Garantias do Consumo

Influenciador digital: poder de persuasão versus dever de responsabilização

Autor

  • Vanessa Brodt Martins

    é tabeliã na cidade de Rio Grande (RS) mestre em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e ao Agendas de Direito Civil Constitucional.

4 de maio de 2022, 8h00

Não há dúvidas de que o caos provocado pela pandemia forçou a sociedade a se reinventar e a conviver com uma nova realidade. O último respiro de milhões de vidas foi acompanhado em tempo real e o mundo parece ainda estar sobrevivendo por aparelhos. O coronavírus, maior vilão dos últimos tempos, ocupou a agenda pública mundial e protagonizou um dos períodos mais difíceis da humanidade. No mesmo sentido e resiliente na missão de escandalizar a raça humana, a mídia retratou, dia após dia, todos os reflexos devastadores da pandemia, dissipando o medo e a insegurança por cada fragmento da sociedade.

Como esperado, em ambientes hostis, muitos organismos se proliferam e é responsabilidade da comunidade jurídica discutir questões relevantes e redirecionar os holofotes para pautas que merecem ser enfrentadas. A pandemia pariu novos modelos de entretenimento e um, particularmente, merece atenção especial: as famosas lives. O distanciamento social e isolamento domiciliar criaram um ambiente propício para o bombardeio de conteúdos produzidos em tempo real pelos mais variados profissionais da mídia e os impactos sociais dessa compulsão desordenada de material virtual não devem ser ignorados.

Como todo o bom instrumento, para atingir níveis de excelência, é necessário que seja bem conduzido e, nesse intento, surge um ator social cujo poder de sedução fadaria Don Juan a um inocente paquerador: o influenciador digital. Esse profissional da mídia possui como ferramenta de trabalho o poder de persuasão, atributo que o permite orientar comportamentos e participar diária e diretamente da decisão de compra de milhões de pessoas, acendendo a discussão acerca do regime jurídico ao qual deve estar submetido.

Em linhas gerais, o influenciador digital é um profissional que se julga expert em uma determinada área e se auto-habilita a doutrinar milhões de outras pessoas sobre o assunto. É um "amiguinho virtual" que ganha a confiança e admiração de um público específico e orienta suas compras no sentido de realizar aquisições de produtos ou serviços pelos quais é remunerado para divulgar. O modus operandi é simples e se resume na parceria firmada entre o influenciador e o fornecedor no sentido de explorarem economicamente a persuasão e a confiança que os seguidores depositam no influenciador.

Os ganhos são visíveis. O influenciador produz o material a ser divulgado e normalmente participa do produto da venda por meio de percentuais previamente pactuados, o que traduz um estímulo extra para intensificar as estratégias de persuasão utilizadas. Cupons de desconto e links de facilitação na compra também são comuns e são ofertados aos seguidores diretamente pelas redes sociais dos influenciadores. Ainda, a simples associação a marcas renomadas já garante a adesão de outros milhares de seguidores fiéis à essa marca, o que reflete no aumento do número de seguidores e na construção de um portfólio mais atrativo visando futuras parcerias.

Os benefícios trazidos ao fornecedor também são inquestionáveis. Primeiramente, por se tratar de um investimento "barato", considerando que não gera custo com produções vultuosas. Basta que o fornecedor identifique o perfil de profissional que dialogue com o produto ou serviço a ser divulgado e que tenha o potencial de influenciar milhões de pessoas que compartilham dos mesmos interesses. Ainda, o público-alvo do fornecedor está previamente selecionado pelo influenciador e ambos já sabem de antemão que os seguidores irão de fato consumir, desconhecendo apenas o quantum do consumo, a ser definido a partir de indicadores como a autoridade e a confiabilidade do influenciador e a estratégia de persuasão utilizada, diminuindo sobremaneira a capacidade de escolhas racionais pelo consumidor.

É uma verdadeira parceria ganha-ganha, o que deveria ser suficiente para desqualificar qualquer entendimento no sentido de serem os influenciadores estranhos ao regime jurídico consumerista, afinal, o influenciador faz publicidade e é um contrassenso colocá-lo à margem do cumprimento de preceitos legais relacionados a ela. Além disso, esse profissional é uma personalidade ativa na cadeia produtiva, já que cria o próprio conteúdo, divulga o material patrocinado, facilita na venda, dá descontos, enfim, transfere a credibilidade que tem com seus seguidores ao produto ou serviço divulgado e o impacto de suas recomendações não pode ser desprezado.

Felizmente, a doutrina defende ser o influenciador digital um fornecedor equiparado, já que a venda é realizada "por meio" e "em função" da credibilidade desse profissional com seus seguidores e do poder de influência que ele exerce no meio em que atua. A preponderância da atividade desenvolvida por esse profissional de persuasão e o caráter lucrativo da publicidade realizada deve ser suficiente para atrair o arcabouço normativo consumerista, afinal, o influenciador digital não é obrigado a contratar qualquer publicidade, mas quando a faz, deve assumir o risco decorrente de suas escolhas, sobretudo considerando todos os ganhos advindos da relação influenciador-fornecedor.

Infelizmente, a normativa consumerista e a teoria do fornecedor equiparado não são aplicados aos influenciadores digitais na prática, retardando em muito a adequada proteção do consumidor e sentenciando a comunidade jurídica a trabalhar apenas no campo da reparação. Enquanto não adotados os entendimentos pelo Poder Judiciário, não estarão disponíveis ferramentas capazes de afetar o mercado no momento anterior ao dano, de forma profilática e com possibilidade real de educar o comportamento dos influenciadores, afinal, a partir do momento em que souberem que serão corresponsáveis pelo dano ao lado do fornecedor, passarão a avaliar melhor os projetos dos quais devam participar.

Apesar da simplicidade do argumento, a correta responsabilização dos influenciadores tende a desencadear um efeito social extremamente positivo, na medida em que passarão a melhor filtrar o conteúdo compartilhado e criarão o hábito de avaliar não apenas os ganhos decorrentes da publicidade, como também as perdas e a forma como ela pode afetar seus seguidores. Mais do que tutelar o consumidor, classificar o influenciador como fornecedor equiparado representa "educar" o mercado a priorizar uma publicidade lícita, ética e responsável.

O Conar já atua nesse sentido, tentando desestimular condutas ilícitas e punir, dentro de suas forças, o comportamento reprovável dos influenciadores. No ano passado, inclusive, criou um guia dedicado a eles, na intenção de afastar por completo a incoerência de realizarem publicidade sem precisar respeitar os princípios desse instituto. A ideia não é categorizar os influenciadores como "vilões" e sim afastar a ideia de que pessoas que orientam a compra de milhares de outras pessoas tenham passe-livre para cometer abusividades.

Tratando de abusividades, importante que se paute alguns casos envolvendo influenciadores digitais que acabaram desaguando em representações emblemáticas submetidas ao Conar. O ano de 2020 ficou conhecido como a "era das lives" e foi por meio desse novo modelo de entretenimento que alguns influenciadores ocuparam a agenda jurídica da época. Cantores de músicas sertanejas realizaram transmissões em que apareciam consumindo a bebida alcoólica patrocinada de forma exagerada, sem qualquer barreira de acesso a menores ou cláusula de advertência.

Os influenciadores, visivelmente embriagados, além de ingerirem de forma imoderada a cerveja patrocinada, incitaram o seu consumo, trazendo a baila o questionamento acerca da licitude e responsabilidade pela conduta pouco admirável dos profissionais da mídia. A relevância da discussão foi reforçada por alguns reflexos pandêmicos, como o aumento do consumo de álcool, que se deu no patamar de 93% no início da pandemia, e o fato das transmissões promovidas pelos sertanejos embriagados ocupar a lista das 10 lives mais assistidas na plataforma YouTube. A totalidade dos casos analisados pelo Conar estavam ranqueados nessa lista campeã de visualizações.

O desfecho das reclamações se deu no sentido de arquivar as demandas em relação aos patrocinadores de bebidas alcoólicas — que alegaram que disponibilizaram aos influenciadores o Código de Conduta do Conar e que não possuem controle sobre a conduta do influenciador —, e também advertir os influenciadores acerca de sua responsabilidade social diante do público infantojuvenil. Em resumo, o patrocinador foi excluído da demanda e o influenciador foi advertido. Quem poderia ser responsabilizado pois fornecedor típico, não foi, e quem foi, não encarou a punição com seriedade, já que reincidiu na conduta reprovável em lives posteriores.

Dentro do cenário esculpido, resta injustificável responsabilizar apenas o fornecedor típico, até porque é muito atrativa a realização de publicidade por meio do influenciador, se este permanecer imune ao CDC. O investimento não é vultuoso, a visibilidade é grande, o retorno é seguro — considerando que atingem diretamente seu público-alvo —, e qualquer perda decorrentes de publicidade ilícita, já está computada na margem de lucro do produto ou serviço divulgado. Ainda, argumentos como a simples disponibilização de regras de conduta ao influenciador são suficientes para eximi-lo da responsabilidade diante do órgão ético.

Os influenciadores, no mesmo sentido, sem sentir o peso da responsabilidade, permanecem descomprometidos com a licitude da publicidade que realizam e continuam utilizando do seu poder de persuasão para auferir lucro e orientar a compra dos consumidores. Nessa toada, entender que o influenciador digital não se submete à legislação consumerista é lhes dar um "passe-livre" ao descomprometimento com suas condutas e chancelar sua irresponsabilidade social.

É chegada a hora de permitir que importantes doutrinas transcendam os belos livros de capa dura, que boas normas sejam interpretadas de forma a não descurar da essência pela qual foram criadas, que Poder Judiciário enfrente questões jurídicas despido de orientações políticas e pressões de mercado, enfim, que o vulnerável seja de fato tratado como vulnerável, cessando os aplausos para instrumentos capazes de endossar ilicitudes e reforçar irresponsabilidades.


Leia mais em: MARTINS, Vanessa Brodt. Fragmentação do Direito e a necessária proteção dos consumidores frente à práticas de influenciadores digitais: o caso das lives de cantores de música sertaneja alcoolicamente embaladas ao longo de 2020. Dissertação (mestrado em Direito) — Universidade La Salle, Canoas, 2022.

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  • é tabeliã na cidade de Rio Grande (RS), mestre em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e ao Agendas de Direito Civil Constitucional.

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