas delas de originadores diversos majora tal benefício econômico [5]. Tal forma de liberdade de expressão pode visar o lucro e, desde que se atente à veracidade comunicativa [6], não tende a ser coibida pelo Poder Judiciário ou pelo Conar. Aliás, bem se sabe ser possível criticar sem agredir reputações [7]. Ainda, obras audiovisuais/musicais podem citar a marca alheia como forma lúdica, narrativa, sarcástica ou humorística, como as conhecidas composições da Legião Urbana ("Geração Coca-Cola") ou de Chico César ("Mama África") denotaram [8]. Seria improvável ao titular do signo distintivo de refrigerantes ou das lojas de eletrodomésticos obterem tutela para cercear tal exercício da expressão alheia, fora da especialidade, e em um contexto de criação autônoma.

Quanto às hipóteses (b2) de uso linguístico (mas não como marca) do signo distintivo, essas são mais comuns no ambiente da expressão estética como novelas, romances, ou até em usos transformativos (como o mural de sopas industrializadas Campbell, de autoria de Andy Warhol). Outra hipótese corriqueira é do emprego de signo de dinstintividade intrínseca frágil, mas que por alguma razão foi tolerado pelo INPI no momento do registro. Logo, se verbi gratia a autarquia permitiu que uma sociedade empresária de cosméticos registrasse a expressão "talco" em sua forma nominativa, seria lícito aos concorrentes de tal titular apontarem a expressão "talco" na bula, desde que não o utilizassem enquanto marca (ou seja, para distinguir o produto — apenas sendo lícito a descrição do produto). Seja pela exaustão dos direitos, por ser aplicado em contexto diverso do da tutela outorgada pelo registro junto ao INPI ou, ainda, pela utência descritiva do signo, em todas essas hipóteses a liberdade expressiva do terceiro prevalecerá [9].

Por sua vez, com relação (2) aos direitos autorais, é comum que a liberdade de expressão dos não titulares seja expressa em outra obra de cunho estético. Tal criação do ente júnior poderá se espraiar em uma obra derivada, ou apenas utilizar a criação alheia como insumo para sua própria criação. A forma mais incólume de tal exercício de direito fundamental é o da crítica (musical, de dramaturgia, das obras audiovisuais), e o autor da obra analisada não terá o controle sobre os aplausos ou vaias que advirão. Situação mais polêmica diz respeito a utilização de criações e até da persona alheia em paródias para propagandas políticas, a exemplo do renomado caso Roberto Carlos vs. Tiririca [10].

Em recente coluna no periódico O Globo [11], foi possível perceber a inquietude de certos titulares de direitos de autor em relação à decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Persiste a noção de que o criador de uma obra literária, artística ou científica poderia ditar as formas que sua criação pode ou não ser utilizada, mesmo dentro das limitações de que tratam os artigos 46 e seguintes da Lei 9.610 de 1998. Entretanto, uma vez que a obra encontra seu público, resta ao autor os direitos existenciais e patrimoniais atribuídos pela legislação — generosos por si só [12]. Não cabe ao gerador daquele bem intelectual direcionar as maneiras de gozo da sua criação. A obra não trata de bem sujeito ao controle absoluto do autor; uma vez expressa no seu suporte de preferência, trata-se de elemento próprio, dissociado de quem a gerou [13].

Assim, compete ao titular dos direitos de autor apenas encontrar a forma mais satisfatória de explorar economicamente o fruto do seu lavoro intelectual. Não lhe cabe buscar ser "sócio" da titularidade de bens intelectuais de terceiros que, possivelmente, trataram sua criação como insumo de inspiração. Aliás, tal é o pressuposto de novas criações intelectuais [14]. Uma paródia, seja qual for sua destinação, é uma nova obra, como já observou o Superior Tribunal de Justiça. Por se tratar de criação distinta daquela que a inspirou, não há como a pretensão autoral de exclusividade alcançá-la. Fazê-lo seria colocar grilhões da liberdade de expressão de criadores, especialmente quando se trata de limitação expressa aos direitos exclusivos do autor [15].

Notável, assim, que uma polêmica pode advir dos exageros interpretativos quanto às limitações aos direitos autorais do titular, como na hipótese de um terceiro que sob o pálio do direito à citação, descreve o núcleo estético e completo da criação primígena. Entretanto, o oposto é ainda mais nocivo e comum: as hipóteses em que sob a égide da proteção dos direitos patrimoniais ou existenciais do autor, cerceia-se a legítima incidência das limitações de que tratam os artigos 46 e seguintes da Lei 9.610/98, como brevemente discutido acima.

De forma mais abrangente, na zona gris entre direitos de exclusividade (de diversas naturezas) e a liberdade de expressão, o Pretório Excelso vem empenhando uma posição preferencial ao último face ao primeiro. Assim o foi nos bem dirimidos casos da Lei Eleitoral [16] e das biografias [17]. Na dúvida, os Poderes constituídos e a doutrina tendem a acertar mais quando evitam que visões hipertrofiadas da propriedade intelectual possam cercear novas criações (tuteláveis, ou não, pelos direitos intelectuais). Um espaço maior de liberdades tende a incentivar uma nova geração de iteres estéticos, distintivos, ornamentais e utilitários.


[1] LANDES, William M & POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 159.

[2] "O registro de marcas resulta na apropriação de uma expressão ou símbolo visual, extraindo do universo das potencialidades semiológicas um determinado complexo significativo, cujo uso torna-se exclusivo ao titular para determinados contextos." BARBOSA, Denis Borges. Proteção das Marcas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, e-book, p. 9.

[3] Em geral delineado em um ou dois elementos nominativos, figurativos, mistos, forma tridimensional, ou aposto em alguma região específica do produto ou serviço — "marcas de posição". Conteúdos mais amplos costumam, se tanto, serem parte de uma expressão de publicidade, mas não de uma marca.

[4] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 39.

[5] JANIS, Mark D. Trademark and Unfair Competition. 2ª Edição, Albuquerque: West Academic, 2017, p. 9.

[6] DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e Direito. São Paulo: Editora, Revista dos Tribunais, 2010, p.45.

[7] GONZÁLEZ, Rafael Lara. La Denigración en el Derecho de la Competencia Desleal. Pamplona: Editorial Aranzadi SA, 2007, p. 25.

[8] Para outros exemplos, seja permitido remeter ao texto BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Liberdade de Expressão, Internet e Signos Distintivos. In. MARTINS, Guilherme Magalhães & LONGHI, João Victor Rozatti. 4ª Edição, Direito Digital: direito privado e internet. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.

[9] Neste sentido, entendeu a quarta turma do Tribunal da Cidadania que a atividade do sítio eletrônico Falha de São Paulo, ao parodiar a atividade jornalístico da Folha de S.Paulo, não viola qualquer direito marcário do periódico paulistano. Não há como dirimir a controvérsia pela concorrência desleal ou pelo direito das marcas; trata-se de matéria do direito autoral e da paródia, perfeitamente admitida no ordenamento jurídico pátrio. (Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.548.849 – SP (2014/0281338-0). Relator ministro Marco Buzzi. 20 de junho de 2017.)

[10] "De fato, as paródias são verdadeiros usos transformativos da obra original, resultando, portanto, em obra nova, ainda que reverenciando a obra parodiada." — 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), depois de um pedido de vista do ministro Raul Araújo. O caso é julgado no EREsp 1.810.440.

[11] FRANCO, Bernardo Mello. Artistas defendem restrição a paródias musicais nas eleições. O Globo. Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/artistas-defendem-restricao-parodias-musicais-nas-eleicoes.html?utm_source=Twitter&utm_medium=Social&utm_campaign=O%20Globo. Acesso em 29 de abril de 2022.

[12] Lei n. 9.610 de 1998. Artigo 41. "Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil."

[13] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direto autoral. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1ª edição, 1980. p. 14

[14] BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual – Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2ª edição, 2017. p. 59.

[15] No caso brasileiro, é expressamente limitado o alcance dos direitos do autor sobre paródias. Trataria-se de questão mais complexa se a ordenação jurídica pátria ancorasse suas exceções e limitações numa cláusula aberta como o estadunidense fair use, cuja aplicação depende de quatro fatores intepretados casuisticamente. Ainda assim, entendeu a Suprema Corte dos Estados Unidos que a paródia se trata de fair use, ao dirimir a contenda entre os titulares dos direitos patrimoniais da canção "Pretty Woman", de Roy Orbison, e o grupo de rappers 2 Live Crew (Campbell v. Acuff-Rose Music, Inc., 510 U.S. 569 (1994)).

[16] STF, Pleno, min. Alexandre de Morais, ADI 4.451, J. 21/6/2018.

[17] STF, Pleno, min. Carmen Lúcia, ADI 4.815, DJ 26/6/2015.

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