Embargos Culturais

Claudio Seefelder Filho e a eficácia temporal da coisa julgada

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

8 de maio de 2022, 8h00

No conjunto das fontes do direito a doutrina parece ocupar posição hoje fragilizada, se comparada com a cultura dos precedentes, que se alastra entre nós. Tenho insistido que de nada adianta sermos iguais perante a lei, se não somos iguais perante a jurisprudência. Muita decisão desencontrada há. O tema da segurança jurídica tornou-se central no direito de expressão liberal. Na origem, o assunto foi tratado por Max Weber, que constatou os paradigmas de racionalidade no direito ocidental. No destino, a permanente busca pela racionalidade das decisões judiciais, das quais se espera, principalmente, eficiência.

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A doutrina é percepção descritiva de arranjos sociais. Tomamos provavelmente o conceito da teologia, no contexto da qual a doutrina é percepção descritiva da instrumentalização da fé. A doutrina explica o milagre. No direito, a doutrina fundamenta a jurisprudência. Para Carl Schmitt o milagre estaria para a teologia na mesma medida em que a jurisprudência estaria para o direito. Em ambos os casos há um substrato doutrinário: tem-se (no primeiro caso) a justificação da fé e, no segundo, a justificação da jurisprudência. São atos de vontade, sobre os quais a doutrina especula.

A multiplicação de livros fáceis e de outras tecnologias de informação implicam infelizmente no aparente desprestígio da doutrina. É o direito sem direito, "a comunidade jurídica mal alimentada", na expressão do mais vigoroso colunista da ConJur. As livrarias jurídicas fecham as portas. Sinal dos tempos. Por isso, o entusiasmo que alguns esforços e livros suscitam, a exemplo do trabalho de Claudio Seefelder Filho, "Jurisdição constitucional e a eficácia da coisa julgada nas relações jurídico-tributárias de trato continuado". Pode-se não concordar, mas não se pode discordar sem ler, refletir e pensar argumentos para impugnar o raciocínio do autor.

Cuida-se da dissertação de mestrado de Cláudio. Eu fui um dos avaliadores. Na banca também estava Paulo Mendes de Oliveira, que atua em tribunais superiores, conhecedor da matéria, importante e inovador processualista da nova escola de direito processual. A tese foi orientada por Guilherme Pereira Pinheiro. É um dos assuntos mais empolgantes que se tem na prática judiciária atualmente.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional tratou do assunto pela primeira vez no Parecer PGFN/CRJ n. 492/2011, idealizado pelo próprio autor e levado à aprovação do então ministro da Fazenda. Também colaboraram no parecer Fabricio da Soller (autor do prefácio, entende muito do assunto) e Luana Vargas (contribuiu na construção do texto). Há também alguma influência de interlocuções do autor com Carlos de Araujo Moreira, combativo e bem preparado advogado público.

Cláudio estuda basicamente o tema da cassação da eficácia da res judicata, coisa julgada, em face de jurisprudência superveniente. Quem não leu a tese corre apressadamente a achar, pelo título, que o autor teria tratado de novas fórmulas de rescisão ou de relativização de assunto em relação ao qual não caiba mais recurso. A inovação consiste na afirmação de que a coisa julgada não é perene e eterna. Na narrativa de Cláudio a coisa julgada se sustenta substancialmente no contexto da cláusula "rebus sic stantibus". Isto é, permanece, se mantida sua sustentação jurisprudencial originária.

O livro se divide em três pontos. O autor inicialmente cuida da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal à luz da doutrina do precedente. Nada mais atual. Analisa o impacto do precedente na ordem jurídica, o que me parece um capítulo a parte sobre a teoria das fontes. O autor insiste que todo comando judicial contém implicitamente um efeito vinculante "enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático com base nos quais estabeleceram o juiz de certeza": é o ponto central do argumento.

Na parte final o Claudio discute o assunto no seu campo de especialidade: o direito tributário. Explora o tema da segurança jurídica à luz de relações dinâmicas, sempre em torno dos princípios constitucionais. De forma mais simples, Claudio se insurge com o fato de que um contribuinte (pessoa física ou jurídica) recolha menos tributos com base em decisão passada em julgado, ao mesmo tempo em que outro contribuinte seja obrigado a recolher mais tributos, por força de decisão posterior. O livro discute a impropriedade desse arranjo, fundamentado na força da coisa julgada.

A questão é atualíssima. Cuidam-se dos temas 881 e 885 que o Supremo Tribunal Federal julga ao longo da semana. Os RE 949.297 e 955.227 tratam justamente dessa aporia. Por um lado, a imutabilidade da coisa julgada perpetuaria situações insustentáveis, em um mundo em constante movimento, no qual, como diria aquele filósofo alemão barbudo de Trier, tudo que é sólido desmancha no ar e tudo que é sagrado será profanado. Nesse sentido, a imutabilidade da coisa julgada poderia fomentar disfunções nos campos minados da livre concorrência, da livre iniciativa e da isonomia tributária.

Por outro lado, a mutabilidade da coisa julgada tornaria a res judicata uma mistura de condições suspensivas e resolutivas, que temos dificuldade em compreender, justamente porque tais condições são antagônicas e logicamente incompatíveis.

Muitos discordarão da tese. Os REs 949.297 e 955.227, que o STF agora decide, comprovam o embate. O autor coloca como pomo original da discórdia o modo como o Superior Tribunal de Justiça mitigou o conteúdo da Súmula 239 do STF, justamente no tema da relação jurídico-tributária de trato contínuo. O STF havia fixado que decisões judiciais somente valiam para o exercício ao qual se referiam. O STJ abrandou esse dogma até por uma questão de operacionalidade.

É um livro dedicado ao ministro Teori Albino Zavascki, por quem o autor revela especial deferência. A fundamentação conceitual radica em premissas que o ministro Teori esclarecia e enfatizava. É um livro de doutrina, cujos efeitos práticos comprovam a relação do pensamento com a jurisprudência, do mesmo modo de que a fé substancializa o milagre.

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